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O problema do superendividamento familiar e a mora da dí(vida)
O problema do superendividamento familiar e a mora da dí(vida)
Jones Figueirêdo Alves
As famílias superendividadas estão em mora da dívida e em mora da vida.
O superendividamento como “um estado patológico do consumo” que “conduz o devedor-pessoa física e consumidor, leigo e de boa-fé, à impossibilidade de satisfazer as suas dívidas atuais e futuras de consumo”, como é da melhor definição oferecida por CLAUDIA LIMA MARQUES, adquire sua maior relevância, dentro do período da pós-pandemia por externalizar, com ênfase e dramaticidade, as vulnerabilidades dele decorrentes.
São famílias que sofrem a drástica redução de renda (26,5%), o desemprego (24,3%) ou as doenças (18%) e perderam a capacidade de adimplemento com as suas obrigações, salvo sob gravame de um sério comprometimento do seu mínimo existencial. É o fato jurídico mais importante para o futuro da economia, quando o número dos atuais 30 milhões de “superendividados” tende a elevar para 42 milhões, enquanto já temos 62 milhões de “pessoas endividadas”.
Essas famílias não podem ser subtraídas do seu poder de aquisição aos bens essenciais à segurança de suas existências, bem como os direitos de moradia, de subsistência e de acesso à saúde, pelas relações jurídicas contratadas ou que devam ser implementadas.
Os tempos jurídicos da pandemia são de humanidades reclamadas, de sentimentos solidários comuns e de responsabilidades sociais conjugadas, impondo-se aperfeiçoar, as relações jurídicas e sociais, para o direito e a sociedade aprenderem melhor manejar as dívidas e o incumprimento justificado e acidental dos devedores sob a ótica de um capitalismo humanista.
No atual contexto da crise econômica deflagrada pela pandemia e em travessia para a nova realidade de mercado, é imperativo categórico que elas sejam, as famílias superendividadas, admitidas na condição passiva de devedoras de boa-fé, não se confundindo com os devedores inadimplentes contumazes ou com os que exorbitam, ordinariamente, o consumo além de suas capacidades de renda.
Afinal, o consumo das famílias tem contribuição decisiva à atividade econômica, correspondendo a 65% do PIB nacional, como base de sua sustentação, quando os dados do IBGE, indicam que esse consumo cresceu 1,8% no ano passado, em terceiro ano consecutivo de crescimento.
Há de se reconhecer, então, o perfil do bom pagador e das circunstâncias que o coloca inadimplente ou em insolvência civil, tal como se reconhece o modelo do bom pai de família, em sua conduta diligente (bonus et diligens pater famílias) como formula o Código Civil francês, em seu artigo 1.137.
Será pelo viés do mesmo padrão de conduta, ao correto cumprimento esperado de uma obrigação, que também encontramos no direito francês a figura nominada do surendettement (sobreendividamento) onde com a sua primeira lei especial, de nº 89-1010. de 31 de dezembro de 1989, a chamada Lei Neiertz, obteve-se um tratamento jurídico específico e adequado do superendividamento.
Enquanto isso, não temos em nossa ordem jurídica, o trato do superendividamento como um problema jurídico, à falta de normativos próprios, ausentes no Código de Defesa do Consumidor de 1990 e no Código Civil de 2002.
Muito ao revés, o instituto da insolvência civil, que pontificou no antigo Código de Processo Civil de 1973, em seu art. 748, não foi reprisado no atual Código Processual de 2015, quando para a pessoa jurídica a Lei n° 11.101/2005 veio empreender melhor dinâmica ao processamento da sua recuperação judicial.
Agora, o Projeto de Lei 3.515/2015 vem atualizar o Código de Defesa do Consumidor (CDC), a incluir capítulo sobre a prevenção e o tratamento do endividamento.
É o mesmo mercado de consumo, que o democratiza sob a égide da economia acessível, massificando a oferta de crédito e o estimula de forma desmedida, que deve, agora, responsavelmente, ensaiar as primeiras medidas para a reestruturação das dívidas e apoiar iniciativas dessa ordem, em apoio significativo aos superdevedores acidentais.
Quando as repercussões socio-econômicas da Covid19, afetam o mundo inteiro, implicando o surgimento de legislações emergenciais de crise e de uma pauta humanitária de novos deveres jurídicos, há um dever geral de renegociação das obrigações contratuais, sobremodo nos contratos de consumo em relações bancárias e nos demais contratos em geral.
Esse dever de renegociação está intrinsecamente ligado à essência dos contratos, para o seu reequilíbrio contratual, como um dever anexo à cláusula da boa-fé objetiva, extraído do art. 422 do Código Civil e implícito a todos eles. Em sua mais atualizada doutrina, situada nos estudos de ANDERSON SCHEREIBER, torna-se um dever que, iniludivelmente, também se apresenta como um encargo, dentro da função social e do interesse da preservação dos contratos.
É bem dizer que se o desequilíbrio do contrato se opera na circunstância acidental da perda de capacidade de pagamento das obrigações do contratante, caberá ao credor o dever de renegociar para a mitigação de suas perdas e ao devedor o planejamento ordenado de seu adimplemento possível.
Não é da tradição do nosso sistema econômico, em situações que tais, o perdão de dívidas, diante do comportamento não culposo do devedor, como sucede nos Estados Unidos, diante de crises financeiras. Ali se entende que a insolvência não pode estigmatizar o devedor pessoa física a tanto não poder prejudicá-lo como “membro produtivo para a economia de mercado”. Existe para o superendividado um “imediato recomeço” (“fresh start”), permitindo-se a extinção das dívidas para concretizar essa recuperação econômica.
Em nosso país, se torna necessário que o sistema jurídico possa contemplar, de rigor, nos contratos a cláusula do dever de renegociação, a possibilidade das moratórias excepcionais a diferir o tempo obrigacional, e sobretudo, a chamada “exceção de ruína”, por perda acidental da capacidade de pagamento, ensejando a revisão dos contratos, mesmo os não de consumo, quando o superendividamento se apresente escusável.
Consabido que o contrato, como relação jurídica de fim social, tem sua teleologia na satisfação do interesse na prestação, a justiça contratual há de exigir, designadamente nos reflexos da pandemia, que a renegociação seja decorrente diretamente da ética do contrato, como corolário da boa-fé objetiva, mesmo à falta de cláusula nesse sentido.
A cláusula de dificuldade (“hardship”), como um instrumento de conservação do negócio jurídico, deve ser um novo paradigma dos contratos, de presença obrigatória, servindo à segurança da economicidade do contrato. Impedirá, por certo, endividamentos acrescidos, com a readaptação oportuna da avença às circunstâncias impostas pelas dificuldades econômicas trazidas em acontecimentos novos.
É certo que a falência familiar torna indigente toda a sociedade e o acesso ao crédito para a população de menor renda deve contemplar, obrigatoriamente, incentivos menos onerosos, sob pena de torná-la mais pobre ainda.
O fundamento teórico da retomada das famílias superendividadas ao seu reingresso na economia tem por base a mensuração dos juros reais, cuja equação não foi ainda resolvida, tendo sido, inclusive, excluída a necessidade de sua conceituação programada no texto constitucional. Urge, portanto, que se pratiquem para uma eficaz solução do superendividamento, juros sociais, e não mais juros vertiginosos, à conta de um sistema oligopolizado do sistema bancário. Reclama-se, a tanto, uma sensível e necessária redução de margem de lucros maiores que o mercado de crédito tem obtido.
Questões de maior relevo avultam nos fins de a economia depender, de modo decisivo, de as famílias recuperarem, em breve tempo, a sua capacidade de consumo (01) e a tendência ao superendividamento ser evitada por uma melhor regulamentação do mercado de crédito. Vejamos:
(i) Estudos da Ordem dos Economistas do Brasil e pelo Instituto Capitalismo Humanista indicam que, aprovado o Projeto de Lei nº 3.515/2015 e vindo as famílias superendividadas capacitarem-se a planejar o adimplemento de suas dívidas, a economia tende a se movimentar com um suporte de acréscimo de cerca de 555,5 bilhões, equivalente a 7,6% do PIB brasileiro, sem qualquer adição de dinheiro público.
Ou seja, quando 61% das famílias brasileiras que estão endividadas reencontrarem os insumos de qualidade de vida, o país poderá retomar com segurança a normalidade de sua economia.
(ii) A saber que têm sido aumentadas, artificialmente, as necessidades de consumo e os créditos se apresentam mais acessíveis a atendê-las, por sua oferta massiva; consumo e crédito devem ser responsáveis para caracterizarem uma economia limpa. Ainda há um círculo vicioso de obtenção de crédito para satisfazer empréstimos vencidos, sob a aparente atualização de contas, sem que as negociações sejam postas de forma coerente a atender a vulnerabilidade dos devedores.
Há que se destacar, por isso, que o inadimplemento e o superendividamento, tornam-se variáveis de um mesmo problema social que não mais se limitam aos interesses individuais no espectro do contrato. Nessa linha, HELOISA CARPENA, diante das repercussões que a atividade do fornecedor de crédito provoca no mercado, sustenta por sua responsabilização pelo fato do crédito concedido a quem não tenha condições de pagar e o torna devedor e superdevedor por indução do crédito fácil
Essa sua notável percepção conduz-nos a pensar que o rearranjo contratual impõe-se, no mínimo, como decorrência do princípio da boa-fé, incumbindo àquele que lesou o princípio, por meros interesses de mercado, abandonar a rigidez do contrato e tolerar as perdas ou convocando-se a intervenção judicial para apurar as consequências do endividamento induzido.
Aliás, adverte-nos BRUNO MIRAGEM, que deve chamar-se a intervir a utilidade das regras de interpretação do negócio jurídico, alteradas pela recente Lei de Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019). Particularmente, diz ele, as que referem que a interpretação deve lhe atribuir o sentido que corresponder à boa-fé, com a aplicação do at. 113, § 1º, III, do Código Civil (02).
(iii) A edição da nova versão do CDC, incluindo capítulo do superendividamento, ao tempo que dispõe acerca da sua prevenção, por meio de uma adequada educação financeira, estabelece a reestruturação das dívidas ao longo de cinco anos, assegurando a preservação do mínimo existencial das famílias superendividadas no percentual de 65% de suas rendas. Isso implica no aumento da liquidez do grupo familiar, quando os outros 35% serão comprometidos com todas as dívidas preexistentes e conciliadas em bloco.
(iv) Observa-se também que, ano passado, cerca de 92,5 milhões de pessoas dispunham apenas de uma renda mensal de R$ 2.308,00, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) do IBGE; totalizando um montante de renda recebido pelas famílias de R$ 213,49 bilhões mensais e de R$ 2,7753 trilhões ao ano.
Segue-se dizer, conforme estudos dos professores MANOEL ENRIQUEZ GARCIA (USP) e RICARDO SAYEG (PUC-SP), que a participação da renda média das famílias endividadas nesse montante era de R$ 1,850 trilhão, equivalente a 66,6% do total. À toda evidência, está manifesto o impacto sócio-jurídico que isto apresenta, com agudeza do superendividamento na pós-pandemia, onde mais se comprometerá a dignidade das famílias, quando não lhes sejam protegidos os seus direitos financeiros de sobrevivência digna.
Cuide-se, nessa oportunidade, de exaltar a necessidade de a ordem jurídica recepcionar a teoria do capitalismo humanista como modelo do capital na sua integridade de visão social. O capital deve servir à dignidade das pessoas e não torná-las vítimas dele, por interesses estritamente econômicos, ao extremo de atentar contra os seus direitos personalíssimos. Uma Proposta de Emenda à Constituição, a de nº 383/2014, prevê explicitar no art. 170 da Constituição Federal que a ordem econômica será regida pelo capitalismo humanista, como filosofia regente de direito econômico, preconizada por RICARDO SAYEG e WAGNER BALERA.
No plano da atividade judicante dos tribunais, tem-se o acórdão pioneiro da 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de São Paulo, na Apel. Cível nº 991.06.054960-3, onde Relator o Des. MOURA RIBEIRO, atual presidente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. No julgamento, de 30.09.2010, foi introduzida pela primeira vez, a teoria do capitalismo humanista, havendo-se por descaracterizar a mora diante de fato que não poderia ser imputado aos devedores. Mais precisamente, assinalou-se:
“A grave doença de um filho acometido por leucemia e que em virtude dela faleceu é fato que desconcerta a vida financeira de qualquer família e serve para caracterizar o caso fortuito, permitindo o afastamento da mora dos devedores no período da moléstia”. (03)
Em menos palavras, a doença nesse tempo foi o fato necessário cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir, aplicando-se, às expressas, o parágrafo único do art. 393 do Código Civil.
A doutrina assinala que "a culpa é essencial à constituição em mora, pois, em seu verdadeiro conceito, esta é um retardamento imputável ao devedor”. De efeito, "não há mora do devedor quando inexistente culpa sua e inexistindo mora, descabe condenar em juros moratórios e em multa". Eis o axioma decisivo.
Em ser assim, aos novos tempos submetidos às consequências legadas pelo coronacrise, todas as latitudes de endividamentos das famílias, a partir do período da pandemia, reserva-se entender aplicável a teoria do capitalismo humanista; como instrumento de coesão e solidariedade social em solução de conflitos econômicos e contratuais.
O direito, em sua autonomia, na atual sociedade complexa, notadamente a de consumo, não pode ficar estranho da realidade social, como fato jurídico e ao instrumentário dos problemas da pós-pandemia. E o melhor direito avizinha-se com a aprovação do PL 3515/2015, de inspiração no anteprojeto formulado por CLAUDIA LIMA MARQUES.
Nele, a pessoa do consumidor, como capital humano, deve ser preservada como o melhor capital da economia. Somente assim será o superendividamento afastado do quadro recessivo da economia das famílias do país e purgarão elas a mora de suas vidas deficitárias.
Anotações:
(01) A propósito: SANTOS, Ana Cordeiro (Org.). Famílias endividadas. Uma abordagem de economia política e governamental. Coimbra: Editora Almedina, 2015, 162 p.
(02) MIRAGEM, Bruno. A pandemia de coronavirus, Alteração das Circunstâncias e o Direito de Emergência sobre os contratos. In: CARVALHOSA, Modesto. KUYEN, Fernando. (Coord.) Impactos Jurídicos e Econômicos da Covid-19. São Paulo: Ed. RT, 607 p.; pp-137-152.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)
Fonte: Consultor Jurídico, 02.08.2020
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