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Contratos familiares: cada família pode criar seu próprio Direito de Família
Contratos familiares: cada família pode criar seu próprio Direito de Família
Dimitre Braga Soares de Carvalho[1]
1. Um novo olhar sobre a contratualização da família.
A configuração atual da família e do Direito de Família, no Brasil e no mundo, vem enfrentando profundas e intensas transformações, sobretudo nas últimas duas décadas. Mudanças nos papéis dos membros da família, aumento da expectativa de vida das pessoas, rediscussão do gênero, evoluções demográficas, transformações da privacidade, redimensionamento da sexualidade, plena independência feminina, avanços na medicina reprodutiva e a presença constante e cada vez maior da tecnologia na vida das pessoas são apenas alguns fatores que influenciam a família brasileira contemporânea[2].
Novos projetos afetivos e modelos de família vão surgindo, concomitantes às mudanças que estão acontecendo na sociedade. Em muitos casos, o Direito de Família previsto na lei já não é suficiente para resolver as questões próprias desse momento histórico, com suas singularidades, conquistas e realidades. As expectativas das pessoas em relação ao vínculo afetivo, casamento, filhos e vida em comum estão em franco processo de modificação. As novas gerações demandam a construção de regras específicas de Direito de Família para cada uma delas, respeitando as opções e as peculiaridades de cada indivíduo, bem como de cada agrupamento familiar.
Antigamente as regras serviam para “toda a vida”. Casava-se para viver “até que a morte os separe” ou para “ser feliz para sempre”. Atualmente, ao contrário, as regras devem servir para cada ciclo de vida familiar.[3] Por essa razão, faz-se necessário, dividir os contratos de Direito de Família em grupos, cada um representando um desses ciclos de existência de um casal ou entidade familiar. O tempo passa, as coisas mudam, também para as famílias. Para as novas gerações, é necessário um novo Direito de Família.
Da reunião desses elementos em ebulição, são geradas consequências pontuais para o estudo do Direito de Família, com destaque para o reconhecimento da privatização do Estado, por meio da diminuição de seu espaço de atuação no âmbito da privacidade familiar; na desisntitucionalização da família; da existência de um fenômeno de judicialização das relações familiares; da não aplicação deliberada de normas positivadas ( modalidade de desobediência civil); da possibilidade de discussão sobre a existência de um “Direito de Família mínimo” e do franco reconhecimento dos espaços do “não-direito” no âmbito do Direito de Família brasileiro.
Entende-se, portanto, que as regras de convivência precisam ser definidas pelo próprio casal ou grupo familiar, ao invés de serem impostas pelo Estado. O caleidoscópio da família contemporânea é constituído por relações menos duradouras, baseadas sobretudo no afeto e no amor envolvido, valorizando as individualidades e os reais desejos enredados. O caminho trilhado por Jean Carbonier, no sentido de que “a cada família é dado o seu próprio Direito de Família”, faz pensar, mais uma vez, sobre o papel do Estado Moderno na organização e preservação da estrutura familiar[4].
O Direito de Família, contemporaneamente, deve ser visto como manifestação máxima da liberdade jurídica. Vivemos a época da subjetivização da família e do próprio Direito de Família. Compreende-se que cada um pode escolher e definir o que família deve significar na sua vida, sobretudo através de contratos não patrimoniais.[5] Aposta-se, desse modo, na diminuição dos espaços de regulação estatal no âmbito das famílias e na plena autonomia de vontade das partes nas relações privadas. Cada família pode criar seu próprio Direito de Família? Por que não??
Entretanto, cumpre lembrar: nenhum contrato afetivo ou de família pode desrespeitar a dignidade humana dos envolvidos, tratar homens e mulheres de forma diferente, viabilizar distorções por questões de gênero, tolerar qualquer tipo de violência física, psicológica ou patrimonial, ou deixar de observar os direitos e garantias constitucionais de crianças, adolescentes, idosos, portadores de deficiência ou qualquer outro grupo em situação de vulnerabilidade.
2. A crise do Direito de Família codificado e a substituição da norma legislada pela norma construída pela vontade das próprias partes.
A chamada “família pós-moderna” transforma a estrutura familiar tradicional, tornando-a mais maleável, adaptável aos conceitos atuais da humanidade. É certo que, nesse contexto de pós-modernismo, a desconstrução das tradições foi levada ao máximo da sua potencialidade, associada ao individualismo extremo dos nossos tempos. A complexidade de tantas mudanças, em paralelo ao um conjunto incrível de intensas transformações também na área da tecnologia impulsionaram renovada ótica das relações interpessoais, mesmo sem que se saiba, exatamente, se advieram vantagens ou desvantagens de tantas modificações. A intimidade ganha novos contornos, chegando a obter ares de supremacia. A família se desinstitucionaliza, ao passo em que se instrumentaliza.
É necessário reconhecer (mesmo em face dos conservadorismos permanentes na sociedade) a concepção subjetivista da família, segundo a qual cada pessoa tem o direito de direcionar sua afetividade da maneira que pensar mais adequada, surgindo, daí, um amplo leque de possibilidades de constituição de família.
Essa tendência propicia uma ampliação do campo da privacidade e da intimidade, simultaneamente quando diminui a influência dos princípios de ordem pública (considerados contrários ao ideal da liberdade). A organização jurídica da família e o direito matrimonial passam a ser vistos como aspectos jurídicos em franca decadência, posto que regulamentam aspectos da vida familiar de maneira padronizada, estandardizada, tolhendo as manifestações individuais de afeto e relacionamento sexual.
Diante de tal relativismo, o Direito, sobretudo o Direito de Família (possivelmente este em muitos campos com mais razão do que os outros ramos de Direito) tem-se transformado num direito individual, num direito de caso concreto que, quando gera normas, as gera através de modelos contratuais, de negociação entre sujeitos privados.
O sistema jurídico de Direito de Família precisa ser analisado como um fenômeno de “ação e reação”, evidenciado pela “ordem e desordem” da organização social, identificado pela admissibilidade da desobediência civil à lei ou ato de autoridade. Isto é, a lei – produto da razão legislativa – e a perda da autoridade da lei, fenômeno atual, alimentado pela descaracterização da representatividade legislativa, a emergência de grupos minoritários que reclamam normatividade própria, a pluralidade de formas de família, as comunicações de massas, a problemática da sociedade consumista, a liquidez das relações interpessoais, a contestação aos valores morais clássicos, etc.
Do ponto de vista do Direito de Família, contemporaneamente, é possível afirmar que o afastamento progressivo da norma é uma forma de desobediência civil. Seria uma maneira de expressão do direito de resistência. Nessa característica peculiar, amolda-se nitidamente o fenômeno de perda de significado e importância que o Direito de Família positivado vem enfrentando. O que subjaz, então, é que a desobediência civil no Direito de Família funciona, na perspectiva jurídica, como mecanismo de aferição e – por que não dizer – de controle dos critérios de justiça/injustiça das normas que regem a sociedade contemporânea
A necessidade de reconhecimento pleno da autonomia privada nas relações da família fundamenta-se, exatamente, a partir da distorção entre as situações jurídicas previstas nas normas e o descompasso da realidade social. A perda da referência legal do sistema normativo da matéria, acompanhada da avassaladora construção jurisprudencial dos últimos vinte anos, tem feito surgir (no Brasil, assim como em praticamente todo o mundo ocidental) um Direito de Família jurisprudencializado, aproximando-se, no que é possível, ao sistema da Common Law. Vive-se um momento histórico ímpar, em que as decisões judiciais têm mais importância que a norma construída pelo Poder Legislativo. Derruba-se, assim, um dos paradigmas da modernidade, segundo o qual cabia apenas ao legislador a construção da norma. No Direito de Família hodierno, a “lei” é reconstruída e reinventada todos os dias, em nítida “liquidez” das normas jurídicas[6].
A crise do Direito de Família codificado e a judicialização das relações de família são fenômenos jurídicos vinculados e interdependentes. A judicialização, em grande parte, é decorrente da perda do poder simbólico e da franca diminuição do uso e da decrescente influência do Direito codificado no âmbito das relações de família. Desse modo, compreender que cada família pode construir seu próprio Direito de Família, é uma mudança radical no sistema jurídico brasileiro, que aponta a diminuição da importância estatal, desburocratiza a família, afasta a “inflação legal” (caracterizada pela produção cada vez maior de normas) e supervaloriza as convicções individuais acerca das suas próprias relações jurídicas.
3. Contratos familiares: modalidades.
Os modelos contratuais são aqui, brevemente, apresentados por grupos e podem ser aplicáveis em categorias distintas das originariamente elencadas, além da possibilidade de adaptação às circunstâncias de cada caso. O rol é exemplificativo. Nesta quadra histórica, cada família pode estabelecer suas próprias regras de convivência. Isso significa dizer que podem ser construídos pactos familiares que atendam as necessidades e os interesses de cada casal/ grupo familiar ao longo do tempo.
3.1. Contratos Pré-nupciais. Os contratos pré-nupciais ou pactos antenupciais são os contratos de família mais tradicionais no Direito brasileiro, e servem, inicialmente, para formalizar regras patrimoniais como regime de bens, doações entre os cônjuges e administração de bens particulares. Entretanto, a interpretação que vem sendo feita é, também, no sentido de que os contratos pré-nupciais servem para que as pessoas possam construir as regras de convivência da família que vai se constituir[7].
Na prática, um número muito maior de regras podem ser estipuladas através de pacto antenupcial, sobretudo regras não necessariamente patrimoniais ou econômicas, que são os chamados “pactos sobre direitos existenciais”[8]. Dentre eles, podemos destacar os seguintes: - instituição de Cláusula Penal (multa) nas hipóteses de ocorrência de violência doméstica; - negócios sobre a distribuição do trabalho doméstico; - pactos que disciplinem os cuidados com os filhos, horas de dedicação às atividades escolares em casa e acompanhamento nas atividades extracurriculares; - acordos sobre relações sexuais: frequência das relações/ número de relações por semana ou mês/ estabelecimento da monogamia como regra (ou não), dentre outros.
3.2. Contratos Intramatrimoniais ou repactuação de convivência. Um acordo pós-nupcial (ou no termo que propomos mais adequado: “intramatrimonial”) é essencialmente a mesma coisa que um acordo pré-nupcial: serve para definir regras patrimoniais e de convivência ao longo do relacionamento. A única diferença é o momento em que ele é realizado. Um acordo pós-nupcial é assinado durante o casamento ou da união estável, e não antes, como ocorre nos pactos antenupciais.
Estes contratos podem ser uma opção favorável para pessoas/casais que, a despeito de enfrentarem dificuldades ao longo da relação afetiva, não desejam terminar o casamento ou sua união estável, mas gostariam de tornar o vínculo mais forte, interessante e adaptado às mudanças que o tempo impõe na vida de cada indivíduo.
Notadamente para questões patrimoniais, o reacerto de regras é decisivo para a vida econômica do casal/família, ao longo da convivência, sobretudo para evitar fraudes econômicas na constância da vida familiar.
É importante lembrar que em todos os relacionamentos, muitas questões decisivas sobre a outra pessoa ou sobre a organização da família somente podem ser descobertas e compreendidas com o passar do tempo, ao longo da convivência. Daí a necessidade de um ajuste, durante o caminho, para que as coisas fiquem mais confortáveis e seguras para todos os envolvidos.
Algumas pactuações tem por finalidade dar mais segurança econômica ou patrimonial ao casal ou aos membros da relação individualmente considerados. Já outras podem ser de ordem existencial, a fim de “corrigir a rota” do relacionamento, alterar regras internas de convivência, rediscutir regras sobre a sexualidade do casal ou da entidade familiar, atualizar as preferências e consolidar as mudanças de estilo de vida, profissionais e pessoais de cada um dos envolvidos na relação. Serve, no mais das vezes, para fortalecer o próprio relacionamento conjugal.
3.3. Contratos pré-divórcio ou prévios à dissolução da união estável. Muitas vezes, o fim do casamento ou da união estável é iminente e irreversível. Por motivos pessoais, traições ou diversas outras razões, os relacionamentos afetivos chegam ao fim. Nesse momento de instabilidade emocional e de incertezas sobre o futuro, é fundamental que as partes envolvidas consigam estabelecer quais as metas e os caminhos a serem percorridos quando do ponto final do relacionamento.
É necessário superar a antiga visão de que o divórcio significava uma guerra entre ex-companheiros que se tornavam inimigos, sobretudo quando há filhos comuns. Torna-se precípuo criar normas para que o divórcio (ou dissolução de união estável) seja consensual, não litigioso ou com o mínimo de disputas processuais possíveis. Identicamente se pode fazer escolhas processuais que diminuam a duração das ações, estipulem limitação de recursos, a fim de que os processos não eternizem a disputa pela dissolução da antiga família. Os acordos sobre procedimentos nas ações de família são uma tendência alvissareira.[9]
Alguns casais também são também sócios de empresas, e precisam estipular caminhos para que o fim do relacionamento afetivo não implique dissolução do negócio e ampliação dos prejuízos econômicos. A utilização de bens comuns, a partilha inicial dos bens e acertos para fixação de eventual pensão alimentícia também podem ser objeto desses acordos de pré-divórcio.
Ainda é possível incluir, por exemplo, questões relativas a não realização de atos de alienação parental, restrições de publicações em redes sociais, regras sobre a guarda dos filhos, cláusulas de reajuste de alimentos a cada ciclo de tempo ou termo, possibilidade de nomear um “representante” ou “administrador” para gerir as decisões do casal acerca do divórcio ou hipóteses de arbitragem em Direito de Família.
3.4 Contratos pós-divórcio ou pós-dissolução de união estável. Os contratos pós-divórcio ou pós-união estável tem por finalidade reajustar, sempre que necessário, os acordos ou decisões que foram estabelecidos quando do fim do relacionamento afetivo. Dizem respeito à manutenção e construção de uma convivência harmônica entre pessoas que mantem, mesmo após o divórcio ou dissolução da união estável, vínculos jurídicos em comum. É o caso de cuidados com filhos, pessoas portadoras de deficiência, utilização de bens comuns, gestão compartilhada de negócios de titularidade dos ex-cônjuges ou companheiros, mudança de domicílio para outras cidades /países ou reajustamentos periódicos de pensões alimentícias.
Os contratos pós-divórcio representam muito bem a proposta de construção progressiva de normas jurídicas para famílias, ao longo do tempo. Esse é o caminho para exercer a autonomia plena da vontade das partes, manter o equilíbrio afetivo e o respeito entre os envolvidos.
3.5. Outros contratos. Além dos modelos acima indicados, cumpre lembrar que outros contratos são possíveis de serem criados. Alguns contratos podem ser estipulados para grupos específicos, situações especiais ou determinadas ocasiões. A ideia, na verdade, é construir modelos contratuais que possam estar cumprindo, de forma rigorosa, as normas da legislação brasileira, mas que atendam aos interesses específicos de cada casal, grupo ou família.
4. Validade, invalidade e cumprimento dos contratos familiares.
A confiança é o cimento das relações humanas. Segundo Clóvis do Couto e Silva, a obrigação “é um processo que se desenvolve rumo ao adimplemento”[10]. Nos contratos de Direito de Família não poderia ser diferente. O inadimplemento mantém o devedor preso e vinculado à obrigação sucessiva de indenizar, mesmo quando negociados os direitos de personalidade;
Afastar a “pacta sunt servanda” das relações contratuais de Direito de Família geraria crise de confiança, fragilizaria a autonomia da vontade e descaracterizaria o significado dos próprios direitos da personalidade envolvidos nas negociações. Isto é, o vetor da confiança, através da estabilização das expectativas criadas e da previsibilidade dos negócios jurídicos, reforça a própria autonomia dos direitos de personalidade envolvidos nos contratos familiares.
A questão da validade dos contratos familiares é, portanto, preponderante. Para Gustavo Tepedino, os negócios patrimoniais de família são válidos em regra. Os negócios existenciais de família, por sua vez, são passiveis de “sindicância” judicial, levando-se em conta as peculiaridades da situação, a realidade das partes e a dimensão jurídica dada aos negócios.[11]
Já para Jorge Duarte Pinheiro, especificamente sobre acordos em matéria de sexualidade, os pactos de abstinência duradoura seriam inválidos, tomando por base a tese de que a relação sexual constitui o núcleo intangível da comunhão conjugal. Já os acordos cujo teor exceda o padrão mínimo, prevendo uma frequência elevada das relações sexuais, é válido, pois é motivado por uma procura conjunta de bem estar e que permite o aprofundamento da ligação do casal[12].
Para Pontes de Miranda, as questões patrimoniais são a essência do pacto antenupcial. Outras matérias, caso tratadas, serão consideradas “negócio jurídico comum”, o que permitiria viciações só parciais, consequências diferentes das nulidades e outros acidentes incontagiáveis ao todo do negócio jurídico. Nas hipóteses de eventual nulidade, mesmo com uma concepção clássica e conservadora da matéria, o mestre alagoano reforça a possibilidade de verificação, no caso concreto, da viabilidade jurídica de cada pacto, levando em consideração as concepções dominantes no círculo social em que o negócio haverá de ter eficácia, antecipando em muitas décadas a perspectiva do multiculturalismo, tão em voga na atual quadra histórica. [13]
Assim, havendo necessidade de manifestação judicial, caso existam conflitos de interesses nos contratos de Direito de Família, dois parâmetros podem auxiliar o Estado a realizar a ponderação que a circunstancia exige, evitando decisionismos judiciais e alimentando a segurança jurídica. Tanto um como outro parâmetro interpretativo comportam diversas discussões teóricas e práticas (cujos aprofundamentos não são possíveis nos propósito introdutórios desse artigo), mas é pertinente os apontar.
O primeiro, indicado por Daniel Sarmento, diz respeito a averiguar o grau de desigualdade fática entre os envolvidos. Dessa forma, haveria eventual intervenção judicial a fim de verificar se as partes estariam em níveis compatíveis de equilíbrio contratual. Sustenta o autor que, nos casos envolvendo questões existenciais, a autonomia privada terá um peso maior do que nos casos concernentes a questões econômico-patrimoniais. Além disso, nesses últimos casos, a proteção da autonomia privada em face de um eventual direito fundamental restringido deverá variar em função da essencialidade do bem envolvido. A importância desse critério consiste justamente na tentativa de evitar um “totalitarismo dos direitos fundamentais” ou a “homogeneização forçada do comportamento individual a partir de pautas tidas como ‘politicamente corretas’, às custas do pluralismo e da própria dimensão libertadora que caracteriza os direitos fundamentais” [14]
Já o segundo, conhecido como “critério de essencialidade do bem jurídico” de Teresa Negreiros, constitui parâmetro objetivo para fundamentar necessária decisão judicial sobre o cumprimento (ou não) nos contratos de Direito de Família.[15] A elegante perspectiva da professora carioca enfrenta a questão sobre a hierarquização abstrata daquilo que é supérfluo, útil ou essencial à vida das pessoas, ao longo do tempo, ressaltando-se a mudança que as vontades sofrem com o passar da vida e da experiência humana.
Já sobre o cumprimento e satisfação dos contratos familiares, necessário lembrar que, em se tratando de obrigações personalíssimas (que por sua natureza não podem ser exigidas coercitivamente) o inadimplemento será contabilizado tão somente pela cláusula penal. Por respeito aos Direitos Fundamentais, a aferição do cumprimento (ou não) de obrigações de cunho íntimo não pode ser objeto de averiguação judicial, sobretudo se tal perquirição invadir a privacidade e ferir a dignidade humana das partes envolvidas. Convém analisar a questão a partir da perspectiva de obrigações como “deveres extrajurídicos”, ou como “relações jurídicas relevantes”, ou seja, são realidades que fogem ao paradigma clássico da codificação, pois estão assentadas em uma nova concepção de bens jurídicos[16].
Por fim, apenas para fins de registro, igualmente poderiam ser utilizados, com o intuito de, pedagogicamente, levar ao cumprimento dos contratos familiares, os instrumentos disponíveis no próprio Código Civil brasileiro: as modalidades de “cláusulas penais”, aplicáveis no âmbito do Direito de Família (cláusula penal moratória e clausula penal indenizatória), a “indenização suplementar” e as “astreintes”.
5. Conclusões.
A marcante questão levantada por Jean Carbonnier (“Para onde vai a família”?) é a tônica da discussão contemporânea sobre o papel do Direito de Família e, sobretudo, qual a exata relação entre o Direito de Família e a família de nossos tempos[17]. O crescente individualismo presente na família atual - que muitos autores utilizam para identificar que esse seria um fenômeno “pós-moderno” – estaria estabelecendo, progressivamente, o espaço do “não direito” na esfera das relações de família.
Segundo esse raciocínio, seria possível delimitar o ambiente do “direito” e o ambiente do “não-direito” nas relações interpessoais, sendo o Direito de Família, por essência, neste momento histórico, o espaço do “não direito”, posto que essa tendência estaria de acordo com a escala evolutiva que o ramo familiarista vem experimentando, no Brasil, desde a segunda metade da década de 1980.
Compreende-se que, dentre os valores básicos da pós-modernidade, destaca-se o reconhecimento do multiculturalismo, da pluralidade de estilos de vida, e a negação de uma pretensão universal à maneira própria de ser. Ou seja, é a aceitação do “não conciliável”. Na perspectiva do Direito de Família, o pluralismo significa ter à disposição alternativas, opções e possibilidades jurídicas para solucionar casos concretos que demandam intervenção do Poder Judiciário. A experiência brasileira da construção de direitos para as famílias é, por natureza, intrínseca, complexa e diversificada.
A identidade cultural que marca a história da formação da família brasileira apresenta características muito próprias e realça a intensa miscigenação de raças e culturas. Há direitos de ordens diversas, decorrentes das condições regionais, econômicas, climáticas e da sua formação sócio-cultural. Aliada à peculiar formação do povo brasileiro, justapõe-se a influência dos fatores externos e estandartizantes que influenciam na construção de uma cultura de Direito de Família multicultural e pluralizada.
A par das transformações de ordem teórica e metodológicas, houve um lento e gradual processo de subjetivização das relações afetivas na sociedade ocidental e, de modo particular, na sociedade brasileira. Tal processo autorizou a criação de uma maneira particularizada de pensar as relações afetivas e de família, com uma liberdade jamais imaginada, relegando ao ostracismo, cada vez mais, as normas codificadas sobre Direito de Família, que remanesceram focadas muito mais em aspectos patrimoniais que pessoais dos direitos resguardados.
Ato contínuo, a jornada evolutiva do Direito de Família brasileiro, alicerçada nas premissas que lhe moldam a forma e lhe atribuem cor especial, aponta para a contratualização plena das relações de família como sua próxima fronteira. Por óbvio, tal liberdade não é ilimitada, e precisa ser ungida de validade e de possibilidade de cumprimento contratual de forma legal, apostas que são cerceadas, rigorosamente, pelos princípios constitucionais do respeito à dignidade humana das pessoas, do culto à liberdade, da proibição de tratamentos discriminatórios, do respeito máximo à igualdade entre homens e mulheres, da supremacia dos melhor interesse de crianças e adolescentes e da proteção aos vulneráveis. Dentro desses padrões de limitação, não há dúvidas de que cada família, pode sim, construir seu próprio Direito de Família.
6. Referências Bibliográficas.
CARBONNIER, Jean. Derecho Flexible: para una sociología no rigurosa del derecho. Madrid, Editorial Tecnos, 1974.
CALMON, Rafael. Direito das famílias e processo civil. São Paulo, Saraiva, 2017.
CARVALHO. Dimitre Braga Soares de. A crise do Direito de Família codificado no Brasil. Curitiba Juruá, 2019.
GROSSMAN, Joanna L., FRIEDMAN, Lawrence Meir. Inside the Castle : Law and the Family in 20th Century America. Princeton University Press, 2011, p. 22.
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de Direito de Família, Vol. II. Campinas, Bookseller, 2001
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de janeiro: Renovar, 2006.
HASDAY, Jill Elaine. Family Law Reimagined. Cambridge, Massachusetts : Harvard University Press. 2014.
PINHEIRO, Jorge Duarte. O Direito de Família contemporâneo. Lisboa: Almedina, 2017.
PINHEIRO, Jorge Duarte. O Núcleo Intangível da Comunhão Conjugal. Os deveres sexuais conjugais. Lisboa: Almedina, 2004
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
SILVA, Clóvis do Couto. A obrigação como processo. Rio de Janeiro : Editora FGV, 2006.
SWENNEN, Frederik (coord). Contractualisation of Family Law – Global Perspectives. Suíça: Stranger International Publishing, 2015.
TEPEDINO, Gustavo. Contratos em Direito de Família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Tratado de Direito de Família. Belo Horizonte: EDITORA IBDFAM, 2019.
[1] Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e da UNIFACISA. Advogado especializado em Direito de Família e Sucessões. Pós-Doutor em Direito Civil pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco – PPGD/UFPE. Membro do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas – CONREP.
[2] “The law shapes all of our lives, even when we do not realize it is there. it decides who has rights to what, who can make enforceable claims on whom, who is entitled and who is not. Family life is sometimes pre-sumed to be a realm so private and intimate as to be beyond the law’s power.(...) Family law questions are perennial subjects of popular fascination, political contestation, and legal dispute. Countless judges, legislators, regulators, lawyers, advocates, and individuals face family law issues every day, family law cases fill a substantial proportion of court dockets,2and law schools offer family law courses every semester. yet despite its significance, family law remains remarkably undertheorized and poorly understood.” HASDAY, Jill Elaine. Family Law Reimagined. Cambridge, Massachusetts : Harvard University Press. 2014, p. 12.
[3] “Families, like people, are born, grow, and die”. GROSSMAN, Joanna L., FRIEDMAN, Lawrence Meir. Inside the Castle : Law and the Family in 20th Century America. Princeton University Press, 2011, p. 22.
[4] CARBONIER, Jean. Derecho Flexible: para una sociología no rigurosa del derecho. Madrid, Editorial Tecnos, 1974, p. 18.
[5] SWENNEN, Frederik (coord). Contractualisation of Family Law – Global Perspectives. Suíça: Stranger International Publishing, 2015.
[6] CARVALHO. Dimitre Braga Soares de. A crise do Direito de Família codificado no Brasil. Curitiba Juruá, 2019, p. 11.
[7] Nesse sentido, o teor do enunciado nº. 635 da VIII Jornada de Direito Civil do CJF: “O pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar.”
[8] “No Direito de Família, a dimensão pessoal prevalece sobre a patrimonial. Apesar do peso dos aspectos patrimoniais, é a vertente pessoal que marca o regime da relação familiar. Na óptica legal, a constituição da relação conjugal não é um meio de aumentar o patrimônio ou de prover as futuras necessidades econômicas; destina-se a criar uma comunhão tendencialmente plena de vidas, uma comunidade de pessoas, não de bens. (...) O que se pretende é que , num primeiro momento, haja um espaço de vivência pessoal comum e, depois, num momento de maior autonomia dos filhos perante os pais, que haja um relacionamento pautado por valores imateriais”. PINHEIRO, Jorge Duarte. O Direito de Família contemporâneo. Lisboa: Almedina, 2017, p. 58.
[9] “A liberdade convencional é consideravelmente ampla. Como resultado, as partes podem tanto criar um procedimento específico quanto promover mudanças no rito criado pelo legislador ou meramente convencionar sobre seus respectivos ônus, poderes, faculdades e deveres processuais estabelecidos pela lei. (...) Não é preciso que exista um processo em andamento, porém, para que tais acordos sejam celebrados. Daí se poder falar em convenções ajustadas prévia ou incidentalmente ao processo. Acordos pré-processuais ou processuais, portanto.” CALMON, Rafael. Direito das famílias e processo civil. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 190.
[10] SILVA, Clóvis do Couto. A obrigação como processo. Rio de Janeiro : Editora FGV, 2006.
[11] TEPEDINO, Gustavo. Contratos em Direito de Família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Tratado de Direito de Família. Belo Horizonte: EDITORA IBDFAM, 2019.
[12] PINHEIRO, Jorge Duarte. O Núcleo Intangível da Comunhão Conjugal. Os deveres sexuais conjugais. Lisboa: Almedina, 2004, p. 145.
[13] Em passagem memorável, ensina o mestre Pontes de Miranda, referindo-se aos contratos familiares: “Cabe ao juiz auscultar a ordem jurídica, apreciando o ato ou a cláusula, conforme concepções dominantes no seu círculo social. Alias, o círculo social que ele ausculta não é necessariamente o do lugar em que o pacto antenupcial terá eficácia.” MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de Direito de Família, Vol. II. Campinas, Bookseller, 2001, p. 34.
[14] “Quanto maior for a desigualdade, mais intensa será a proteção ao direito fundamental em jogo e menor a autonomia privada” SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 187.
[15] “Não é possível hierarquizar de forma abstrata aquilo que é supérfluo, útil ou essencial, pois as vontades humanas de pessoa para pessoa, e mesmo uma só pessoa, ao longo da vida, pode experimentar necessidades contingentes. A destinação do bem na concretude do contexto determinará a incidência de um regime mais ou menos intervencionista sobre a relação contratual”. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de janeiro: Renovar, 2006. p. 62.
[16] Como lembram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, a tutela das situações existenciais demanda a preservação dos bens jurídicos que emanam da dignidade de cada ser humano. Trata-se de bens jurídicos que escapam à lógica da da apropriação. A remodelação conceitual do bem jurídico não se limita à aferição de sua expansão no setor dos direitos da personalidade e da tutela de uma esfera jurídica, pois as relações contratais se submetem ao quadro de valores constitucionais (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Tradicionalmente, qualquer bem jurídico revelava aspirações puramente patrimoniais. Todavia, a inserção do ser humano como fundamento e fim do ordenamento jurídico provoca a refundação da teoria do patrimônio, porquanto a proteção das necessidades humanas se converte em critério e medida do contorno dos bens jurídicos. Farias, Cristiano Chaves; Rosenvald, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011.
[17] “Há cem anos, os cientistas perguntavam de onde vem a família; hoje eles perguntam para onde ela vai”. CARBONNIER, Jean. Derecho Flexible: para una sociología no rigurosa del derecho. Madrid, Editorial Tecnos, 1974, p. 84.
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