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Divórcio unilateral liminar: por que não?
Divórcio unilateral liminar: por que não?
José Eduardo Coelho Dias[1]
RESUMO: Visando fomentar a discussão acerca do denominado divórcio liminar, o artigo faz breve digressão histórica sobre o divórcio no Brasil, desde o Código Civil de 1916 até a Emenda Constitucional n. 66/2010, que o converteu em direito potestativo e extintivo. Discorre sobre a busca pela modalidade no País, destacando alguns fatores que podem causar demora excessiva na tramitação dos feitos e demonstra que o Código de Processo Civil atual, ao contemplar a técnica do julgamento antecipado parcial do mérito e a tutela de evidência, abre caminho para sua decretação. Conclui no sentido de que o divórcio unilateral liminar não só é possível juridicamente quanto desejável.
Palavras-chaves: Divórcio unilateral liminar. Julgamento antecipado parcial do mérito. Tutela de evidência.
ABSTRACT: In order to foster the discussion about the so-called preliminary divorce, the article makes a brief historical digression about divorce in Brazil, since the Civil Code of 1916 until the Constitutional Amendment n. 66/2010, which converted it into a potestative and extinct right. It discusses the search for the modality in the country, highlighting some factors that may cause excessive delay in the processing of the facts and demonstrates that the current Civil Procedure Code, when contemplating the technique of partial early judgment of the merits and the protection of evidence, opens the way for its decree. It concludes that unilateral preliminary divorce is not only legally possible but also desirable.
Keywords: Unilateral preliminary divorce. Partial early judgment of the merits. Evidence tutelage.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Divórcio no Brasil. 3. A busca pelo divórcio unilateral. 4. Julgamento antecipado parcial do mérito em sede de tutela de evidência. 5. Conclusão. 6. Referências.
1. Introdução
Nos últimos dias os sites especializados em notícias jurídicas vêm alardeando como novidade o deferimento, por magistrado de primeiro grau, de tutela provisória de evidência para decretar o divórcio de um casal sem oitiva da parte contrária. O tema, apesar de pouco discutido, não é exatamente uma novidade, como será visto adiante.
O objetivo do presente é demonstrar a possibilidade jurídica de decretação do denominado divórcio liminar, o que busca fazer com a utilização do método dedutivo. Não tem o autor, evidentemente, a menor pretensão de esgotar o tema, mas tão somente oferecer sua modesta contribuição com escopo de fomentar um debate que pode ser de extrema relevância social, visto que toca num dos pontos mais sensíveis dos casais que decidiram pôr fim à conjugalidade: o sofrimento causado pelo longo tempo que normalmente separa o aforamento da petição inicial e a decretação do divórcio.
A par da relevância social, a divergência que se verifica sobre a questão tanto na doutrina quanto na jurisprudência justifica o aprofundamento do debate que aqui se propõe.
2. Divórcio no Brasil
Fortemente influenciado pelo Direito Canônico, o casamento era indissolúvel quando entrou em vigor o Código Civil de 1916, que previa, entretanto, o “desquite” como forma de desobrigar os cônjuges do cumprimento dos denominados “deveres do matrimônio”, determinar a separação de corpos e extinguir o regime de bens, sem, contudo, determinar a extinção do vínculo matrimonial.
Somente com a promulgação da Emenda Constitucional n. 09, de 28 de junho de 1977 o divórcio passou a ser admitido no Brasil, assim mesmo condicionado à prévia separação judicial por mais de três anos e nos casos expressamente previstos em lei, ou seja, a dissolução do casamento era ato condicionado.
Se é certo que a Constituição de 1988 trouxe uma nova concepção de direito civil, menos patrimonializado, com ênfase na pessoa humana, ampliando o campo de atuação da autonomia privada, fundando, ainda, uma nova concepção de família, formada não apenas pelo casamento, mas também pelas uniões estáveis e indo além ao tornar dispensável a figura do “casal” para existir, como é o caso, por exemplo, das famílias monoparentais, inaugurando a igualdade jurídica entre homem e mulher e entre filhos havidos ou não do casamento ou por adoção, abolindo as denominadas famílias ilícitas e emprestando à família um caráter mais instrumental que institucional, certo, também, que não conseguiu dar tratamento adequado à ruptura da relação, que ainda ficou condicionada ao atendimento de requisitos legais concebidos a partir de uma moral atrelada à visão religiosa, que tem o laço como indissolúvel.
Somente em 2010, com a promulgação da Emenda Constitucional n. 66, os casais ficaram livres das amarras estatais e da persecução da culpa, passando o divórcio a ser ato meramente potestativo, incondicionado e extintivo.
3. A busca pelo divórcio unilateral
As tentativas de viabilizar o divórcio sem a necessidade de aguardar a penosa tramitação regular do rito ordinário não é nem nova, nem desarrazoada. Ajuizamento, autuação, despacho inicial, mandado de citação, oficial de justiça, endereços confusos, requeridos que não são encontrados, comunidades de difícil acesso, casas sem número, gente que se esquiva da citação, prazos, feriados, férias forenses, resposta, pauta de audiência...
Quanto tempo pode demorar um divórcio? Quanto alguém que já colocou uma pá de cal sobre sua relação afetiva precisa aguardar para que seu registro civil reflita sua realidade?
Não fizemos nenhum levantamento estatístico, mas a prática na advocacia ensina que a espera é longa.
Casos pitorescos já se espalharam pelas redes sociais por conta disso. Quem não se lembra da “Cleusa de mala e cuia”, a cabelereira que depois de esperar por mais de vinte anos que seu ex-marido assinasse o divórcio, ameaçou invadir a casa em que este morava com a nova companheira e retomar a vida de casada, acendendo a discussão sobre o divórcio impositivo, que chegou mesmo a ser institucionalizado em dois Tribunais até o Conselho Nacional de Justiça vetar a prática, como ensina Rodrigo da Cunha Pereira em seu site na internet?
Em 2014 o site Migalhas noticiou o que seria o primeiro caso de divórcio unilateral deferido em sede liminar no Brasil, o que revela que a discussão antecede até mesmo ao novo Código de Processo Civil.
Mas, afinal, nosso ordenamento jurídico permite ou não a concessão liminar de divórcio unilateral?
Apesar de vozes potentes em sentido contrário, temos a convicção de que, sim, isso é possível.
4. Julgamento antecipado parcial do mérito em sede de tutela de evidência.
Uma das grandes inovações processuais trazidas com o CPC é o chamado julgamento antecipado parcial do mérito, insculpido nos incisos I e II, do artigo 356.
Por meio dessa técnica processual, que fragmenta o julgamento da causa, passa a ser faculdade do juiz decidir parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados (ou parcela deles) mostra-se incontroverso e/ou estiver em condições de imediato julgamento, em virtude da desnecessidade de produção de outras provas ou da revelia, em que se reconheça a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor e o réu não tenha requerido a produção de provas (NCPC, arts. 344, 349, e 355, I e II).
Como dito acima, o divórcio pós EC 66/2010 passou a ser ato volitivo, que não comporta qualquer impugnação. Sequer a exigência de prévia partilha ou de cumprimento das obrigações assumidas na finada separação judicial são exigíveis, ou seja, não há contestação possível para o divórcio, o que insere o pedido no rol dos que permitem o julgamento antecipado parcial do mérito.
Por outro lado, o Código também prevê a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela quando “a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável”, nos termos do artigo 311, IV, do CPC.
Nada obstante o legislador não tenha incluído o referido inciso no rol do parágrafo único, não há, na verdade, qualquer óbice à concessão.
É que o inciso IV foi redigido partindo da premissa de que há defesa possível, o que não acontece no caso do divórcio.
De fato, como já anunciado antes, a partir da Emenda Constitucional 66/2010 o divórcio no Brasil passou a ser concebido como direito potestativo incondicionado e extintivo, razão pela qual não pode se considerar razoável obrigar a parte autora, que pediu a decretação liminar do divórcio litigioso, esperar o término das sessões de mediação e conciliação, bem como a irrelevante manifestação do réu no tocante ao pleito liminar, muito menos eventual defesa insubsistente dele quanto a essa matéria, já sabidamente incontroversa e irresistível, para só depois se chegar ao julgamento parcial do mérito com a concessão de tal tutela.
5. Conclusão
Demoramos muito tempo para tomar das mãos do Estado o poder de dizer quando o ápice da vida privada, a relação conjugal/afetiva, começará ou terminará. Com a Emenda Constitucional n. 66/2010, que retira definitivamente do Judiciário o direito de perquirir os motivos do desenlace, outorgando aos envolvidos o direito material subjacente a essa escolha, não faria o menor sentido renunciar a ele por conta de entraves naturais do processo ou formalidades inúteis, de índole meramente instrumentais.
O divórcio unilateral liminar não é apenas dotado de juridicidade, é uma necessidade social.
6. Referências.
BRASIL. Lei 3.071. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. 01 jan. 1916. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>. Acesso em: 18 de jun. 2020.
BRASIL. Emenda Constitucional n. 9. Dá nova redação ao § 1º do artigo 175 da Constituição Federal. 28 jun. 1977. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc09-77.htm>. Acesso em: 18 jun. 2020.
BRASIL. Emenda Constitucional n. 66. Dá nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos. 13 jun. 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc66.htm>. Acesso em: 18 jun. 2020.
BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, 16 de março de 2015. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 18 jun. 2020.
O DIA. 'Cleusa de mala e cuia' viraliza após ex negar assinatura de divórcio há 25 anos. O Dia. Disponível em <https://odia.ig.com.br/diversao/2019/05/5642207--cleusa-de-mala-e-cuia--viraliza-apos-ex-negar-assinatura-de-divorcio-ha-25-anos.html#foto=1>. Acesso em: 18 jun. 2020.
a
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Disponível em < http://www.rodrigodacunha.adv.br/divorcio-impositivo-o-que-e/>. Acesso em: 18 jun. 2020.
MIGALHAS. Primeiro divórcio por liminar é concedido na Bahia. Migalhas Quentes, 16 de jul. 2014. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/quentes/204387/primeiro-divorcio-por-liminar-e-concedido-na-bahia>. Acesso em: 18 de jun. 2020.
[1] Professor de Direito de Família e de Direito das Sucessões da Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim – ES e advogado militante. Especialista em Direito de Família. Membro do IBDFAM/ES. E-mail: joseedu@coelhodias.com.br. Lattes CNPQ: http://lattes.cnpq.br/7812032981087943
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