Artigos
Uma jurisprudência de família (re)construída na pandemia
Uma jurisprudência de família (re)construída na pandemia
Jones Figueirêdo Alves
O chão de vida das pessoas é normalmente o chão de suas casas, quando ali suas vidas são assentadas a partir da família. Construo essa metáfora indicando-a como um dogma íntimo que orienta o direito familista.
Segue-se, então, que a jurisprudência, ao equacionar a família conforme seu estado de vida experenciado, seja por interesses comuns ou por conflitos intrafamiliares existentes, deve, a tanto, ser o justo meio para uma justa medida do direito. A jurisprudência aperfeiçoa a lei; chega, muitas vezes, antes dela e o seu prestígio é o direito espontâneo.
Jean Cruet explicou: “A lei vem de cima: as boas jurisprudências fazem-se em baixo”, ponderando que “se a lei dissimula de maneira quase completa a vida espontânea do direito, não é verdade que a tenha inteiramente suprido”.
O tema ganha destaque, no tempo da pandemia, com uma jurisprudência da crise da Coronavid19, em seara do direito de família, edificando novos paradigmas ou um novo direito sobreprocessual. Diante das atuais situações emergenciais, tempo no Judiciário não é substantivo: transmuda-se ontologicamente em verbo. No Judiciário, o “ser-tempo”, na função de verbo, está no núcleo do princípio de acesso à justiça pelo viés de uma justiça otimizante.
Impõe-se, portanto, assinalar os recentes julgados, com uma jurisprudência (re)construída por novas percepções:
(i) Alimentos e Prisão civil.
1.Tudo começou com a análise prefacial do HC n° 566.021-CE, perante a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. O ministro Paulo de Tarso Sanseverino determinou: “considerando a gravidade da atual situação de pandemia pelo coronavirus – Covid19 – a exigir medidas para contenção do contágio e em atenção à Recomendação CNJ n. 62/2020, deve ser assegurado aos presos por dívidas alimentares o direito à prisão domiciliar” (23.03.20). Logo a seguir, a pedido da Defensoria Pública da União, a medida liminar foi estendida para todo o território nacional (26.03.20). Importa realçar que a importante decisão atendeu à situação daqueles já encarcerados por dívidas alimentares (02)
Bem de ver, por essencial, que (i) a Recomendação CNJ n. 62/6020, em seu artigo 6º, tratou de considerar “a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos”. A cláusula decisiva: “pessoas presas”; (ii) tratou-se de HC Coletivo apenas Liberatório e não também preventivo.
2. Sucede, adiante, o HC Coletivo nº 551311.7 do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Pernambuco também analisar a situação de demais devedores alimentantes, ainda não presos. Como Relator do pedido, entendi pela suspensão do cumprimento da ordem, sem o implemento imediato de medida substitutiva de prisão civil em regime domiciliar. Nesse passo, ultrapassado o prazo de 90 dias, as dívidas preexistentes e as demais do período protraído, autorizarão a prisão civil das parcelas impagas e acumuladas (26.03.20 e 04.05.20).
3. Nessa mesma linha do TJPE, posicionou-se o Min. Villas Boas Cuevas, do Superior Tribunal de Justiça, perante a 3ª Turma, ao denegar pedido de Habeas Corpus (01.06.20), afirmando, com precisão cirúrgica, que:
a) "Assegurar aos presos por dívidas alimentares o direito à prisão domiciliar é medida que não cumpre o mandamento legal e que fere, por vias transversas, a própria dignidade do alimentando. Não é plausível substituir o encarceramento pelo confinamento social — o que, aliás, já é a realidade da maioria da população, isolada no momento em prol do bem-estar de toda a coletividade";
b) Como não é possível a concessão da prisão domiciliar, admite-se, excepcionalmente, a suspensão da prisão dos devedores de pensão alimentícia em regime fechado, enquanto durar a pandemia”.
c) Isto é: "A prisão civil suspensa terá seu cumprimento no momento processual oportuno, já que a dívida alimentar remanesce íntegra, pois não se olvida que, afinal, também está em jogo a dignidade do alimentando – em regra, vulnerável". (03)
4. Pois bem. Afetado o julgamento do HC n. 566.021-CE, à 2ª Seção do STJ, para uniformização de jurisprudência, houve, em sessão de quarta-feira passada (10/06) de ser adiado para o próximo dia 24 de junho. O adiamento proposto pelo relator min. Paulo de Tarso Sanseverino fundou-se em duas premissas de base: a) o prazo de sanção do PL n. 1.779/20 vir a se encerrar naquele dia; b) em editada a lei dispondo sobre a questão, haver de se deliberar terá ela ou não efeitos retroativos (04).
5. Ocorre, logo em seguida, a edição da Lei nº 14.010/20, de 10 de junho (05).
O seu artigo 15 expressa: “Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528 § 3º e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações”.
Diante do teor do dispositivo, o que se tem de sua teleologia é o propósito incontroverso de impedir a prisão civil em regime fechado, como é de sua característica e essência, quando em atual momento de imensa gravidade de risco o devedor inadimplente ou recalcitrante ao cumprimento de suas obrigações alimentares estaria mais exposto ao coronavírus.
Como será incontroverso também entender que o art. 15 não poderá significar ou atrair estímulo ao inadimplemento do devedor, dentro do mesmo período. Eis a questão decisiva, por dignidade do alimentando.
6. Nessa esteira, questões subjacentes estão postas:
a) implica dizer, por implicitude, que o cumprimento da ordem terá de ser feito imediatamente após o decreto judicial da prisão civil, a sugerir o manejo incontinenti do regime domiciliar?
b) Ou poderá ser protraída a sua execução, suspensos os efeitos do decreto de prisão civil e/ou das demais prisões que venham ser decretadas, como já se posicionou a 3ª Turma do STJ?
c) Em hipótese anterior (b), o cumprimento da ordem terá sua incidência a partir de 31.10.20, ou a suspensão da prisão civil estará condicionada a tempo próprio, segundo o prudente arbítrio do juízo competente, conforme o adequado controle da disseminação do Covid-19, em sua jurisdição?
d) Como interpretar a cláusula “sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações”, diante da exata latitude do Enunciado 309 da Súmula 309 do STJ, uma vez afastado o perigo de contágio?
Reserva-se esse capítulo para o próximo dia 24, no STJ.
7. Lado outro, não há negar acerca da possibilidade combinatória dos ritos de execução, com relevo no Enunciado n. 32 do IBDFAM, aprovado no seu XII Congresso Brasileiro, realizado em outubro de 2019:
“É possível a cobrança de alimentos, tanto pelo rito da prisão como pelo da expropriação, no mesmo procedimento, quer se trate de cumprimento de sentença ou de execução autônoma”.
8. No mais, há de se reconhecer, em nossa ordem jurídica, não existir a figura penal do inadimplemento alimentar, com tratamento específico; embora o elemento obrigacional esteja na espécie do abandono material do art. 244 do Código, em sua atual redação dada pela Lei nº 10.741, de 01.10.2003 (06)
Em Portugal, todavia, enquanto o seu Código Civil preceitua no seu art. 1.675, nº1 que “o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar”, o Código Penal, em seu art. 250, trata, com devida exatidão e maior aplicabilidade, do crime de violação da obrigação de prestação de alimentos.
O elemento objetivo do tipo penal, introduzido no Código Penal português pelo Decreto n° 48/1995, é de criminalizar o devedor que, reunindo condições de adimplir a obrigação queda-se inerte em satisfazê-la. Mas não é só: nas hipóteses em que o alimentando estiver exposto a perigo em suas necessidades fundamentais, a pena de prisão será de até dois anos.
(ii) Alimentos compensatórios
Questão enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, no último dia 2 de junho, em caráter prefacial, no Recurso de Habeas-Corpus nº 117.996-RS - (2019/0278331-0), discutiu a natureza indenizatória e/ou compensatória dos alimentos compensatórios frente à possibilidade de prisão civil em hipótese do inadimplemento da obrigação.
Sob a relatoria do ministro Marco Aurélio Bellize, da 3ª Turma do STJ, resultou assente que:
“O inadimplemento dos alimentos compensatórios (destinados à manutenção do padrão de vida do ex-cônjuge que sofreu drástica redução em razão da ruptura da sociedade conjugal) e dos alimentos que possuem por escopo a remuneração mensal do ex-cônjuge credor pelos frutos oriundos do patrimônio comum do casal administrado pelo ex-consorte devedor não enseja a execução mediante o rito da prisão positivado no art. 528, § 3º, do CPC/2015, dada a natureza indenizatória e reparatória dessas verbas, e não propriamente alimentar”. (07)
O tema é relevante e recorrente, a distinguir a finalidade do tipo-espécie dos alimentos, em seu caráter ressarcitório, com aqueles destinados à subsistência do alimentando, valendo referir os excelentes estudos de doutrina, a respeito, dos juristas Zeno Veloso, José Fernando Simão, Rolf Madaleno e Otávio Luiz Rodrigues Júnior (08).
(iii) Medidas do art. 139, IV, CPC
O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento da Reclamação n° 37.521, por sua 3ª Turma, sob a relatoria da Min. Nancy Andrigui, admitiu a aplicação das medidas preconizadas pelo art. 139, IV, do Código de Processo Civil, em ações investigatórias de paternidade, dimensionando o devido e adequado alcance da nova norma processual trazida pelo CPC/2015 (09).
A posição coincide com a doutrina do jurista Flávio Tartuce defendendo a utilização de medidas coercitivas atípicas do art. 139, inciso IV, do CPC nas ações de família em tempos pandêmicos e pós-pandêmicos (10).
O entendimento jurisprudencial sufragado, na extensão de suas latitudes, destacou:
“A impossibilidade de condução do investigado “debaixo de vara” para a coleta de material genético necessário ao exame de DNA não implica na impossibilidade de adoção das medidas indutivas, coercitivas e mandamentais autorizadas pelo art. 139, IV, do novo CPC, com o propósito de dobrar a sua renitência, que deverão ser adotadas, sobretudo, nas hipóteses em que não se possa desde logo aplicar a presunção contida na Súmula 301/STJ ou quando se observar a existência de postura anticooperativa de que resulte o non liquet instrutório em desfavor de quem adota postura cooperativa, pois, maior do que o direito de um filho de ter um pai, é o direito de um filho de saber quem é o seu pai”.
E com maior e elogiável alcance construtivo determinou:
“Aplicam-se aos terceiros que possam fornecer material genético para a realização do novo exame de DNA as mesmas diretrizes anteriormente formuladas, pois, a despeito de não serem legitimados passivos para responder à ação investigatória (legitimação ad processum), são eles legitimados para a prática de determinados e específicos atos processuais (legitimação ad actum), observando-se, por analogia, o procedimento em contraditório delineado nos art. 401 a 404, do novo CPC, que, inclusive, preveem a possibilidade de adoção de medidas indutivas, coercitivas, sub-rogatórias ou mandamentais ao terceiro que se encontra na posse de documento ou coisa que deva ser exibida”.
Como se observa do alinhamento jurisprudencial em ordem da atual crise da pandemia do Coronavid19, uma nova jurisprudência está sendo apresentada, em prol da efetividade dos direitos e da instrumentalidade processual.
O presente momento é auspicioso para uma postura de jurisdição concretizada pelo sacramento de justiça perante a vida.
Na lição de Nelson Hungria tem-se que a vida, por ser uma variedade infinita, uma verdade difícil, nunca lhe assentam com irrepreensível justeza as roupas feitas da lei e os figurinos da doutrina.
Abner de Vasconcelos realçou o problema, reconhecendo que, não obstante a lei represente a fonte imediata do direito, a jurisprudência “é talvez a corrente mais rica da sua formação”, por refletir a necessidade sentida ao contato da vida real, sendo um fator eficiente na fixação de princípios.
Nessa nova produção de justiça, coloque a jurisprudência mais direito na vida e mais vida na vida da justiça. Que seja dita a justiça feita, dissipando as manifestações de carências e as tensões sociais; eficiente e imediata.
Ao modo dos ingleses:
“Justice must not only be done but also be seen to be done” (“A justiça não deve apenas ser feita, é preciso também que seja visto que ela foi feita”)
Anotações:
(01) CRUET, Jean. “A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis”. Lisboa: Editorial Ibero-Americana, 239 p., p. 57.
(02) Web:
(03) Web:
Web: https://www.conjur.com.br/2020-jun-02/devedor-pensao-prisao-suspensa-fim-epidemia
(04) Web: https://www.conjur.com.br/2020-jun-10/sancao-lei-adia-definicao-prisao-pensao-pandemia
(05) Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14010.htm
(06) Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo:
(10) Web: http://www.flaviotartuce.adv.br/
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)
Fonte: Consultor Jurídico, 14.06.2020
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM