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O espírito do legislador e o inconsciente
Fonte: Boletim do IBDFAM nº 27
É comum aos operadores do Direito falar do espírito do legislador em suas argumentações, mormente em tempos de hermenêutica. Já para os leigos, o espírito do legislador assemelha-se mais a uma entidade que é invocada nas dificuldades, referendando o que estaria, a partir de determinado ponto de vista, latente na letra da lei. Quanto mais abertas as cláusulas, mais tende-se a tentar apreender e interpretar qual teria sido a intenção do legislador, e muitas vezes se tem até a impressão que se tenta transferir para este o peso da responsabilidade e as inerentes dificuldades trazidas pela interpretação da lei e sua aplicação nas relações humanas, que têm a característica de escapar à um excesso de lógica que se tenta lhes imprimir.
Apreender o espírito do legislador representa um esforço extra, uma vez que o entendimento da norma deveria ser claro à maioria das pessoas. As dificuldades deveriam estar mais na aplicação às particularidades das relações, e menos no compreender e dizer o Direito. Mas, como sabemos, ele está sujeito à dinâmica e à subjetividade das relações, não só em sua aplicação, mas nas fontes e em sua formulação....
A interpretação do espírito do legislador seria o equivalente a desvendar, por meio dos instrumentos da lógica, aquilo que não se revela diretamente à consciência. Mas, por vezes, é preciso ousar por outros caminhos. Há leis que representam um verdadeiro labirinto em que se faz necessário um fio de Ariadne para que possamos adentrá-lo e encontrar caminhos possíveis, sobretudo quando a lei é confusa, como no caso da sucessão dos cônjuges ou companheiros. Neste caso, cabe ir além da mera interpretação da lógica contida na norma, e buscar que estaria por trás de tal confusão e que produz, como se tem visto, interpretações das mais diversas e mesmo contrárias, vindas dos mais renomados juristas.
Há algo a mais do que uma dificuldade matemática na divisão da herança, do que um esquecimento do companheiro ou companheira em determinado artigo; do que a dificuldade de distinção dos filhos em comum dos que não o são.
Nesta situação, em que a complicação ameaça engessar os inventários e mesmo os afetos nas famílias transformadas, cabe um esforço extra de interpretação e levantamento de hipóteses, esforço que remete mais à tentativa de revelar o que ficou inconsciente, o que foi deixado de fora do ordenamento e de quais seriam as possíveis motivações para tal. Como no método psicanalítico, sabemos que o inconsciente é por natureza inapreensível, mas ao levantar hipóteses e possíveis motivações, acabamos por ampliar a consciência dos fenômenos e os recursos para deles nos aproximarmos. Assim, cabe o que sabemos serem especulações, meras hipóteses, a respeito de qual teria sido o espírito do legislador na tentativa de verificar o que foi deixado de fora do ordenamento, como que reprimido, ampliando nossa consciência das dificuldades trazidas pela lei em determinadas questões e ampliando, por meio deste processo, os recursos para lidar com as transformações das famílias.
Na questão da sucessão, há dois pontos que cabem ser ressaltados - a diferença no tratamento
das famílias, segundo sua constituição, e o da concorrência do cônjuge ou companheiro com os filhos e os efeitos da sucessão no cotidiano das famílias - ainda em vida.
A família é lugar da vivência dos afetos, em que deve prevalecer o amor, com suas matizes de solidariedade, confiança, cooperação, para citar alguns, frente à agressividade, com seus desdobramentos em ciúme, rivalidade, dentre outros; a família é espaço/tempo privilegiado do aprendizado do balanceamento dos sentimentos - devendo o amor prevalecer, em sintonia com o pensamento, da sublimação dos instintos em fins socialmente aceitáveis; ela é o berço da cidadania e do privilégio das relações de cooperação, não de competição.
Além das qualidades que devem ser exaltadas, não devemos esquecer das dificuldades que existem na vida em família. E não creio que possamos valorá-las em piores ou melhores quando se trata das famílias originalmente constituídas (denominadas por alguns de intactas) ou das constituídas por transformações (também chamadas de reconstituídas). No entanto, podemos mensurar as dificuldades em maiores ou menores, dependendo do tratamento social que as famílias recebem em função de sua constituição. E neste sentido, a lei, ou as confusões trazidas com a lei, acabam por ampliar as dificuldades no caso das famílias constituídas por transformações.
É como se o ordenamento privilegiasse a família constituída pelo casamento, em que as vivências afetivas correriam naturalmente, sem a interferência indireta do Estado, uma vez que as complicações são de forma desproporcional maiores na união estável e nas transformações devidas a novos companheiros, criando a lei mais dificuldades. Não bastando a complexidade de os novos companheiros já "herdarem" situações afetivas oriundas de relações anteriores, resultado da experiência de cada um dos novos conviventes, a convivência com filhos de casamentos anteriores e a adaptação social, há, além disto, a ameaça de vir a herdar, queira-se ou não, um patrimônio construído anteriormente. Se a previsão de herança é futura, a complicação afetiva é atual. Fomenta-se com a concorrência e a confusão da lei, a competição entre um elemento do casal, que agora se constitui, com os filhos havidos anteriormente. Há um desbalanceamento na ordem das gerações. As confusões trazidas pela lei, criam em termos psíquicos e afetivos uma ameaça de competição e discórdia, que deveria, ao contrário, contar com a proteção do Estado e não com a negação destes aspectos e mesmo sua exacerbação.
Tudo indica que não foram contempladas pelo espírito do legislador as dificuldades e a rivalidades presentes nas relações familiares, que podem ocupar transitoriamente o primeiro plano, nas famílias constituídas por transformações. Assim deveria ser, mas o que se afigura é a exacerbação da concorrência e rivalidade, engessando afetivamente as famílias. A liberdade em constituir novas famílias parece ficar comprometida, em função de, por alguma razão, a questão patrimonial ter sido privilegiada, inclusive pela via da confusão, que faz com que se lhe preste ainda mais atenção. A mensagem, que pode se tirar, até o presente, é que o espírito do legislador não facilitou e sim dificultou as novas uniões.
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