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Testamento digital e o provimento nº 100-2020 do CNJ - validade e abertura
Testamento digital e o provimento nº 100/2020 do CNJ - validade e abertura
Camilla Chiabrando[1]
RESUMO:
O presente artigo versa sobre os diversos tipos de testamento existentes em nosso ordenamento jurídico e a possibilidade de elaborá-los por meio digital, especialmente por vídeo, com fundamento no Provimento nº 100/2020 do CNJ, durante a pandemia decorrente do COVID19 e após este período.
Palavras- Chave: Testamento. Testamento por vídeo. Testamento Emergencial. Pandemia. Provimento nº 100/2020 CNJ.
ABSTRACT
This article refers to the different kinds of wills in our legal system and the possibility of drawing them up by digital means, especially by video, based on CNJ Provision No. 100/2020, during the pandemic arrising from COVID19 and after this period.
KEYWORDS: Will, Video will, Emergency will, Pandemic, Provision No. 100/2020 CNJ.
É notório que o brasileiro não possui a cultura de lavrar testamento. Existe grande tabu envolvendo o tema, por estar ele ligado à morte.
Entretanto, com a declaração de pandemia mundial, necessidade de isolamento social desde março de 2020 e o receio constante dos cidadãos em serem infectados, essa nova realidade trouxe ao pensamento de cada um preocupações inerentes ao momento, o medo da morte e o que acontecerá com nossos entes queridos e bens na nossa ausência. É o medo de deixar aqueles que amamos desamparados.
Com o início do período pandêmico houve naturalmente a necessidade de cada um repensar seu futuro e garantir àqueles que estimamos o amparo necessário caso venhamos a falecer. Essa garantia se dá por meio de planejamento sucessório.
Dentre os instrumentos legais que permitem a realização do referido planejamento temos o testamento.
O testamento é ato de disposição de última vontade, possuindo caráter personalíssimo e revogável, de tal forma que somente poderá ser lavrado pelo testador, podendo ser modificado por este a qualquer tempo.
As questões legais envolvendo o testamento poderão ser encontradas no Código Civil, livro V (Do Direito Das Sucessões) título III (Da Sucessão Testamentária), capítulos I a VI, artigos 1.857 a 1.911 e artigos 735 a 737 do Código de Processo Civil.
Da leitura das normas em comento, constatamos que nosso ordenamento civil prevê três tipos de testamentos ordinários (comuns), denominados: público, particular e cerrado (artigo 1.862 CC) e também prevê os especiais (excepcionais), que são os marítimo, aeronáutico e o militar (artigo 1.886 CC).
Pretende-se com o presente encontrar solução para elaboração de testamento em período de isolamento social e, ainda, constatar a possibilidade de que novas formas de testar sejam aceitas a partir de agora.
Tenciona-se aqui minimizar as rígidas exigências para que um testamento seja declarado válido, sem tirar a segurança jurídica necessária do ato.
Feitos esses esclarecimentos essencias, passo aqui a demonstrar a possibilidade de se elaborar testamento, nas formas previstas no ordenamento civil, por meio vídeo.
De acordo com o artigo 1.864 do Código Civil, o testamento público deverá ser escrito, manual ou mecanicamente, por tabelião ou seu substituto legal, lavrado por escritura pública e lido em voz alta na presença do testador e de duas testemunhas.
Já o testamento particular também deverá ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico, com as exigências descritas nos parágrafos 1º e 2º do artigo 1.876, devendo ser assinado pelo testador na presença de três testemunhas.
Temos ainda, o testamento hológrafo ou emergencial, previsto no artigo 1.879 do Código Civil, que é aquele particular firmado de próprio punho pelo testador, em circunstâncias excepcionais que deverão ser declaradas na cédula, sem testemunhas e que dependerá de confirmação a critério juiz.
Entendo ser a pandemia decorrente da COVID 19 circunstância excepcional apta a justificar a lavratura do testamento hológrafo.
Contudo, considerando que o atual momento não foi recentemente vivenciado pela humanidade, não permitindo ao legislador prever esta situação extrema, acredito que sendo feito o testamento emergencial sob a justificativa do período pandêmico, muito provável que o Poder Judiciário tencione aceitar o testamento nesta circunstância.
No intuito de firmar ainda mais o meu posicionamento acerca do tema proposto, necessário mencionar o recente Provimento nº 100 do CNJ, de 26 de maio de 2020, o qual dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, cria a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dá outras providências.
Da leitura do referido provimento, o artigo 2º, V e VI traz o conceito de vídeo conferência notarial a seguir descrito: “ato realizado pelo notário para verificação da livre manifestação da vontade das partes em relação ao ato notarial lavrado eletronicamente” e de ato notarial eletrônico: “conjunto de metadados, gravações de declarações deanuência das partes por videoconferência notarial e documento eletrônico, correspondentes a um ato notarial.”
O artigo 3º do citado Provimento possui a seguinte redação:
“Art. 3º. São requisitos da prática do ato notarial eletrônico:
I - videoconferência notarial para captação do consentimento das partes sobre os termos do ato jurídico;
II- concordância expressada pela partes com os termos do ato notarial eletrônico;
III- assinatura digital pelas partes, exclusivamente através do e-Notariado;
IV- assinatura do Tabelião de Notas com a utilização de certificado digital ICP-Brasil;
IV- uso de formatos de documentos de longa duração com assinatura digital;
Parágrafo único: A gravação da videoconferência notarial deverá conter, no mínimo:
a) a identificação, a demonstração da capacidade e a livre manifestação das partes atestadas pelo tabelião de notas;
b) o consentimento das partes e a concordância com a escritura pública;
c) o objeto e o preço do negócio pactuado;
Com a vigência do citado Provimento nº 100/2020 do CNJ e diante das considerações acima apontadas, ao meu ver, no que diz respeito a lavratura de testamento ordinário ou excepcional, não há empecilho para sejam aceitos na forma de vídeo.
Neste momento, abro ressalva ao teor do artigo 1º, §2º do Provimento CG nº 12 de 28 de abril de 2020 da Corregedoria Geral Da Justiça Do Estado De São Paulo (que dispõe sobre a realização de ato notarial à distância, para enfrentamento do estado de calamidade pública), no qual de maneira desarrazoada e imotivada proibiu a realização de ato notarial por meio eletrônico para lavratura de testamento público e aprovação de testamento cerrado. Um verdadeiro retrocesso.
Da leitura do Provimento 100/2020 do CNJ não encontramos qualquer proibição neste sentido, o que nos permite trazer as seguintes soluções a questão.
A lavratura de escritura de testamento público por vídeo não impossibilita o cumprimento das exigências do artigo 1.864 do Código Civil, desde que realizado dentro do citado artigo 3º do Provimento 100/2020 do CNJ.
E, objetivando garantir segurança jurídica necessária ao ato, deverão ser seguidas as regras contidas no parágrafo único do referido artigo 3º, quais sejam: a) a identificação, a demonstração da capacidade e a livre manifestação das partes atestadas pelo tabelião de notas; b) o o consentimento das partes e a concordância com a escritura pública; c) o objeto e o preço do negócio pactuado; d) a declaração da data e horário da prática do ato notarial; e e) a declaração acerca da indicação do livro, da página e do tabelionato onde será lavrado o ato notarial.
Com o falecimento do testador, a abertura do testamento público lavrado por vídeo poderá ser feita nos autos por meio de acesso direto a plataforma e-Notariado (http://www.e-notariado.org.br), mantida pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal, com infraestrutura tecnológica necessária à atuação notarial eletrônica. Tal solução tem escopo no artigo 7º, II do Provimento 100/2020, o qual prevê a possibilidade de implantação, aprimoração e interligação dos atos notariais e facilitação de seu acesso.
Portanto, no que diz respeito a lavratura de escritura de testamento público por meio de vídeo conferência entendo ser totalmente possível a prática deste ato, com fundamento no acima exposto.
Entendo, ainda, a possibilidade de lavratura de testamento cerrado com fundamento no Provimento 100/2020 do CNJ, desde que sejam implantadas as medidas tecnológicas necessárias para preservação e adequação do ato, nos termos do artigo 1.868 do CC.
Contudo, como levar a efeito, sem ferir os requisitos legais, o testamento particular, emergencial e especial feito por meio de vídeo?
Para tanto, faço a seguinte indagação: Quando nos é apresentado um testamento, qual nos permitirá ter maior convicção da veracidade do seu conteúdo: o papel contendo as disposições de última vontade do testador de forma escrita, ou poder “enxergar” o falecido em vídeo narrando seu testamento?
Me parece que poder “olhar” para aquele que faz suas disposições testamentárias torna muito mais crível seu desejo, sendo possível até concluirmos se foi feito por ele livremente, sem coação. Também nos permitirá constatar se o testador estava em condições mentais aptas para fazer sua declaração de última vontade.
No caso do testamento particular lavrado por vídeo, poderão participar do ato as testemunhas exigidas no artigo 1.876, §1º do CC, seja ao lado do testador, seja cada uma em seu local, por meio de vídeo conferência. Entendo, ainda, que para evitar futura nulidade do ato, apenas por excesso de zelo, mas não como condição final, poderia o testador apresentar declaração de seu médico atestando sua capacidade para testar.
Já no testamento emergencial ou hológrafo, previsto no artigo 1.879 do CC, entendo, por todo o aqui exposto, ser possível ao testador lavrá-lo por meio de vídeo e nele declarar a situação excepcional que o obrigou a realizá-lo, no que incluo o atual período de pandemia.
Neste caso, para publicação do testamento particular e confirmação do testamento hológrafo, poderá o Juízo fazê-lo por meio de abertura do documento digital (vídeo), e seguir o procedimento previsto no artigo 737 do Código de Processo Civil.
Também não vejo óbice a elaboração de testamentos especiais previstos no artigo 1.886 e seguintes do Código Civil por meio de vídeo, desde que preenchidos os requisitos legais.
Neste caso, nos termos dos artigos 1.891 e 1.895 do Código Civil, nos 90 dias subsequentes ao fim da situação excepcional, poderá o testamento ser feito pela via ordinária, e aqui incluo, por vídeo, com fundamento do Provimento 100/2020 do CNJ, sob pena de caducidade.
Por fim, como sugestão de solução ao testamento feito por vídeo, na eventual hipótese de não serem aceitas as formas aqui propostas, vejo, como alternativa, para abertura do testamento particular ou excepcional feito por vídeo, a elaboração de ata notarial com objetivo de dar fé pública ao conteúdo digital.
[1] Advogada especialista em Direito Processual Civil e Direito de Família e Sucessões. É membro da Comissão de Direito de Família da Ordem dos Advogados do Brasil e membro da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Santana. Associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família- IBDFAM.
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