Artigos
O dever fundamental de proteção da família: aspectos gerais
O dever fundamental de proteção da família: aspectos gerais
PICCINI, Ana Carolina[1]
CAMPOS, Gustavo Corrêa da Silva[2]
SOUSA, Kassia Santiago de[3]
GRUHN, Rebeca Heldt[4]
MAZZARDO, Selma Spagnol[5]
RESUMO
No presente trabalho será analisado o comportamento da sociedade familiar e como se deu sua evolução histórica. Pretende-se também verificar as espécies de família desenvolvidas ao longo dos séculos. Em apartada síntese, este artigo tem como objetivo principal compreender os institutos familiares trazidos pela Constituição Federal de 1988 que foram ratificados pelo Código Civil de 2002 e demais dispositivos infraconstitucionais. Além disso, considerando a previsão de que a família é a base da sociedade e deve ser protegida de modo especial pelo Estado, buscou-se esclarecer a relação da família com as políticas de proteção constitucional e social. Utilizou-se como método a pesquisa bibliográfica revisional literária, tanto de autores que discorrem acerca do tema, quanto de determinadas decisões jurisprudenciais relacionadas ao assunto. Conclui-se que a família assume relevante papel social e que independentemente da maneira de sua formação, todas as pessoas que a integram possuem deveres e direitos, sendo que algumas dessas tutelas jurídicas visam nada mais nada menos do que preservar e garantir a dignidade humana.
Palavras-chave: Família. Proteção. Dignidade humana.
ABSTRACT
In the present work, the behavior of the family society and its historical evolution will be analyzed. Also, intended to verify the family species developed over the centuries. In synthesis, this article has a main objective to understand the familiar institutes brought by the Brazilian Federal Constitution of 1988 that were ratified by the Brazilian Civil Code of 2002 and other infra constitutional provisions. In addition, considering the prediction that the family is the basis of society and must be protected in a special way by the State, we sought to clarify the family’s relation with the constitutional and social protection policies. Literary revisionary literature research was used as a method, both of authors who talk about the theme, and of certain jurisprudential decisions related to the subject. In conclusion, the family assumes a relevant social role and that regardless of the way of their formation, all its members have duties and rights, and some of these legal protections aim to nothing less than preserving and guaranteeing human dignity.
Keywords: Family. Protection. Human dignity.
1 INTRODUÇÃO
A família é um importante instituto que ao longo do tempo foi passando por intensas transformações, notadamente no que diz respeito ao seu regramento jurídico no Brasil por meio da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) e do Código Civil de 2002 (CC/02), incluindo as alterações legislativas supervenientes.
Nos dias atuais, é possível verificar que o ordenamento jurídico abarca diversas espécies de família, de modo que se busca assegurar ao máximo proteção aos mais diversos núcleos familiares possíveis, sem esquecer dos sujeitos que individualmente os compõem.
Tal proteção deriva de maneira especial da Constituição Cidadã de 1988, que busca amparar por meio do assistencialismo àqueles que enfrentam situação de vulnerabilidade, e pela proteção de seus valores éticos, mostrando como a família assume importante posição no seio social.
O presente trabalho ainda visa analisar como o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana está diretamente relacionado à necessidade de proteção da comunidade familiar.
Sem esgotar o tema, perceber-se-á de que modo Estado e família são importantes um para o outro e estão interligados de forma a se complementarem e se auxiliarem mutuamente para o desenvolvimento da proteção constitucional e social.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 A evolução histórica e a definição de família
Assim como o corpo humano é formado por diversas células, a sociedade é formada por famílias. Estas compõem o Estado e definem a cultura e o sistema social adotado no local.
A família faz parte da história da humanidade e foi evoluindo juntamente com esta. Dessa forma, com o passar do tempo a instituição familiar sofreu diversas transformações.
Sabe-se que inicialmente as famílias eram nômades, tendo o homem como autoridade máxima dentro do lar, com as funções de proteção e subsistência. A mulher, por sua vez, possuía como tarefas o cuidado dos afazeres domésticos e criação dos filhos, e passava toda a vida em situação de submissão e inferioridade, primeiro ao seu pai e posteriormente ao seu marido.
Nesse período, as famílias nômades precisavam migrar de tempos em tempos para outros lugares em busca de alimentos para seu consumo. Aos poucos, aprenderam técnicas de agricultura e pastoreio, momento em que deixaram o nomadismo e começaram a se fixar em locais estratégicos que possibilitaram a produção de alimentos (ABIKO; ALMEIDA; BARREIROS, 1995).
Esse momento está intimamente ligado com o desenvolvimento do Estado, pois com o agrupamento e convivência entre os indivíduos, naturalmente passaram a existir conflitos e necessidades coletivas que transcendiam o núcleo familiar. Desse modo, passou a ser necessária a elaboração de regras e normas para regulamentar a vida em sociedade.
Nesse cenário, as famílias eram numerosas, constituídas por muitos membros, abrangendo toda a família extensa, em linha reta e colateral, ou seja, considerando família além da ideia de pais e filhos, envolvendo todas as pessoas oriundas de um ancestral comum (MADALENO, 2016, p. 87).
Com a evolução gradual da sociedade, as cidades foram se formando e se desenvolvendo, de modo que iniciou-se a migração das pessoas das áreas rurais para os centros urbanos, fazendo com que as famílias dividissem-se em grupos menores.
Uma das razões que levou à redução das famílias para apenas os parentes com maior grau de proximidade, que muitas vezes resumiam-se em pais e filhos, era o fato de que nos centros urbanos as residências eram menores (MADALENO, 2016, p. 87).
Todavia, apesar da fragmentação da família numerosa em diversos núcleos menores, a instituição familiar continuava sendo gerenciada totalmente pela figura masculina, não dispondo a mulher de liberdade alguma, visto que a lei não lhe concedia direitos.
De acordo com Gonçalves (2017, p. 34), a partir do século IV, d.C., no império de Constantino, fora inserido na sociedade o direito romano abarcado pela concepção cristã voltada para a família. Já nessa época, a mulher possuía o direito de divorciar-se sem que fosse obrigada a se justificar. Sendo assim, os filhos ficavam sob custódia do pai.
Com a evolução histórica, o núcleo familiar passou por diversas mudanças. Por conseguinte, a partir da idade média a família era regulada pelo direito canônico, o qual se regia sobre a relação entre homem e Estado.
Tal concepção de família perdurou por muito tempo, até que, aos poucos, algumas nações integraram outras modalidades dentro do conceito de família. Tal percepção teve maior aplicação no século XX, incluindo o Brasil, que só admitiu outros vínculos além do casamento com a inovação trazida pela CRFB/88.
No Código Civil de 1916, a família brasileira era definida como aquela que se encontrava dentro do matrimônio, sendo socialmente marginalizada quaisquer outras formas de vínculo.
Se por ventura um casal constituísse uma união estável, nas palavras de Madaleno (2016, p. 88): “[...] seus eventuais e escassos efeitos jurídicos teriam de ser examinados no âmbito do Direito das Obrigações, pois eram entidades comparadas às sociedades de fato”.
A partir das mudanças sociais, foi possível verificar uma grande evolução nas estruturas das famílias brasileiras, passando a ser aceita uma diversidade que, até a CRFB/88, não era prevista e tampouco protegida pela legislação pátria.
Também com o advento da Carta Magna de 1988, houve o reconhecimento da união estável e da família monoparental. Sendo assim, deixou o matrimônio de ser o único vínculo possível de se estabelecer uma família.
Não obstante, a CRFB/88 também abordou a respeito da igualdade de gêneros na família, buscando eliminar a discriminação entre homens e mulheres, e o conceito da família passou a ir muito além do vínculo biológico entre todos os membros, adentrando a figura dos pais afetivos e os filhos tidos fora do matrimônio, por exemplo.
Dessarte, verifica-se que com o decorrer dos séculos a família foi passando por modificações diante das transformações sociais e do desenvolvimento das legislações, as quais buscavam se adaptar às mudanças sociais.
Pelo apanhado trazido na doutrina mais moderna, temos ao menos nove formas de família, abordadas a seguir. Todavia, é de bom alvitre consignar que, em que pese sejam elencadas pela doutrina, essas as formas de família não se esgotam em si, não havendo pretensão, dessa forma, de excluir outras espécies que eventualmente existam ou surjam.
2.1.1 Família matrimonial
A família matrimonial é aquela vinda da solenidade do casamento. É a forma mais antiga reconhecida pelo Estado. Inicialmente, somente no casamento existia a legítima descendência, ou seja, os filhos gerados fora dessa união matrimonial eram considerados ilegítimos.
Esta realidade, felizmente, já não se perdura mais, pois foram inseridas na legislação outras formas possíveis de família, bem como passou a se reconhecer os filhos, sejam os adotivos ou aqueles havidos fora do casamento.
2.1.2 Família informal
A família informal, atualmente conhecida como aquela formada pela união estável, é a evolução social do matrimônio e foi muito utilizada quando não era possível o divórcio no ordenamento jurídico brasileiro. Segundo o autor Rolf Madaleno
A família informal é uma resposta concreta a essa evolução e ela já foi sinônima de família marginal, muito embora figurasse como panaceia de todas as rupturas matrimoniais enquanto ausente o divórcio no Direito brasileiro, ela serviu como válvula de escape para quem, desquitado, não podia casar novamente porque o matrimônio era um vínculo vitalício e indissolúvel. (MADALENO, 2016, p. 49).
Com a Constituição de 1988, a união estável foi equiparada ao casamento, sendo também reconhecida formalmente como família.
2.1.3 Família monoparental
A família monoparental, da mesma forma que a informal, foi legitimada com a Carta Maior que a fundamentou no art. 226, § 4º, in verbis:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...] §4 - entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. (BRASIL, 1988).
Portanto, refere-se ao grupo familiar que possui apenas um genitor ou genitora, o qual terá papel principal na criação, educação e manutenção dos filhos. Trata-se de relação protegida pelo vínculo de parentesco, seja de ascendência ou descendência, podendo ser constituída, por exemplo, por pais viúvos ou solteiros, mães que recorrem à inseminação artificial, ou ainda, pais divorciados, biológicos, adotivos ou afetivos.
2.1.4 Família anaparental
A definição de família anaparental é reconhecida pelo vínculo de parentesco, mas não aquele advindo de ascendência ou descendência, pois trata-se de hipótese de dois irmãos morarem juntos, ou com primos.
Em outras palavras, ocorre quando há uma estrutura com identidade de propósito e convivência entre pessoas, não necessariamente parentes, mas podendo assim o ser (DIAS, 2016, p. 242).
Assim, entende-se por família anaparental aquela constituída entre pessoas que possuem relação socioafetiva entre si, decorrentes da comunhão de vida, instituída com a finalidade de convivência familiar.
2.1.5 Família reconstituída
Após a promulgação da Emenda nº 66/2010, estabeleceu-se que o casamento civil poderia ser dissolvido por divórcio, conforme se lê da nova redação dada ao § 6º, do art. 226, da CRFB/88, ipsis litteris:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...] § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010). (BRASIL, 1988).
Isso possibilitou a formação de um novo grupo familiar: a família reconstituída. É nesse contexto que se incluem os padrastos, madrastas, enteados e enteadas.
Assim, o ato de o homem ou a mulher unir-se em novo matrimônio ou união estável, levando para a nova relação filho concebido em relação anterior, caracteriza tal hipótese de família.
2.1.6 Família paralela
A legislação ordinária civilista consolida a monogamia para as relações conjugais, sendo vedado a união de pessoas civilmente casadas, conforme inteligência do art. 1.521, VI, do CC/02, que assim dispõe: “Não podem casar: [...] VI - as pessoas casadas.” (BRASIL, 2002).
Em que pese não ser possível o novo casamento enquanto não ocorrer o divórcio, é possível formar nova família por união estável se houver a separação de fato na primeira união. Nesse sentido, esclarece Madaleno:
Embora a pessoa casada não possa recasar enquanto não dissolvido o seu matrimônio pelo divórcio, pela declaração judicial de invalidade, ou pela morte, quedando viúvo o cônjuge sobrevivente, igual restrição não acontece na conformação de uma nova relação através da união estável, dado à expressa ressalva do § 1° do artigo 1.723 do Código Civil, de que a antiga separação judicial ou mesmo a simples separação de fato seriam suficientes para conferir inteira validade à união estável, não havendo necessidade da prefacial dissolução do matrimônio civil pelo divórcio. (MADALENO, 2016, p. 58).
Salienta-se que continua vigente o empecilho de duas uniões estáveis no mesmo momento ou um casamento e uma união estável, haja vista ser a bigamia crime tipificado no art. 235 do Código Penal.
2.1.7 Família natural
Sobre a família natural, assim dispõe o art. 25, da Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente): “Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.” (BRASIL, 1990).
Tal disposição legal ainda garante à criança ou ao adolescente o direito a ser criado no núcleo de sua família biológica ou socioafetiva.
Ressalta-se que dentro da família natural encontra-se a extensa, que é aquela além dos pais e filhos, formada por outros parentes próximos com vínculo de afetividade, ou seja, avós, tios, primos. Encontra-se também a família substituta, que representa os pais candidatos à adoção buscando criar vínculo com o adotando.
2.1.8 Família eudemonista
A afetividade sem vínculo biológico é o que caracteriza essa família. Ela está presente nos casos, por exemplo, em que um indivíduo se une a uma gestante ou mulher com criança muito nova e cria o vínculo de pai, porém, depois de período suficiente para desenvolver o vínculo, separa-se da mulher.
Ora, esse indivíduo não tem um vínculo biológico com a criança, uma vez que conheceu a ex-mulher após a mesma estar gestante ou já com criança de colo. Este vínculo dado de exemplo é, pois, o afetivo e a perpetuação da convivência, mesmo que não biológica, caracteriza a família eudemonista.
Pode também acontecer quando um indivíduo, acreditando ser o genitor da criança, cria vínculo afetivo com ela e depois descobre não ser o pai biológico. Assim como no exemplo anterior, o vínculo já foi desenvolvido então a jurisprudência entende pela proteção desse relacionamento, como vê-se no julgado a seguir do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:
DIREITO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. 1. A paternidade socioafetiva, em especial, prescinde da paternidade biológica; revela-se quando os filhos derivam do amor e dos vínculos puros de espontânea afeição. A filiação é vista, portanto, na sua concepção eudemonista. Nessa esteira: “A paternidade sociológica assenta-se no afeto cultivado dia a dia, alimentado no cuidado recíproco, no companheirismo, na cooperação, na amizade e na cumplicidade. Nesse ínterim, o afeto está presente nas relações familiares, tanto na relação entre homem e mulher (plano horizontal) como na relação paterno-filial (plano vertical, como por exemplo, a existente entre padrasto e enteado), todos unidos pelo sentimento, na felicidade no prazo de estarem juntos. (...) Dessa forma, a família sociológica é aquela em que existe a prevalência dos laços afetivos, em que se verifica a solidariedade entre os membros que a compõem. Nessa família, os responsáveis assumem integralmente a educação e a produção da criança, que, independentemente de algum vínculo jurídico ou biológico entre eles, criam, amam e defendem, fazendo transparecer a todos que são os seus pais. A paternidade, nesse caso, é verificada pela manifestação espontânea dos pais sociológicos, que, por opção, efetivamente mantêm uma relação paterno-filial ao desempenhar um papel protetor educador e emocional, devendo por isso ser considerados como os verdadeiros pais em caso de conflito de paternidade” (Luiz Roberto de Assumpção, in Aspectos da paternidade civil no novo código civil, Saraiva, 2004, p. 53). A dimensão do vínculo de afeto entre pais e filhos não tem o condão de afastar, por si só, a verdade genética. “Esse vínculo de sangue é considerado, ainda hoje, o padrão e continua sendo um dos elementos definidores da qualificação jurídica da pessoa, do seu estado, do status de cidadão, no qual se apóia a investigação da paternidade” (in op. cit., p. 208). 2. Não se sustenta hoje a intangibilidade do ato registral frente à verdade genética quando se permite, em atenção ao princípio do melhor interesse da criança, indagação a respeito dos efeitos da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade da era pós-DNA. O Direito não pode viver às margens dos avanços científicos. E, por consequência, autoriza-se o temperamento da res judicata com fulcro na premissa de que a busca da ascendência genética interessa tanto ao filho quanto ao indigitado pai. Nessa rota, ao que parece, o direito de família no Brasil caminha para a quebra excepcional da imutabilidade deste instituto. Não há, pois, como afastar a importância da pesquisa da tipagem do DNA. Além do mais, importante discussão a respeito da importância do patrimônio genético de cada indivíduo foi levada ao excelso Supremo Tribunal Federal no julgamento do HBC 71.373-4/RS. Embora tenha aquela egrégia Corte de Justiça decidido que o direito à liberdade, à intimidade, à vida privada e à integridade física do suposto pai é que deve prevalecer em face da investigação genética, restou assentada a importância do exame de DNA para efeito de verificação do vínculo de paternidade. O Ministro Ilmar Galvão, naquele julgamento, assim se pronunciou: “não se busca com a investigatória a satisfação de interesse meramente patrimonial, mas, sobretudo, a consecução de interesse moral, que só encontrará resposta na revelação da verdade real acerca da origem biológica do pretenso filho, posto em dúvida pelo próprio réu ou por outrem. (TJ-DF - EIC: 93883320068070005 DF 0009388-33.2006.807.0005, Relator: CRUZ MACEDO, Data de Julgamento: 09/02/2009, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 23/04/2009, DJ-e Pág. 44).
Dessume-se que apesar de haver uma considerável relevância na relação biológica, é a relação afetiva que restará mais importante em determinados casos, prevalecendo para fins de reconhecimento e salvaguarda dos direitos do filho que busca reconhecimento de paternidade.
2.1.9 Família homoafetiva
Outrora, mesmo havendo relações homoafetivas, a ideologia de família era retratada pela união do homem e da mulher por meio do matrimônio. Ocorre que a própria CRFB/88, mais precisamente no art. 226, §§ 3º e 5º, pontua apenas a relação homem e mulher, conforme se demonstra:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
[...] § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Entretanto, o entendimento de que só o homem e a mulher poderiam formar uma família já foi acertadamente superado, na ocasião em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou em 2011 a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconhecendo a união estável para casais do mesmo sexo.
Contudo, cabe ressaltar que o Código Civil ao disciplinar sobre o matrimônio, não faz alusão ao sexo do par. Assim sendo, não há vedação constitucional ou legal que possa impedir o casamento homossexual, muito menos o seu reconhecimento como uma entidade familiar.
Conforme doutrina Maria Berenice Dias:
A homossexualidade sempre existiu. Não é crime nem pecado; não é uma doença nem um vício. Também não é um mal contagioso, nada justificando a dificuldade que as pessoas têm de conviver com lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais, interligados pela sigla LGBTI. É simplesmente, nada mais, nada menos, uma outra forma de viver, diferente do padrão majoritário. (DIAS, 2016, p. 459, grifo nosso).
A união homoafetiva é baseada no afeto mútuo e pela vontade das partes em constituir uma família, sendo priorizado o amor, o carinho e o relacionamento do casal.
2.1.10 A definição de família
Neste diapasão, o direito de família, bem como sua definição, sofreu diversas mudanças históricas e, por consequência, hoje em dia são aceitas diversas espécies de famílias.
De acordo com Caio Mário da Silva Pereira:
Ao conceituar ‘família’, destaque-se a diversificação. Em sentido genérico e biológico, considera-se família o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum. Ainda neste plano geral, acrescenta-se o cônjuge, aditam-se os filhos do cônjuge (enteados), os cônjuges dos filhos (genros e noras), os cônjuges dos irmãos e os irmãos do cônjuge (cunhados). (PEREIRA, 2017, p. 49).
Deste modo, o direito de família está profundamente ligado aos direitos humanos, tendo como alicerce o princípio da dignidade humana. Com relação as relações pessoais e obrigacionais do direito de família em contraste com alguns princípios que integram este ramo do direito, Carlos Roberto Gonçalves explica algumas diferenças importantes:
Efetivamente, alguns princípios integrantes do direito de família, por concernirem as relações pessoais entre pais e filhos, entre parentes consanguíneos ou afins formam os denominados direitos de família puros. Outros envolvem relações tipicamente patrimoniais, com efeitos diretos ou indiretos dos primeiros, e se assemelham às relações de cunho obrigacional ou real, cuja preceituação atraem e imitam (GONÇALVES, 2017, p. 29).
Como se nota, não há na Carta Magna uma predefinição ou uma taxatividade de qual família terá este amparo, possibilitando que todas as espécies de famílias em desenvolvimento tenham seus direitos resguardados.
Sob outro viés, o direito de família e todos os seus institutos jurídicos decorrentes encontram amparo na CRFB/88, a qual reconhece a família como sendo a base da sociedade, além de estabelecer para ela proteção especial do Estado.
2.2 A proteção constitucional
A família é a base da sociedade, conforme expressamente dispõe a Constituição Federal em seu art. 226, caput, e por essa razão busca-se a promoção de sua proteção, de diversas formas.
Nesse sentido, importa destacar a redação do § 8º do sobredito dispositivo, o qual reza que: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” (BRASIL, 1988).
Os integrantes da família, que são enfoque de proteção, podem ser compreendidos pela mulher, criança e o adolescente, o(a) trabalhador(a), o idoso, o deficiente, e os demais eventuais componentes.
Ademais, a Carta Magna se compromete em criar mecanismos para coibir a violência contra seus componentes no âmbito das relações familiares. Essa proteção é vista, por exemplo, pelas disposições previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei Maria da Penha. Tais legislações embasam-se nos parâmetros constitucionais de proteção.
Sem embargo, é importante observar que a Constituição não visa apenas a tutela individual dos sujeitos, mas também das necessidades da sociedade familiar como um todo. Nesse sentido, explica Rolf Madaleno:
[...] a grande reviravolta surgida no Direito de Família com o advento da Constituição Federal foi a defesa intransigente dos componentes que formulam a inata estrutura humana, passando a prevalecer o respeito à personalização do homem e de sua família, preocupado o Estado Democrático de Direito com a defesa de cada um dos cidadãos. E a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à dignidade da pessoa, de tal sorte que todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem ser focadas sob a luz do Direito Constitucional [...]. (MADALENO, 2017, p. 105).
No que concerne às disposições constitucionais, em específico, tem-se no art. 7º, inciso XII, da CRFB/88, direitos relativos aos dependentes do trabalhador, consagrados com o fito de proteger os membros da entidade familiar de baixa renda, e auxiliar no sustento e educação dos filhos.
O salário-família, disposto no art. 7º, inciso XII, e art. 201, inciso IV, ambos da CRFB/88, que é regulado pela Lei nº 8.213/1991, prevê auxílio mensal devido aos segurados de baixa renda, na proporção do respectivo número de filhos, enteados ou menores tutelados (estes dois últimos equiparam-se ao filho desde que comprovada a dependência econômica - art. 16, § 2º, Lei 8.213/1991).
Em acréscimo, a CRFB/88 ainda prevê assistência social à família, conforme dispõe o art. 203, inciso I: “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família [...]” (BRASIL, 1988).
Se revela a assistência social como intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, já que a primeira busca atender às necessidades básicas e o segundo está relacionado ao “mínimo existencial”.
Dessarte, a proteção da família com políticas sociais é de suma importância em razão de ser mecanismo que busca promover a melhoria de vida da sociedade familiar, com amparo às vulnerabilidades que diversas famílias brasileiras enfrentam.
A Magna Carta ainda cuida de preservar a família quando prevê em ser art. 221, inciso IV, que os valores éticos e sociais da família devem ser respeitados pelas emissoras de televisão e rádio.
Tal respeito trata-se de um dos princípios a serem observados e corresponde em orientação e imposição de limites para as condutas adotadas pelas empresas que, apesar de possuírem liberdade de informação jornalística, devem zelar para não causarem danos à comunidade familiar.
Dessa forma, verifica-se que a Constituição atua de forma sistêmica na busca da proteção e preservação da família como um todo, bem como de seus integrantes individualmente.
2.3 A proteção social
A proteção da família no atual contexto sociofamiliar se apresenta como um sistema misto no qual devem atuar conjuntamente o Estado, a família e sociedade, buscando cada instituição cumprir sua responsabilidade e promover um dos fundamentos mais importantes do texto constitucional: a dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, Figueiredo (2010) pontua que o cerne da Constituição é a promoção da pessoa e sua dignidade e é este o objetivo que se almeja. Por essa razão, os demais institutos juridicamente tutelados devem focar-se na ideia do desenvolvimento da pessoa humana.
Na medida em que as relações sociais são alteradas e a proteção do Estado deve ir aonde não ia antes e alcançar as camadas sociais mais carentes, é preciso que ocorram mudanças legislativas. É por isso que ao prever o ciclo progressista das relações sociais, a doutrina conceitua de maneira mais abrangente o termo “família”.
Gonçalves (2010, p. 1), por exemplo, traduz a necessidade de uma visão mais ampla e diz que família é composta por: “todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue e que procedem, portanto, de um tronco ancestral comum, bem como unidas pela afinidade e pela adoção”.
Logo, a família constitui uma instituição básica e necessária de toda a estrutura da sociedade, pois é nela que se assentam não só colunas econômicas, mas também as raízes morais da organização social.
Devido ao desenvolvimento da sociedade e a mudança cultural ocorrida naturalmente ao longo dos séculos, passaram a existir diversos tipos de família, como se vê hodiernamente e outrora foram pontuados. Em que pese diferentes, não deixam de se intitularem como famílias, pois assim o são em sua essência.
Dessa maneira, considerando que o art. 5º, caput, da Carta Magna impõe condição sine qua non para a própria existência do Estado e que este deve criar mecanismos necessários para garantir, principalmente, a igualdade material por meio de ações afirmativas, não bastando a igualdade formal que consta neste dispositivo, busca-se desfazer o mito da composição familiar tradicional.
Posto isso, verifica-se que a CRFB/88 e o CC/02 não trazem uma definição específica de família, mas tão somente explicam a sua estrutura. Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves ressalta que:
[...] a família é uma realidade sociológica e constitui a base do Estado, o núcleo fundamental em que repousa toda a organização social. Em qualquer aspecto em que é considerada, aparece a família como uma instituição necessária e sagrada, que vai merecer a mais ampla proteção do Estado. A Constituição Federal e o Código Civil a ela se reportam e estabelecem a sua estrutura, sem, no entanto, defini-la, uma vez que não há identidade de conceitos tanto no direito como na sociologia. (GONÇALVES, 2010, p. 1).
Por conseguinte, o Estado, principal destinatário de deveres fundamentais, tem a função precípua de promover e efetivar os deveres fundamentais de cada cidadão para preservação de sua própria sobrevivência, tendo interesse primário em proteger a família, por meio de leis que lhe assegurem o desenvolvimento estável e a intangibilidade de seus elementos institucionais.
Por outro lado, em relação aos deveres fundamentais, a família também é considerada destinatária e deve promover aos seus próprios integrantes uma proteção condizente com as necessidades inerentes de cada indivíduo. Essa obrigação ocorre tanto por ocasião das leis vigentes, como por imposições morais e éticas.
Destarte, pode-se dizer que a família contemporânea é fundada no afeto e na solidariedade e, por isso, necessita de proteção efetiva nos seus variados arranjos, o que se mostra, diante do preconceito e das falsas moralidades, um desafio a todos os cidadãos brasileiros.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo procurou-se demonstrar, primeiramente, a importância e relevância da família para sociedade, bem como a forma que surgiu e evoluiu historicamente, desde a sua primitiva constituição.
Percebe-se a existência de várias espécies de família, sendo que todas elas, face ao princípio da dignidade humana, merecem proteção especial do Estado.
De maneira geral, verificou-se que as diferenças existentes não são capazes e nem suficientes para descaracterizarem a existência e o reconhecimento da família pelo Estado, uma vez que a Lei Maior objetiva integrar e unir todas as pessoas que fazem parte do contexto familiar, respeitando-se as individualidades de cada um.
Quanto a CRFB/88, apesar de desatualizada no que tange a alguns aspectos concernentes a inclusão, por fazer referência apenas a relação homem e mulher no âmbito familiar em alguns trechos, se nota que ela busca a todo instante proteger a família, o que é um avanço enorme, se compararmos com as constituições anteriores.
Foram elaboradas ao longo dos anos diversas leis especiais para tutelar os direitos de alguns componentes familiares que são, demasiadas vezes, excluídos ou sujeitos passivos a violência e desrespeito social. É o caso das mulheres, das crianças e adolescentes, dos idosos, das pessoas com deficiência e das pessoas que recebem e precisam de assistência social para viver dignamente.
Em acréscimo, foi possível verificar como as ações afirmativas do Estado são de suma relevância, haja vista que sem elas, as camadas familiares mais fragilizadas ou minoritárias serão massacradas e estarão fadadas a exclusão social.
Ademais, o Poder Judiciário vem enfrentando com bastante cautela e razoabilidade as questões familiares, preservando e levando em consideração muito mais as relações socioafetivas do que necessariamente e tão somente as relações biológicas, vez que interessa ao Estado a convivência fraternal e pacífica entre as pessoas da família.
De fato, é um desafio enorme acompanhar a evolução constante que ocorre na sociedade, porém é dever dos representantes do povo estarem atentos as questões que mais interessam aos cidadãos nas famílias: a paz, prosperidade, reconhecimento e valorização social. Além disso, é preciso estar sempre apto a propor mudanças capazes de incluir cada indivíduo que compõe a família.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Contém as emendas constitucionais posteriores. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 10 mar. 2020;
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[1] Discente do Curso de Direito da UniLaSalle/Lucas do Rio Verde. E-mail: anapiccini08@gmail.com;
[2] Discente do Curso de Direito da UniLaSalle/Lucas do Rio Verde. E-mail: gustavocorreasc@gmail.com;
[3] Discente do Curso de Direito da UniLaSalle/Lucas do Rio Verde. E-mail: kss_santiago@hotmail.com;
[4] Discente do Curso de Direito da UniLaSalle/Lucas do Rio Verde. E-mail: rebecagruhn@hotmail.com;
[5] Discente do Curso de Direito da UniLaSalle/Lucas do Rio Verde. E-mail: 22900063@unilasallelucas.edu.br
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