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A competência híbrida dos juizados de violência doméstica e a alteração feita pela lei 13.894 -19
A competência híbrida dos juizados de violência doméstica e a alteração feita pela lei 13.894/19
Jessyka Basílio, Advogada
Sócia do Oliveira Basílio Advocacia
Pós graduanda em proteção das vulnerabilidades
RESUMO
A Lei Maria da Penha estabelece expressamente que os Juizados Especiais de Violência Doméstica possuem competência híbrida para julgar casos cíveis e penais. A tentativa da legislação, é de que a mulher possa, em um só processo, resolver todos os problemas jurídicos que necessitem resolução para com o seu agressor. Acontece que, na prática, observa-se que muitos magistrados negam a competência cível do juizado e, consequentemente, forçam as mulheres a se submeter à processos simultâneos no Juizado de Violência Doméstica e nas Varas de Família. Na intenção de evidenciar ainda mais essa competência cível, foi promulgada a lei 13.984/19 que altera o art. 14 da LMP. Nesse artigo, trazemos impressões a respeito dos possíveis impactos que as alterações podem ter para a concretização da competência híbrida dos juizados.
Palavras Chaves: Lei Maria da Penha; Competência Híbrida; Juizados de Violência Doméstica.
ABSTRACT
The Maria da Penha Law expressly establishes that the Special Courts of Domestic Violence have hybrid jurisdiction to judge civil and criminal cases. The attempt of the legislation, is that the woman can be able to, in a single process, solve all the legal problems regarding her aggressor. It turns out that, in practice, it is observed that many magistrates deny the civil competence of the court and, consequently, force women to submit to simultaneous processes, both, in the Domestic Violence Court and Family Court. In order to implement this civil jurisdiction, the law 13.894/19 added an amendment in the art. 14 of the MPL. In this article, we bring impressions about the possible impacts that the changes may have for the implementation of the hybrid competence at the especial courts.
Key words: Maria da Penha Law; Hybrid competence; Special Court of Domestic Violence.
Quando, em 2006, após anos de luta e articulação do movimento feminista, foi promulgada a Lei Maria da Penha, sabíamos que havia sido um grande avanço para o Direito das Mulheres. Contudo, não isenta de críticas da população mais conservadora, foi necessário que sua constitucionalidade fosse reafirmada na ADC 19, de relatoria do Min. Marco Aurélio, para evidenciar o que já era óbvio: a lei não tem caráter discriminatório, em verdade ela é uma legislação afirmativa de direitos, que reconhece as desigualdades que o “ser mulher” significa no Brasil.
Dentre as suas inúmeras inovações está a criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica foi um deles. O art. 14 prevê que
“Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária, com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica familiar contra a mulher” (BRASIL, 2006) - destaque nosso
Explícita, portanto, a norma jurídica que prevê a competência híbrida da qual se fala. A criação do JVD nesses termos, é um dos maiores avanços que trouxe a Lei Maria da Penha, isso porque, unifica em apenas um juízo a resolução de todos os problemas jurídicos relacionados à violência que aquela mulher necessita.
Wania Pasinato destaca que por intermédio da competência híbrida, busca-se garantir que as mulheres acessem com mais facilidade e rapidez o sistema de justiça; além da padronização de procedimentos e a necessidade que os casos de violência doméstica não se resumissem apenas à demandas que concernem ao Direito das Famílias. Nada obstante, essa tentativa de desburocratização não encontra acolhida na prática diária dos Juizados[1].
Inclusive, o próprio Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica (Fonavid), chegou a estabelecer em seu Enunciado nº 3 que
“a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é restrita às medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, devendo as ações cíveis e as de Direito de Família ser processadas e julgadas pelas varas cíveis e de família respectivamente”
O referido Enunciado, não se ocupa apenas de estabelecer uma interpretação da LMP, mas de distorcer por completo a literalidade da lei, bem como a sua intencionalidade quando elaborada. Limitar a competência cível da Lei Maria da Penha ao estabelecimento de Medidas Protetivas com esse caráter é limitar o próprio acesso das vítimas de violência doméstica à justiça.
Tentando modificar essa realidade prática, a lei 13.894/2019, alterou o art. 14 da LMP para acrescentar que os juizados especializados são competentes para julgar divórcios e dissoluções de união estável, excluindo-se da competência qualquer pretensão relacionada à partilha de bens. Todavia, apesar de recente a alteração, levanto o questionamento se ela, para além dos benefícios, também limitará a abrangência pretendida com a competência híbrida.
Isso porque, apesar de trazer expressamente a possibilidade do divórcio, fazê-lo sem a separação de bens é um desistímulo à perquirição dos direitos patrimoniais das mulheres que tenham sido violadas, favorecendo que o agressor possa esquivar-se de uma necessária partilha de bens. Atualmente, os processos que correm no juízo especializado sofrem de grade morosidade[2], imagine-se, então, processos de partilha de bens que correm pelo procedimento comum.
Nada obstante, importante também que pensemos na recepção dessa mulher, vítima de violência, nos juízos comuns. Hoje, já são inúmeras as reclamações das mulheres do sistema especializado, desde o atendimento na delegacia até as varas e juizados especializados. De acordo com pesquisa do CNJ elas afirmam que tem um “sentimento de frustração”, que há “falta de atenção com as vítimas”, em um dos relatos consta “fui feita de palhaça, porque a justiça fez o que? Nada, nada”. Imagine-se como seriam os relatos de atendimento no juízo comum. Exigir que as mulheres passe por um processo tão desgastante quanto esse diante de um juízo que não tem formação e/ou prática para lidar com esse tipo de demanda específica, é desumano. Para além disso, trata-se de uma limitação uma vez que trata especificamente dos divórcios e dissolução de união estável, não deixando claro se outras ações similares como reconhecimento de união estável também será de competência do juízo especializado. Penso aqui numa situação em que a vítima de violência seja uma mulher que vive em união estável de fato, mas não tem a situação registrada em cartório. No caso, seria necessário reconhecer a união para dissolvê-la, nessa situação teria ou não competência o juizado de violência doméstica? O art. 14, §2 traz duas ações específicas à título de exemplo, ou em rol taxativo?
São perguntas que pairam no ar e tem consequências também, por exemplo, em questões relativas à guarda, convivência e alimentos. Falo aqui não apenas de decisões que dizem respeito ao estabelecimento de medidas protetivas, mas de decisão de mérito quanto às tais ações. É conhecida jurisprudência no sentido de declinar a competência para julgar alimentos, por exemplo.
Em teoria, essa limitação não teria vez, já que todas as demandas cíveis com a mesma causa de pedir deveriam ser julgados pelo mesmo juízo, especialmente se considerado os critérios de conexão estabelecidos pelo CPC, além de ir de encontro ao desejo da legislação. Entretanto, tendo em vista que a atual aplicabilidade da legislação se dava de uma maneira restritiva, é de se averiguar se houve, de fato, uma mudança da aplicação da LMP no que tange à todas as demandas cíveis.
Ainda, parece-me um tanto quanto incongruente que a legislação não reconheça enquanto basilar a partilha de bens para acabar com toda relação violadora, tendo em vista principalmente, que, a própria lei reconhece, em seu art. 7º, a violência patrimonial[3] como um dos objetos por ela tutelado. Imponte constatar que esse tipo de violência é mais comum do que se pensa e está, muitas vezes, atrelada à outros tipos de violência.
Nesses casos, por óbvio, que a partilha de bens é essencial para a superação da violência, uma vez que mantém com esta, relação direta. A violência patrimonial que, assim como a psicológica, já é invisibilizada pela sociedade e dificilmente reconhecida pela vítima, ganha, com a limitação imposta pela Lei 13894/19, mais um obstáculo.
Vale salientar ainda que as limitações expressas pelo novo texto da LMP fazem permanecer alguns percalços já conhecidos anteriormente. O principal deles é a necessidade ajuizar mais de uma ação para a resolução total do problema. Ora, mesmo com o divórcio decretado pelo juízo especializado, será necessário que a luta das mulheres pela partilha de bens seja perpetrada em uma vara comum, tramitando em outro ritmo, prolongando e reverberando a dor da vítima.
Além disso, sendo necessária a proposição de duas demandas, também se fará essencial a existência de audiências e testemunhos em dobro, fazendo com que essa mulher reviva por repetidas vezes a violência que sofreu. Tudo isso sem falar no malabarismo jurídico necessário para trazer provas de um processo ao outro quando, por exemplo, o juízo de família designa audiência de conciliação à despeito do interesse da autora e da existência de Medida Protetiva de Urgência (MPU) em sua proteção.
Por todas essas questões, pode-se compreender que o que está hoje disposto no §2, art. 14 da LMP serve como um reforço para que essas mulheres não ingressem com ação de partilha de bens para não precisar reviver novamente todo o drama relacionado ao que sobreviveu. Sabemos que não é fácil para as mulheres em situação de violência fazer denúncia da violência sofrida, da forma posta pela nova legislação seguimos mantendo a necessidade de que ela busque os meios jurídicos não apenas uma, mas duas vezes.
Sob outro pórtico, contudo, percebe-se que por ser a questão patrimonial muitas vezes considerada “de segunda importância”, a nova redação do art. 14 da LMP implica, muito provavelmente, em um desencorajamento das mulheres para persistir na busca pela preservação de seus direitos patrimoniais.
Apesar das críticas tecidas, é importante reconhecer que a Lei 13.894/19 constituiu um avanço para a aplicação da competência híbrida nos Juizados e Varas Especiais de Violência Doméstica. Contudo, os parágrafos acrescidos retundam ao caput do artigo que prevê de maneira ampla a competência híbrida dessas esferas jurídicas.
Desta forma, apesar de ter garantido à ação de divórcio e dissolução de união estável o processamento e julgamento perante o juízo especializado, ao mesmo tempo pode ter restringido a atuação cível a essas duas ações, sem contemplar tantas outras possíveis nesses casos tão delicados e singulares.
REFERÊNCIAS
BRASIL, 2006. Lei Maria da Penha. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
BRASIL, 2019. Lei 13.984 de 29 de outubro de 2019.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA; INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Poder Judiciário no Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra as Mulheres. 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/7b7cb6d9ac9042c8d3e40700b80bf207.pdf. Acesso em 29 mar. 2020.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 5ª e. São Paulo: Juspodivm, 2019.
PASINATO, Wânia. Avanços e obstáculos na implementação da Lei 11.340/2006. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
[1] Válida a ressalva ao caso do Mato Grosso do Sul, no qual o próprio Tribunal de Justiça regulamentou a questão da implantação da competência híbrida das Varas do Estado.
[3] Violência patrimonial aqui entendida, na literalidade da lei, como qualquer conduta de configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo também os destinados a satisfazer as próprias necessidades. (BRASIL, 2006).
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