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Em proteção da família, a dispensa das regras ordinárias
Em proteção da família, a dispensa das regras ordinárias
Jones Figueirêdo Alves
Há de se pensar sobre os problemas do próximo futuro incógnito, a exigir a construção de um sistema normativo suficiente ao controle jurídico de muitas novas realidades que surgirão abreviadas na pós-pandemia do Covid-19:
a) a de uma “nova normalidade autodisciplinada” ou “normalidade responsável”; onde as necessidades sociais de convivência possam ser reguladas para uma melhor proteção coletiva;
b) a da superação dos danos colaterais já provocados às populações mais vulneráveis, as famílias carentes de novas e urgentes oportunidades; sujeitas que se acham às orfandades impostas pelo vírus, às perdas do trabalho de subsistência e às mazelas de suas gritantes desigualdades sociais;
c) a da renda deficitária das famílias, atingidas pela desocupação em 12% (no primeiro trimestre/2020) e representando 62 milhões de pessoas endividadas. Quando 65% do PIB nacional se refere ao consumo das famílias e cerca de 91 milhões de brasileiros deixaram de pagar, pelo menos, uma conta de despesas em abril passado, uma nova ordem jurídica se impõe necessária a protegê-las.
A propósito, expressou Cláudia Lima Marques: “em uma época singular, em que a sociedade necessita de medidas que permitam a reconstrução da economia brasileira, a aprovação do Projeto de Lei nº 3.515/2015 surge como o remédio adequado para prevenir e tratar um problema crônico que os efeitos colaterais da Covid19 podem agravar profundamente: o superendividamento dos consumidores” (01)
De fato, o superendividamento já alcança patamares extravagantes, com 30 milhões de pessoas superendividadas e seus principais motivos são a redução de renda (26,5%), o desemprego (24,3%) e a doença (18%). Aponta a notável jurista que a recuperação financeira dessas famílias permitirá, no devido tempo, a devolução à economia brasileira de R$ 555 bilhões. A falência familiar torna indigente toda a sociedade e o acesso ao crédito para a população de menor renda deve contemplar, obrigatoriamente, incentivos menos onerosos, sob pena de torná-la mais pobre ainda.
d) a de uma estratégia prioritária em políticas sanitárias, a resolver as precárias condições das sub-habitações dos grandes centros urbanos, desprovidas de infraestruturas de saneamento, com esgotos a céu aberto e onde todas essas famílias ali moradoras são preferenciais à morte. A questão da salubridade pública é um dos direitos humanos de primeira grandeza. Aliás, os saberes médicos nas antigas epidemias cariocas, segundo Sidney Chalhoub (02), sempre associaram as causas mais letais da mortandade crescente “diretamente às condições de miséria em que vivia a população”.
No Rio de Janeiro, com as epidemias de febre amarela (1850) e de cólera (1855), despertou-se a ideologia da higiene e as primeiras posturas administrativas foram as de não mais permitirem as construções denominadas “cortiços”, no centro da cidade (05.12.1873) e de interdição das mesmas (09/1876). Ora: o que pensar, hoje, da proliferação das habitações sucedâneas ou equivalentes, quando o bom senso humanitário e a consciência social exigem uma maior proteção às famílias ali residentes, com melhores e regulares sistemas públicos de serviços. Esse despertar consciente de maiores responsabilidades públicas torna-se um legado da pandemia.
Se bem é certo dizer que o Coronavid19 não escolhe classe social para o contágio, importa refletir sobre a maior evolução da doença nas populações mais vulneráveis, como a jurista norte-americana Susan Simone Kang, do Boston College Law School, referiu esta semana, com incidência nas comunidades americanas de baixa renda (3)
Razão, ciência, humanismo e progresso para todos, serão os alicerces, portanto, para o resgate e afirmação de valores éticos na pós-pandemia. A boa sociedade é aquela que se mantém unida, em ajudas mútuas, nos tempos de crise para atravessá-los incólume e fortalecida.
Na afirmativa de Michael Sandel (“Justiça”, 2017), objetivos imediatistas de obtenção de altos lucros financeiros, de atos de ganâncias ou de práticas de juros excessivos em tempos difíceis, são vícios repudiáveis por uma sociedade que, em momentos graves da história, há de se sustentar somente sob s solidariedade e uma firme coesão social. Ele condenou o aumento do preço dos produtos essenciais, em meio à devastação do furacão Charley, na Flórida (EUA, 2004).
A afetividade, leciona Maria da Penha Nery, constitui um “fator determinante no modo de relação do indivíduo à vida,” e “será com a sensação desse estado de ânimo que a pessoa perceberá o mundo e a realidade”. Induvidosamente, essa a principal ensinança, para as novas realidades da pós-pandemia e à relação solidária com o próximo (04)
Enquanto isso, diante da pandemia do Covid19, a justiça brasileira tem prestado jurisdição otimizante, extraindo de sua profícua atividade o melhor rendimento possível, útil e imediato à efetividade dos direitos de proteção da família.
Decisões recentes quebram paradigmas, excepcionam regras burocratizantes do processo, interpretam o direito desafiado pela atual realidade vivenciada. Luiz Guilherme Marinoni tem afirmado, em lições permanentes, que o juiz deve “extrair da Constituição os elementos que lhe permitem decidir de modo a fazer valer o conteúdo do direito do seu tempo” (05).
Os tempos jurídicos da pandemia são de humanidades reclamadas, dos sentimentos solidários comuns e de responsabilidades sociais conjugadas. Os tomadores de decisões otimizantes, maximizam os seus resultados, desapartados de regras ordinárias e com métodos interpretativos satissuficientes (06), para, no ponto chave, não protrair uma efetividade ótima. Uma jurisprudência de crise (humanitária) ganha ensejo a dinamizar o atual sistema normativo, a permitir, com interpretação dimensionada, uma prestação jurisdicional protetiva e urgente sob o influxo da pandemia.
Nesse viés, v.g., diante dos atuais confinamentos condominiais, onde figuras abusivas de condôminos antissociais precisam ser reprimidas em sua amplitude fática; o “poder de polícia” dos síndicos também deve assumir maior densidade interpretativa em sua representação ativa (art. 1.348, II, CC), cumprindo-lhes adotar medidas restritivas à proteção das famílias nas unidades edilícias e a coibir práticas nocivas daqueles (7).
Decisões recentes de magistrados de Guarujá (SP) os juízes Gustavo Gonçalves Alvarez (3ª Vara Cível) e Gladis Naira Cuvero (2ª Vara Cível), em face de dois inquilinos moradores de um mesmo condomínio em local nobre, os submeteram ao decreto judicial de despejo liminar, face comportamentos antissociais e lesivos e por promoverem festas noturnas em seus apartamentos, com a presença de muitos convidados (08)
Em doutrina, temos sustentado que, para além de penas pecuniárias, entende-se cabível uma “abertura casuística para a interdição de direitos, temporária ou definitiva, no correspondente adequado à gravidade das faltas”, submetido o condômino (ou o inquilino, por condição análoga às dos condôminos - art. 1336, inciso IV, 2ª parte, do Código Civil) à perda do direito de uso do bem. É exatamente o caso (09).
Lado outro, execuções de despejos compulsórios têm sido postergadas, durante a presente epidemia, em exata compreensão do caráter “intuitu familiae” das locações residenciais, quando rompidas as relações contratuais. Aliás, há de se entender necessária, em casos que tais, a integração à lide, sob irrecusável interesse processual, do cônjuge ou do convivente do locatário, até para lhe oportunizar defesa ou a purgação da mora, quando em juízo de primeiro grau sempre determinei.
Pois bem. A questão do acesso à justiça sob o ponto de vista substancial, em controle jurídico dos problemas e dos interesses de família, subjacentes à realidade pandêmica, tem oportunizado soluções urgenciadas.
Em primeira vertente, cumpre anotar, a transfiguração judiciária operada em súbito tempo, de uma postura presencial e clássica ao transporte do seu atual momento de novas experiências digitais. O emprego da tecnologia avançada não apenas permitindo audiências e julgamentos telepresenciais por videosconferências mas, sobretudo, introduzindo uma nova cultura virtual, com a realização de: a) escrituras públicas; b) testamentos; (c) adoções e d) visitações parentais, mediante o emprego das novas técnicas de interação tecnológica.
Merecem realce, em particular, as recentes experiências do Judiciário de Pernambuco:
(i) as audiências virtuais de adoção, realizadas pela magistrada Christiana Caribé, da Comarca do Jaboatão dos Guararapes, onde eventuais adotantes visitam virtualmente as crianças nos seus lugares de acolhimento, aproximando justiça e interessados, com momentos compartilhados, tem agilizado e concluído os processos de adoção (10);
(ii) as audiências de formato on-line, em relação às demandas pré-processuais e às ações ajuizadas, pelo Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Resolução de Confltos (Nupemec) do TJPE, sob a coordenadoria do des. Erik Simões, oportunizam as conciliações e os termos de acordo, com 2.153 audiências e movimentação financeira de R$ 13,5 milhões, em abril e maio/2020;
(iii) o desenvolvimento e o uso de aplicativos, a exemplo do “TJPE Atende”, que “permite ao cidadão registrar uma solicitação em qualquer unidade judiciária do Tribunal de Justiça de Pernambuco, e acompanhar as respostas da sua solicitação diretamente em seu dispositivo móvel, de forma on-line, por meio de notificações”. Com download gratuito e versões disponíveis para ios e android, a nova ferramenta fornece informações sobre o andamento processual a todas as partes envolvidas, ficando cientes os julgadores para responder com agilização às demandas. Essa iniciativa do Ouvidor Judiciário, des. Eduardo Sertório, coloca a Justiça em interação “on line”, ao lado da velocidade dos processos eletrônicos, a tempo urgente de sua realidade de presteza.
Serão ganhos irreversíveis, a demonstrar a evolução de eficiência, mas não é só:
a experiência atual democratiza o acesso à justiça, não apenas formal e substancial, sobretudo vem possibilitar a igualdade de facilitações à atividade advocatícia, onde todos ganham a interconectividade, como um elemento decisor à melhor qualidade do seus desempenhos profissionais, por meios de comunicações eletrônicas, e-mails, teleatendimentos e outros mecanismos indutores de qualidade judiciária. Todos em mesmas condições de acessos facilitados. De outra banda, o princípio-dever processual de cooperação, a essa nova dinâmica, obriga a todos os participes essenciais de administração da justiça admitirem, como irreversível, essa nova realidade judiciária.
Em segunda vertente, no plano da otimização processual, identificam-se diversas medidas, como as medidas indutivas (defendidas pelo jurista Flávio Tartuce), as procedimentais diferenciadas, as de negócios jurídicos processuais, e outras que capacitam o resultado útil do processo em dinâmica de ajustes adequados à solução rápida dos conflitos de interesses.
No ponto, merece também destaque a prestação jurisdicional dos divórcios imediatos. O juiz substituto da 1a Vara de Família e de Órfãos e Sucessões de Águas Claras, região administrativa do Distrito Federal (DF), no início de maio, atendeu pedido de urgência, decretando o divórcio liminar da parte autora por tratar-se de um seu “direito potestativo e incondicional”, não protraindo as soluções de dignidade que esses casos reclamam. A decisão tem o seu principal mérito ao demonstrar que litigiosidade dessa espécie já não se faz mais necessária como demanda inevitável ou obrigatória em juízos de família, carecendo ainda a nossa legislação de uma otimização que desenvolva mecanismos não judicializados dos direitos potestativos (11). Entre fevereiro e abril de 2019, foram registrados 18,8 mil divórcios no país.
Segue-se dizer, afinal, que no contexto da coronacrise e dos seus reflexos futuros, serão precisos melhores meios à satisfação do direito substancial, designadamente em proteção das famílias. Nessa perspectiva, uma moderna dinâmica do processo civil, uma nova ordem jurídica justa e novas responsabilidades públicas, servirão a conduzir e efetivar as soluções reclamadas de maior dignidade.
Jan-Pierre Changeux (neurobiólogo) e Paul Ricouer (filósofo do direito), na obra dialogada “La Nature et la règle: ce quis nous fait penser” (1998) trabalhando nossas atividades mentais e externas, em torno das normatividades éticas e de nossa própria natureza, diante dos paradigmas e urgências da sociedade, respondem, com exatidão, o que devemos pensar e fazer. Uma determinação precisa em prol de uma nova civilização de paz e igualdade (12)
Será preciso, então, escolher o caminho certo e nessa escolha haverá, por certo, toda a diferença.
Anotações:
(01) Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1408277
(02) CHAKOUB, Sidney. Cidade Febril. Cortiços e epidemias na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017, 2ª ed., 286 p., p. 37.
(03) ESMAPE – Escola Judicial de Pernambuco do TJPE. Live jurídica - Conexão Esmape: “Acesso à justiça na crise da pandemia”, em 28.05.2020, com Susan Simone Kang (BCLS-EUA), Jones Figueirêdo (TJPE), Sérgio Torres Teixeira (TRT-6ª. Reg.) e Carmem Sophia Almeida (ESMAPE). Canal Esmape-YouTube: https://youtu.be/EkNPXXBFpRc
(04) NERY, Maria da Penha. Vínculo e Afetividade: caminhos das relações humanas. São Paulo: Editora Ágora, 2014, 3ª ed.;
(05) MARINONI, Luiz Guilherme. “Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução imediata da Sentença”, São Paulo: Ed. RT, 1997, 272 p.
(06) A propósito: RODRIGUES, José Rodrigo (org.). A justificação do formalismo jurídico. Textos em debate”. São Paulo: Saraiva, 2011. Série “Direito em Debate – Direito, Desenvolvimento, Justiça”.
(07) O PL nº 1.179/2020 instituindo regime jurídico emergencial nas relações privadas, submetido à sanção presidencial, confere-lhe maiores poderes.
(09) ALVES, Jones Figueirêdo. “A figura abusiva do condômino antissocial prevista pelo parágrafo único do art. 1.337 do Código Civil. Coercibilidade e controle condominial”. In: DELGADO, Mário Luiz. ALVES, Jones Figueirêdo (Coord). Novo Código Civil. Questões Controvertidas, vol. 7 – Direito das Coisas. São Paulo: GEN/Ed. Método, 512 p.; Cap. 15 – pp. 291-311.
12) Éditions Odile Jacob, Série OJ. Sciences; 350 p.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)
Fonte: Consultor Jurídico, em 31.05.2020
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