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A efetividade do direito a alimentos na pandemia e a pandemia da impenhorabilidade absoluta do auxílio emergencial
Rafael Miguel Delfino
Pós-graduado (“latu sensu”) em Mediação de Conflitos e Arbitragem pela Faculdade Unyleya (2019) e Pós-graduado (“latu sensu”) em Direito Ambiental pela Escola Superior São Francisco de Assis — ESFA (2013). É Defensor Público do Estado do Espírito Santo desde 2010. Foi Diretor Jurídico da Associação dos Defensores Públicos do Espírito Santo de 2013 a 2014 e Conselheiro Superior da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo de 2015 a 2018.
A par da concessão do auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) pelo Governo Federal ao trabalhador que cumprir cumulativamente os requisitos do artigo 2º da Lei nº. Lei nº 13.982, de 02 de abril de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Resolução n°. 318, de 07 de maio de 2020, recomendou aos magistrados que se atentem para a impenhorabilidade dos valores dele decorrentes.
A partir de tal recomendação, uma questão importante se levantou no mundo jurídico: a despeito da redação do artigo 5º da Resolução nº. 318 do CNJ, são realmente impenhoráveis os valores recebidos a título de auxílio emergencial previsto na Lei no 13.982/2020? E se o débito exequendo for decorrente de obrigac?a?o alimentar?
É preciso compatibilizar a recomendação do CNJ com o ordenamento jurídico vigente, por meio de uma interpretação sistemática e teleológica à luz da letra e do espírito da Constituição, mais ainda diante da possibilidade – já sinalizada pelo Governo – de prorrogação do pagamento do auxílio emergencial.
Antes, porém, uma questão pressuposta exige resposta – perdoe-se o trocadilho: cumprimento de sentença e ação de execução de alimentos são cabíveis no regime de Plantão Extraordinário estabelecido pela Resolução nº. 313 do CNJ, de 19 de março de 2020? Só faz sentido discutirmos se o auxílio é ou não impenhorável diante de dívida alimentar se a resposta a esta indagação for positiva, isto é, se entendermos que cumprimento de sentença e ação de execução de alimentos são urgentes. Do contrário, não haverá possibilidade de se manejar um pedido de penhora do auxílio emergencial em sede de regime de Plantão Extraordinário, talvez apenas um pedido de desbloqueio.
De acordo com a vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Maria Berenice Dias, “Não há nada mais urgente do que o direito a alimentos, pelo simples fato de assegurar a vida e garantir a sobrevivência. Disto ninguém duvida”[1]. Ledo engano! Parece elementar, mas infelizmente há quem duvide, mesmo no atual estágio da civilização, com subterfúgio no artigo art. 4º. da Resolução nº. 313 do CNJ, que não garante expressamente a apreciação do cumprimento de sentença e da ação de execução de alimentos no regime de Plantão Extraordinário.
Pois bem.
Muito embora não se enquadre, direta e imediatamente, em qualquer das matérias mínimas estabelecidas no artigo 4° da Resolução nº. 313/2020 do CNJ, expressamente cabíveis no regime de plantão extraordinário, a execução de alimentos é, sim, matéria urgente, a toda evidência.
Afinal de contas, o primeiro direito fundamental do ser humano é o de sobreviver. E este, com certeza, é o maior compromisso do Estado: garantir a vida. Todos têm direito de viver, e viver com dignidade. O direito a alimentos é sinônimo de preservação da dignidade humana (CF 1º III)[2].
Nesse sentido, está o escólio do famigerado professor Flávio Tartuce, em importante obra de autoria coletiva publicada pelo IBDFAM e coordenada pelo não menos afamado professor Rodrigo da Cunha Pereira:
Desde a sua mais elementar existência, o ser humano sempre necessitou de ser alimentado para que pudesse exercer suas funções vitais. A propósito, nas lições de Álvaro Villaça Azevedo, a palavra alimento vem do latim alimentum “que significa sustento, alimento, manutenção, subsistência, do verbo alo, is, ui, itum, ere (alimentar, nutrir, desenvolver, aumentar, animar, fomentar, manter, sustentar, favorecer, tratar bem)” [...] o que justifica a existência de normas de ordem pública a respeito da matéria.
O pagamento dos alimentos visa a pacificação social, estando amparado nos princípios da dignidade da pessoa humana e solidariedade familiar. [...] Em breve síntese, os alimentos devem ser concebidos dentro da ideia de patrimônio mínimo, de acordo com a festejada tese construída pelo professor Luiz Edson Fachin.[3]
Neste peculiar, cumpre rememorar que, dentro os direitos transigíveis, inexiste direito tão indisponível quanto os alimentos.
Não por outro motivo, o artigo 215 do Código de Processo Civil estabelece que a ação de alimentos se processa inclusive durante as férias forenses:
Art. 215. Processam-se durante as férias forenses, onde as houver, e não se suspendem pela superveniência delas:
[...]
II - a ação de alimentos e os processos de nomeação ou remoção de tutor e curador;
Facilmente perceptível, o reconhecimento da urgência das ações alimentares é ope legis, e não apenas em razão do disposto no artigo 215, II, do CPC, que assevera que elas não se suspendem nem mesmo nas férias forenses, como, também, pela sistemática que envolve tais ações e os respectivos cumprimentos de sentença: tanto a fase de conhecimento contemplada pela Lei n.º 5.478, de 25 de julho de 1968, como a fase de execução do artigo 528 do CPC são tão especiais quanto mais abreviadas.
De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, nem mesmo a execução de alimentos antiga deixa de ser urgente:
O fato de se tratar de execução de alimentos em trâmite há quase 10 anos e que atingiu vultoso valor não é suficiente, por si só, para descaracterizar a atualidade e urgência dos alimentos, sobretudo quando esse cenário foi causado exclusivamente pelo devedor que jamais efetuou quaisquer pagamentos e que buscou rever acordo por ele celebrado apenas 02 dias após a assinatura, devendo, na ausência de informações sobre a condição econômica da credora e na inviabilidade de exame da alegada impossibilidade de adimplemento da dívida, ser mantido o decreto prisional, pois ausente ilegalidade ou teratologia.
(RHC 99.234/TO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2018, DJe 20/11/2018)
Dando o devido acabamento a esta sina de ideias, está o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Ora, do que adiantaria receber uma ação de alimentos no regime de Plantão Extraordinário, por compreendê-la urgente com base no artigo 4º, inciso II, Resolução nº. 313 do CNJ (“medidas liminares e de antecipação de tutela de qualquer natureza, inclusive no âmbito dos juizados especiais”), fixar alimentos provisórios, mas não permitir o cumprimento da decisão interlocutória, por exemplo? Não faz qualquer sentido!
E não é verbosidade dizer que o cumprimento de sentença nada mais é do que uma simples fase executiva de um processo sincrético, extensão da ação de conhecimento que lhe serve de fundamento, portanto.
A propósito, de se notar que o rol do artigo 4º da Resolução nº. 313 do CNJ não traz em seu bojo qualquer medida executiva, apenas medidas atinentes a processo de conhecimento ou cautelar. E nem haveria necessidade de trazer, pois o artigo 4º do CPC – de evidente conteúdo axiológico – reconhece que “As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.
Enfim, não se descobre, dentre todas as razões passíveis de serem consideradas em termos de valoração e argumentação jurídico-normativa, nenhuma que seja suficiente para fundamentar e justificar o não processamento dos cumprimentos de sentença e das ações de execução de alimentos no regime de Plantão Extraordinário em virtude da doença COVID-19.
Como diria o sociólogo Betinho, “quem tem fome, tem pressa”. De fato, o direito a alimentos só não é urgente par quem não tem fome. E tratando-se de alimentos para crianças e adolescentes, porém, a fome (as necessidades) é (são) presumida (s), e tal presunção – perdoe-se o truísmo – é jure et de jure (absoluta).
Todavia, parece-nos razoável compreender que os alimentos relativos a período anterior ao trimestre que precedeu o ajuizamento da execução não são urgentes, em razão da descaracterização da atualidade, mas não aqueles concernentes ao último trimestre, ainda que antigos, posto que caracterizados pela atualidade e, portanto, urgência, na linha do julgado do STJ anteriormente colacionado. Trocando em miúdos: o cumprimento de sentença do artigo 528 do CPC e a ação de execução do artigo 911 do CPC são urgentes; já o cumprimento de sentença do artigo 523 do CPC e a ação de execução do artigo 913, a nosso viso, podem ser compreendidos como não urgentes, dentro de uma razoabilidade.
E nem se levante, como argumento (raso) de que o cumprimento de sentença e a ação de execução de alimentos não são apreciáveis em Regime de Plantão Extraordinário, a Recomendação nº. 62 do CNJ, de 17 de março de 2020, cujo artigo 6º dispõe: “Recomendar aos magistrados com competência cível que considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus”.
Isto porque, muito embora o CNJ, por meio da Recomendação nº. 62, tenha recomendado aos magistrados que considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas civilmente em razão da pandemia da COVID-19, não significa isso que o juiz não possa mandar intimar o executado nos termos do artigo 528 do CPC, inclusive sob pena de prisão, afinal de contas uma recomendação do CNJ – que tem força normativa inferior a uma resolução – não tem o condão de alterar o CPC, com todo respeito.
E – mais do que isso – é somente quando o executado não efetua o pagamento, não prova que o efetuou ou não apresenta justificativa da impossibilidade de efetuá-lo que o juiz lhe decreta ou não a prisão, entrando em cena, só a essa altura, a referida recomendação do CNJ, isto é, somente depois do prazo de 3 (três) dias a que se refere o caput do artigo 528 do CPC.
Em jeito de síntese, uma coisa é determinar a intimação do devedor sob pena de prisão, outra é decretar-lhe a prisão e outra – efetivamente distinta – é realmente prendê-lo. Nesse ponto, recordo-me das sábias palavras do presidente do IBDFAM, Rodrigo da Cunha Pereira, a quem peço licença para parafrasear: o que é efetivo no cumprimento de sentença do artigo 528 do CPC (e na ação de execução do artigo 911 do CPC), não é a prisão em si, é a (simples) possibilidade de prisão do devedor.
Esclareça-se que a Recomendação nº. 62 do CNJ nos soa bastante razoável, seja pela precariedade dos presídios brasileiros, que apresentam um ambiente insalubre propício à propagação de doenças infectocontagiosas e cujo Estado de Coisas Inconstitucional já foi reconhecido pelo STF na ADPF 347, seja, ainda, porque um detento tem 35 (trinta e cinco) vezes mais chance de contrair tuberculose, que é a doença infecciosa que mais mata no mundo e perigosíssima comorbidade para indivíduos infectados pela COVID-19, aumentando em quase 6x (seis vezes) a chance de falecimento por COVID-19, conforme estudo realizado pelo Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz (2018). Inclusive, ad argumentandum tantum, tal medida foi elogiada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.[4]
Contudo, da leitura do artigo 6º da Recomendação nº. 62 do CNJ (e sua aceitação como positiva) não decorre logicamente a conclusão de que o cumprimento de sentença e a ação de execução de alimentos não se processam em tempos de pandemia. Claro que se processam, ainda que não se possa efetivamente prender o devedor! A execução de alimentos existe fora da prisão civil e com ela não deve ser confundida, de sorte que a Recomendação do CNJ não obsta a apreciação de cumprimentos de sentenças e ações de execução de alimentos em regime de Plantão Extraordinário em razão da COVID-19. É intuitivo!
Tanto é verdade isso que, “O cumprimento da pena não exime o executado do pagamento das prestações vencidas e vincendas” (§ 5º) e “O exequente pode optar por promover o cumprimento da sentença ou decisão desde logo”, nos termos do art. 523 do CPC (pelo rito de penhora), amparado pelo princípio da disponibilidade da execução. A eleição do rito do artigo 523 do CPC, aliás, não tem o condão de tirar a atualidade e urgência que reveste as 3 (três) prestações alimentícias anteriores ao ajuizamento da execução.
Voltando ao fio condutor do nosso raciocínio, apesar de o artigo 523 do CPC ser uma possibilidade que se coloca à frente do credor de alimentos, este não pode ser tolhido do devido processo legal traçado pelo artigo 528 do CPC em razão uma recomendação, ainda que, ao final e ao cabo, não se prenda o devedor – como de fato não se deve prendê-lo durante a pandemia, por razões humanitárias. A coação está mais na possibilidade da prisão do que na prisão em si mesma – repita-se –, e o credor faz jus a esse efetivo instrumental à disposição da efetividade do direito aos alimentos.
Nada impede – tudo aconselha – que o juiz decrete a prisão mas não expeça o mandado de prisão enquanto durar a pandemia. Com relação aos processos que já estavam em curso, basta que o juiz suspenda o cumprimento da ordem de prisão ou recolha os mandados expedidos sem cumprimento, mas sem revogar a decretação da prisão civil, que, por assim dizer, ficará em stand-by, aguardando o fim da pandemia, a permanecer dissuadindo o devedor ao pagamento dos alimentos, que terá a certeza de que será preso futuramente caso continue inadimplente de maneira voluntária e inescusável.
A propósito, se se não se admitir a formulação de requerimento de cumprimento de sentença e o ajuizamento de ação de execução de alimentos pelos ritos dos artigos 528 e 911 do CPC, respectivamente, alimentos revestidos de atualidade hoje perderão tal característica daqui a 3 (três) meses, e não mais poderão ser executados sob pena de prisão, isso sem falar que os ritos dos artigos 523 e 913 do CPC não abrangem as prestações que se vencerem no curso do processo, produzindo efeitos atalhadores no direito fundamental do credor.
O fato é que, existem outras medidas executivas diversas da prisão, típicas e atípicas, e que podem dissuadir o executado ao pagamento do débito exequendo, a exemplo da negativação do nome do devedor no SPC. Aliás, na topologia do CPC, trata-se de medida prioritária, prevista no § 1º do artigo 528, antes e independentemente da coerção pessoal, que só vem disciplinada no § 3º, senão vejamos:
Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo.
§ 1º Caso o executado, no prazo referido no caput, não efetue o pagamento, não prove que o efetuou ou não apresente justificativa da impossibilidade de efetuá-lo, o juiz mandará protestar o pronunciamento judicial, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 517 .
§ 2º Somente a comprovação de fato que gere a impossibilidade absoluta de pagar justificará o inadimplemento.
§ 3º Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.
A toda evidência, numa pandemia com consequências econômicas nefastas, onde as pessoas fatalmente precisarão de crédito até mesmo para sobreviver (ou para a sobrevivência de seus negócios), o protesto do pronunciamento judicial e inclusão do nome do devedor no cadastro de inadimplentes se revela importante instrumento de coação. Depois tem a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) do executado, a apreensão do passaporte (medida talvez nem tão efetiva no momento, é verdade), e tantas outras medidas executivas atípicas que podem ser livremente criadas a partir do poder geral de execução conferido ao magistrado pelo artigo 139, inciso IV, do CPC.
A questão fundamental que aqui se impõe é a de que, outra medida executiva típica que pode ser invocada diante da inviabilidade de efetiva prisão do devedor é a penhora. E se é verdade que o mandado de penhora deve ser cumprido por oficial de justiça – o que poderia soar estranho diante das medidas de isolamento social –, não menos verdade é que a penhora de dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira, é preferencial à penhora de bens móveis e imóveis, inclusive à penhora de veículos de via terrestre, que pode ser realizada pelo sistema RenaJud, por meio da inserção de restrição judicial de transferência.
Art. 835. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:
I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;
[...]
IV - veículos de via terrestre;
V - bens imóveis;
VI - bens móveis em geral;
[...]
§ 1º É prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
E além de prioritária, a penhora de dinheiro é determinada pelo juiz às instituições financeiras por meio do BacenJud, ou seja, independe Oficial de Justiça:
Art. 854. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao executado, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que torne indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado, limitando-se a indisponibilidade ao valor indicado na execução.
Nessa esteira, está o benefício assistencial temporário cognominado de auxílio emergencial, vulgo “coronavoucher”, que nada mais é do que dinheiro, e dinheiro vivo.
Acontece que, ao mesmo tempo em que o Governo Federal concedeu o auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) ao trabalhador que cumprir cumulativamente os requisitos do artigo 2º da Lei nº. Lei nº 13.982 de 2020, o CNJ, por meio da Resolução n°. 318 de 2020, recomendou aos magistrados que se atentem para a impenhorabilidade dos valores dele decorrentes:
Art. 5. Recomenda-se que os magistrados zelem para que os valores recebidos a título de auxílio emergencial previsto na Lei nº 13.982/2020 não sejam objeto de penhora, inclusive pelo sistema BacenJud, por se tratar de bem impenhorável nos termos do art. 833, IV e X, do CPC.
Quid iuris se, os valores recebidos a título de auxílio emergencial forem bloqueados pelo BacenJud? A solução é dada pelo parágrafo único do referido dispositivo:
Parágrafo único. Em havendo bloqueio de valores posteriormente identificados como oriundos de auxílio emergencial, recomenda-se que seja promovido, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, seu desbloqueio, diante de seu caráter alimentar.
Ocorre que, o mesmo dispositivo mencionado no artigo 5º da Resolução nº. 318 do CNJ – utilizado equivocadamente para cravar a impenhorabilidade (absoluta) do auxílio emergencial –, qual seja, o artigo 833, incisos IV e X, do CPC, contém um § 2º que afirma, águas-claras, que “O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem”.
Art. 833 [...]
§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem
Dessa forma, a recomendação do CNJ é altamente válida para dívidas civis em geral, não prevalecendo, obviamente, diante de dívidas alimentares.
Trocando em miúdos, o auxílio emergencial é impenhorável, mas não absolutamente impenhorável. É relativamente impenhorável. Vale lembrar que nem mesmo o bem de família é absolutamente impenhorável, conforme já asseverou o STJ. A exceção de impenhorabilidade dos incisos IV e X do artigo 833 do CPC – e, portanto, do auxílio emergencial, por equiparação – não se aplica face à dívida alimentar.
Nada mais natural, do contrário estaríamos elevando o auxílio emergencial à categoria de super-verba, soberanamente impenhorável, o que, a toda evidência, não é o caso, porque – perdoe-se a insistência – o § 2º do artigo 833 do CPC excepciona os alimentos “independentemente de sua origem”.
Imaginemos, por hipótese, uma genitora que também seja beneficiária do auxílio emergencial (ou não). Livrar o genitor da penhora do auxílio emergencial é por via reflexa, expropriar o auxílio emergencial (ou o salário) da genitora, vez que terá que continuar arcando, sozinha, com o sustento da prole – que não é só sua –, o que não é razoável, certo de que o Estado, ao vestir um santo, não pode desnudar o outro.
De fato, o auxílio emergencial, dada a sua indiscutível natureza alimentar, é impenhorável, assim como o são as verbas arroladas nos incisos IV e X do artigo 833 do CPC, mas não diante pagamento de prestação alimentícia, pelas razões que declinamos logo no início deste ensaio. Se o melhor tempero da comida é a fome, do Direito é a sensibilidade, a humanidade.
Nem de diga que o deferimento de tal pleito reduziria o devedor à penúria em plena pandemia, vez que há dispositivo no CPC que pode ser utilizado para proteger o mínimo existencial do devedor também, qual seja, o art. 529, § 3º, do CPC, que limita o desconto do débito objeto da execução ao teto de 50% dos seus ganhos líquidos:
Art. 529. [...]
§ 3º Sem prejuízo do pagamento dos alimentos vincendos, o débito objeto de execução pode ser descontado dos rendimentos ou rendas do executado, de forma parcelada, nos termos do caput deste artigo, contanto que, somado à parcela devida, não ultrapasse cinquenta por cento de seus ganhos líquidos.
E se de um lado temos o devedor que merece ter o seu mínimo existencial e dignidade resguardados, de outro lado temos a criança ou adolescente, que além de tudo, é vulnerável, merecedor de proteção integral, prioridade absoluta e melhor interesse. Nada mais justo, portanto, que, com a espada do § 3º do art. 529 do CPC, reparta-se ao meio o auxílio emergencial, ainda que o alimentando, na prática, encontre-se numa posição financeiramente menos desconfortável que o alimentante, seja pelo reconhecimento legal da vulnerabilidade das crianças e adolescentes, seja porque as necessidades destes são absolutamente presumidas, seja porque aos menores são devidos alimentos civis ou côngruos.
Aliás, mesmo diante do triste cenário pelo qual atravessamos atualmente, não vejo qualquer espaço para a (re) discussão do binômio necessidade-possibilidade em sede de execução alimentos, ainda que o devedor esteja numa situação muito difícil, posto que – insista-se – já existe mecanismo de proteção do seu mínimo existencial, qual seja, o artigo 529, § 3º, do CPC, por meio do qual lhe será reservado metade do valor do auxílio emergencial, e porque a prisão civil está desaconselhada na pandemia, à luz da Recomendação do CNJ. Dito de outro modo, o devedor não será preso e nem morrerá de fome. Essa é a dura realidade decorrente do princípio da paternidade responsável!
Mas como o Direito também é vida, é gente, sociedade, incansável e incessante busca de alcançar o justo, vale ressalvar situações excepcionalíssimas, quiçá até mesmo o caso do devedor que consiga demonstrar, em sede de justificativa ou pedido de desbloqueio, que o decote de R$ 300,00 (trezentos reais) do seu auxílio emergencial colocá-lo-á em iminente risco de sobrevivência, e que a genitora também é beneficiária do auxílio emergencial, e no valor de R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais), em razão de se qualificar como provedora de família monoparental constituída por ela e o único filho em comum com o devedor, por exemplo. Na prática, como consequência da penhora de 50% do auxílio emergencial, pode revelar-se deveras desarrazoado o devedor, comprovadamente hipossuficiente e em plena pandemia, receber apenas R$ 300,00 (trezentos reais) e a genitora e o único filho em comum com este R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais). Como sempre, o operador do Direito deve estar muito atento às circunstâncias do caso. Existe a exceção da exceção.
Ademais, nada impede que o devedor, diante da redução da sua latente capacidade financeira, ingresse com ação revisional de alimentos, inexistindo óbice para a concessão de tutela provisória de urgência de natureza antecipada para o fim de reduzir liminarmente o valor da pensão alimentícia, bastando o preenchimento dos requisitos do artigo 300 do CPC, certo de que estamos em meio a uma pandemia com notória repercussão no binômio necessidade-possibilidade, fortemente reveladora da importância da teoria da imprevisão, cuja aplicação encontra campo fértil nas ações alimentares.
E malgrado a resistência de vários Operadores do Direito em limitar alimentos sem que se estabeleça previamente o contraditório, forte, principalmente, na súmula 358 do STJ – mas não menos da súmula 621, que nada mais faz do que estender a aplicação do § 2º do artigo 13 da Lei de Alimentos para as ações revisionais de alimentos –, cumpre rememorar que estamos no meio de um acontecimento jamais vivido pela atual geração, com intensas repercussões políticas, econômicas e sociais, e que gerou uma reviravolta nas relações e, com efeito, no Direito, um verdadeiro período de exceção para o qual não podem tergiversar aquele que lidam com as agruras da sociedade.
Então, respondendo à questão que nos fez chegar entusiasmadamente até aqui, o auxílio emergencial é, sim, passível de penhora diante de débito alimentar, não apenas pelo BacenJud (isto é, depois que o devedor já recebeu o benefício), como também por meio da expedição, pelo magistrado, de ofício à Caixa Econômica Federal determinando a indisponibilidade/bloqueio de todos os valores que eventualmente forem concedidos ao executado a título de Auxílio Emergencial (isto é, antes de o devedor receber o benefício).
Afinal de contas, fome é pandemia e também mata, senão a vida, com certeza a dignidade.
[...]
“A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro e não pela metade
Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
[...]
(Trecho da música “Comida”, dos Titãs - Composição: Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Sérgio Britto).
[1] DIAS, Maria Berenice. A cobrança dos alimentos no novo CPC. Migalhas, ISSN 1983-392X, 13 nov. 2015. Disponível em:
[2] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 608 p.
[3] TARTUCE, Flávio. Alimentos. In: SILVA, Rodrigo da Cunha Pereira (Org). Tratado de Direito das Famílias. 2. ed. Belo Horizonte: IBDFAM, 2016. p. 517-586. 1064 p.
[4] THOMAZELLI, Daniel R. BRAZ, Fernando G.. A Covid-19 e a Liberação de Presos Civis por Dívidas de Alimentos: Uma Análise de Cenários Jurídico-Econômicos Sob a Ótica do Alimentando. IBDFAM, ISSN 2358-1670, Belo Horizonte, 15 abr. 2020. Disponível em:
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