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Em nome próprio
Fonte: Boletim do IBDFAM nº 26
Duas decisões opostas, uma em São Paulo, outra em Minas Gerais, a respeito de um mesmo assunto - a mudança de nome e sexo de pessoas, transexuais, já operadas, que buscaram na Justiça a legitimação para um estado de fato.
A diferença nas decisões é intrigante, leva-nos a pensar que legitimação estaria sendo buscada e qual seria o papel do Judiciário frente a tais casos. O assunto da sexualidade, homo, hetero e trans, de certo que é incerto e traz dúvidas muito importantes, mas talvez não tão essenciais à natureza humana quanto o status que muitas vezes tentamos lhes dar.
Utilizo o espaço da coluna para lançar alguns questionamentos que, sem dúvida, necessitam, em busca de esclarecimento, do auxílio de outras disciplinas, sobretudo da filosofia. Fica o convite e ressalva de que me permitirei uma certa ousadia neste terreno.
Na realidade, nossa essência não está ao nosso alcance. Podemos tentar nos aproximar dela com o conceito de dignidade da pessoa e sua proteção. A dignidade da pessoa humana é um conceito amplo que escapa a qualquer definição reducionista. É de difícil apreensão, sobretudo com a utilização de recursos exclusivamente racionais, necessitando para tal o concurso da capacidade de empatia - presente em todos nós. Já, diferentemente desta, a simpatia e a antipatia implicam em valorações afetivas, permeadas de uma subjetividade que pode conter juízos morais e preconceitos. Enquanto que, por outro lado, a empatia mostra-se instrumento de valoração ética, útil na apreensão da dignidade da pessoa.
Impõe-se ao menos o cuidado em tentar fazer algumas destas distinções, uma vez que o referido princípio da dignidade da pessoa humana é universal, e cabe a preocupação de que sua defesa não venha a servir como veículo de preconceitos e defesa de conceitos morais relativos. Tratam-se de níveis distintos que, creio, não podem ser simplesmente sobrepostos; o que não nos exime de tentar enfrentar os problemas atuais, fruto do desenvolvimento das ciências, que tocam a nossa natureza humana.
Então, nos vem a questão: podemos impingir ao outro o que entendemos como sendo sua dignidade, atribuindo-nos um nível maior de consciência do que aquela que o outro parece, sob nosso olhar, ter? Talvez, no máximo, podemos tentar apreendê-la, com o uso da empatia, respeitá-la dentro dos princípios de individualidade, autonomia e liberdade que não podem lhe fazer oposição e, defendê-la ampla e indiscriminadamente nas ações sociais e, especificamente quando o sujeito, em nome próprio, chama para si, advoga, a defesa de sua dignidade. Atender a este princípio implica em escutar e legitimar, quando possível, o que o outro apreende de sua dignidade, sendo assim incompatível a prescrição indiscriminada do que é ou não digno.
Faço estas ressalvas, pois ao enfrentar as questões relativas ao exercício da sexualidade, corremos muitas vezes o risco de espelhar as indefinições, em maior ou menor graus, inerentes à esta área, confundindo níveis de análise. Dignidade e sexualidade, personalidade e sexualidade, o ser e a sexualidade - conceitos que não se confundem. A sexualidade é expressão de parte do nosso ser e ganhou, depois de Freud, uma dimensão ampla, não se restringindo somente à genitalidade. O que, por outro lado, não nos autoriza, e jamais foi este seu propósito, aliás, pelo contrário, a tomar a parte pelo todo, a pessoa pela manifestação de sua sexualidade.
O sexo, a raça, a idade, o estado civil, a nacionalidade etc. são aspectos da identidade, a que se tem direito, mas não se constituem sozinhos a essência da pessoa; nenhum deles é suficiente para defini-la.
No entanto, estes são aspectos aparentes que transmitimos de nossa personalidade e, por outro lado, os vemos espelhados, nos olhos da sociedade. Desta, recebemos uma valoração que em muito influenciará a auto-estima de cada um. Também reflexo desta valoração são as diferentes oportunidades que a sociedade nos dá, e que lutamos para que sejam iguais, independentemente dos aspectos distintos da personalidade de cada um.
Não devemos esquecer que a aprovação social - sempre parcial e condicional, é um dos ingredientes da auto-estima, composta também pelo sentimento de identidade e de dignidade. E são estes que nos trazem a confiança necessária para enfrentar as diferenças e adversidades, e que inclusive impedem que nos confundamos com o social.
Retomo então que a sexualidade é um dos aspectos que compõe a identidade e que, por mais evidente que possa ser, é em sua verdade, da ordem da privacidade. Ou, como temos dito, é da ordem do desejo e do inconsciente, sobre o qual é impossível legislar.
Questões da sexualidade, hetero, homo e trans, têm provocado o Judiciário. A crescente ciência de abusos sexuais contra menores, inclusive incestos, aqueles cometidos dentro da própria família; os casais homossexuais que desejam ser reconhecidos como famílias e mesmo aptos à adoção; os transexuais que buscam a sintonizar a oposição entre uma sexualidade psicológica e a biológica. Questões amplas que encontram o espelho de sua indefinição inclusive na dúvida que se coloca de que competência seriam criminal, civil, família e sucessões.
Mas uma distinção importante se impõe - a da diferença entre adultos e crianças. Uma das marcas de nossa modernidade é justamente a disjunção entre o privado e o público, entre a sexualidade e a parentalidade. Esta sim, faz parte do aspecto em que se aceita a intervenção do Estado na vida familiar quando há menores; os filhos fazem a passagem da família para a sociedade e merecem sua especial atenção. Já a sexualidade é da ordem do privado.
É assunto difícil, pois toca fundo a todos nós, nossos preconceitos, levantando questões que todos temos, consciente ou inconscientemente. Juntamente com outras características, é também por meio da sexualidade que nos diferenciamos. E este é outro ponto a levantar: qual o significado de uma retórica da igualdade , que acaba por desconsiderar as diferenças, tão fundamentais em nossa constituição. Os mesmo direitos, sim, as mesmas oportunidades, sim; o que absolutamente não significa sermos iguais, sendo a identidade de cada um única, indissociável do conceito mesmo de dignidade.
Se há algum tempo assistimos a busca de um modelo feminino que acabou por imitar um modelo masculino, talvez estejamos assistindo o mesmo fenômeno quando há uma tentativa, não só de aceitação, mas de normatização da homossexualidade seguindo o modelo tradicional heterossexual . O preconceito pode estar tanto em relação à exacerbação das diferenças quanto na negação e banalização destas.
Nos casos de transexaulismo, como em outros, a dignidade e a identidade não estão em julgamento quando se requisita o reconhecimento de aspectos da identidade, sexo e nome, e de uma situação de fato, inclusive já avalizada por profissionais de outras áreas, da medicina e da psicologia, que contribuíram para a tentativa em sintonizar o sexo biológico com o que foi aferido como sendo o sexo psicológico. Também a aceitação e normatização não se dão, se é que é esta a questão, simplesmente via uma modificação na carteira de identidade.
Da ótica da psicanálise, o maior trabalho, inesgotável, é o interno, psíquico, na apropriação que constantemente fazemos de nós mesmos, de nossos recursos, de nossa identidade e de seus aspectos, como o é a sexualidade. A psiquê é composta de consciente e inconsciente, e de um passado que não pode ser deletado, e que ganha significado no presente e nas interpretações que, em primeiro lugar, a própria pessoa faz dos fatos, em nome próprio, e secundariamente também no sentido que a sociedade lhes dá.
E nesta linha, cabe enfatizar que quaisquer ações têm, além de um significado social, um significado psíquico, simbólico, que não se restringe a uma sentença. Podemos contribuir para diminuir o preconceito e respeitar o longo caminho por que passam as pessoas buscando um encontro consigo mesmas - que não se pode garantir - reivindicando para tal também o próprio nome.
Talvez nos coubesse transcender esta questão da sexualidade, não simplesmente homogeneizando as questões de uma forma moralista e, defendendo sim uma heterodoxia que nos permita contemplar, sem negar, as diferenças.
Subjetividade Negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 23 de abril, pedido de alteração de nome e sexo do transexual R.N.R. O juiz da 1ª vara de família do Fórum Lafayette, em Belo Horizonte (MG), Newton Teixeira de Carvalho, havia sido favorável ao caso em 2002. Porém, o Ministério Publico Estadual apelou contra a decisão, apoiado pelos desembargadores da 4ª Câmara Cível, que agora mantiveram a apelação. R.N.R. passou por uma cirurgia de mudança de sexo em 2001. Pedido semelhante a esse foi acatado, em 11 de abril, pelo Juiz Elcio Trujillo, da 7ª vara de Família de São Paulo (SP). Contrariando o parecer do Ministério Publico desse Estado, que requereu a extinção do pedido sob alegação de carência, o Juiz deferiu as retificações pretendidas pelo transexual P.C.O., julgando-as procedentes. O requerente, que também já havia feito a cirurgia no ano passado e vive maritalmente com um homem, apresenta agora em sua documentação a expressão "sexo feminino" e diz estar "livre dos transtornos e do constrangimento de ser uma mulher com identificação masculina.". Fontes: Jornal O TEMPO, 23 de abril de 2004, e Revista Consultor Jurídico, 19 de abril de 2004. |
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