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Adoção de recém-nascidos e o adiamento de sonhos
Adoção de recém-nascidos e o adiamento de sonhos
Walter Gome – Supervisor da SEFAM
Não é novidade para ninguém que a preferência das famílias brasileiras na hora de decidir por uma adoção recai sobre um perfil mais restrito, especialmente recém-nascido, saudável e sem irmãos. Esse perfil é o mais procurado por 95% dos interessados habilitados no sistema Nacional de Adoção. Por ser o perfil mais concorrido a consequência natural decorrente é a possibilidade de um maior período de espera até que o sonho adotivo seja concretizado. E esse aspecto da adoção, a espera, por vezes se transforma numa inesgotável fonte de ansiedade.
Embebidos por tais sentimentos, os requerentes tendem a direcionar os seus reclamos ao que eles denominam “burocracia judicial” e responsabilizam o sistema infanto-juvenil pelo contínuo adiamento dos sonhos adotivos. O que precisa ser esclarecido de maneira objetiva e transparente é que foge à competência do poder judiciário garantir a concretização de adoções envolvendo crianças com perfis mais restritos, especialmente bebês, em grande quantidade e em um curto prazo de tempo. Tal assertiva se baseia em algumas razões listadas a seguir:
1 – A adoção é retratada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, como uma medida excepcional, pois a prioridade é a convivência de qualquer criança ou adolescente com sua família biológica. O artigo 39, parágrafo primeiro da referida legislação preconiza que "a adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na sua família natural ou extensa ...". Isso significa que a prioridade a ser observada pelo Estado é a garantia de que meninos e meninas permanecem integrados junto a sua família natural e que para tanto todas as políticas setoriais de promoção e fortalecimento dos núcleos familiares especialmente os mais vulneráveis e fragilizados devem ser aplicadas. Na hipótese de tais medidas se mostrarem inócuas e o ambiente familiar continuar representando nocividade à integridade das crianças ou jovens e consequentemente violação de seus direitos fundamentais, a autoridade judiciária poderá determinar o cadastramento para adoção. O legislador é bastante claro e pedagógico: em primeiro lugar vem a família biológica; em segundo lugar, diante da impossibilidade da primeira alternativa, vem a família socioafetiva constituída pela via da adoção.
2 – A entrega de crianças recém-nascidas em adoção por meio do instituto da entrega voluntária tem decrescido em nível nacional o que impossibilita que os mesmos sejam disponibilizados aos postulantes habilitados. Oras, se o perfil mais desejado pela maioria dos pretendentes não está disponível, evidentemente que o resultado natural é o aumento do número de candidatos não contemplados e a ampliação do tempo de espera. No Distrito Federal tem se verificado um aumento anual no número de mulheres que manifestam interesse na adesão ao instituto da entrega voluntária de bebês para fins de adoção, entretanto no transcorrer do acompanhamento psicossocial previsto na legislação a maioria delas acaba por manifestar arrependimento e por conseguinte não efetivam a entrega das referidas crianças. Como dito anteriormente, a não entrega desses bebês repercute na dinâmica do sistema local e nacional de adoção.
3 – A reintegração de crianças em situação de acolhimento familiar ou institucional às suas respectivas famílias naturais após a aplicação de medidas de promoção e superação vinculadas às políticas setoriais do Estado. A reintegração familiar de crianças e jovens protegidos pela medida de acolhimento institucional vem apresentando no âmbito do Distrito Federal uma curva descendente o que corrobora a priorização da família biológica destacado pelo artigo 39 do ECA, conforme acima mencionado. Entre a reintegração familiar e a adoção, evidentemente que a prioridade garantida por Lei recai sobre a primeira. À medida que o Estado por meio de suas políticas setoriais consegue promover a reestruturação mínima dos ambientes familiares mais vulneráveis, especialmente no tocante à capacidade de gerar proteção e segurança às crianças e jovens, as reintegrações destes após a passagem por entidades de acolhimento tendem a aumentar e isso também apresentará reflexos no sistema local e nacional de adoção.
4 – A adoção “intuito personae”, popularmente conhecida como adoção direta ou informal, continua sendo processada em diversas comarcas brasileiras sem qualquer freio inibitório e com a anuência (às vezes estímulo) de alguns agentes do Estado. Em muitos lugares esse tipo de adoção tem seu início por intermédio de uma “guarda consensual” onde os postulantes e a família natural por meio de tratativas informais acorrem ao poder judiciário com vistas à homologação de um arranjo de cuidados afetivos de uma criança por parte de terceiros não-parentes. Essa modalidade também gera grave repercussão na dinâmica do Sistema local e nacional de adoção, contribuindo potencialmente para o aumento do tempo de espera de quem já se encontra habilitado e aguardando a adoção de crianças com perfis mais restritos, especialmente bebês.
Talvez seja extremamente difícil para algumas pessoas a compreensão e a aceitação da realidade acima descrita. Com base nesse panorama pode-se concluir que os candidatos a pais por adoção, antes de terem um direito, possuem a expectativa de poder adotar. Isso porque a possibilidade de concretização do sonho adotivo dependerá de um conjunto de variáveis que envolvem a família biológica e sua dinâmica de vida, as políticas do Estado voltadas para a os núcleos familiares mais vulneráveis e fragilizados e as normas, princípios e procedimentos que envolvem a justiça infanto-juvenil. A conjugação de todas essas variáveis pode, infelizmente, contribuir para o adiamento do sonho da adoção de uma criança com perfil mais restrito e tal situação foge por completo à vontade do poder judiciário. Ressalte-se que o Sistema de Justiça não seleciona as crianças e/ou adolescentes que serão cadastrados para adoção. O cadastramento decorre da constatação de que independentemente da cor da pele, da faixa etária, da condição de saúde, eles vivenciaram situações não superadas de violação de direitos (abandono, negligência, violência física, sexual, emocional, etc.), foram expostos a toda sorte de riscos e vulnerabilidades e deixaram de vivenciar proteção e suprimento integral de suas necessidades junto às suas respectivas famílias naturais. Frise-se ainda que a referida constatação ocorre dentro de processos judiciais instaurados no âmbito da Justiça Infanto-juvenil com a garantia de respeito ao princípio do contraditório, às regras processuais e com a ação fiscalizatória do ministério público. Há que se destacar ainda que muitos dos disponibilizados antes de terem sido inseridos no cadastro de adoção vivenciaram diversas tentativas infrutíferas de reintegração familiar que resultaram no agravamento de seus traumas, angústias, medos e carências.
A célere realização de um processo adoção envolvendo bebês não depende das inovações trazidas pelo processo judicial eletrônico - PJE, nem tampouco das novas funcionalidades presentes no recém lançado Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento – SNA/CNJ. Está, isto sim, condicionada à eventual disponibilização judicial desse perfil mais restrito. Essa é uma realidade/verdade que infelizmente resulta no adiamento de sonhos adotivos para quem almeja de forma legítima e honrosa o acolhimento de um perfil mais restrito, destacadamente bebês.
Na área da adoção esperar a realização do sonho, significa entregar-se ao tempo e o tempo por sua vez deixa perguntas, mostra respostas, esclarece dúvidas, mas acima de tudo, o tempo traz verdades. Entretanto, conforme já dizia Jacques-Marie Émile Lacan, psicanalista francês: “cada um alcança a verdade que é capaz de suportar”.
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