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O consentimento do cônjuge na esterilização voluntária
O consentimento do cônjuge na esterilização voluntária
Natália Esteves de Souza [1]
Karina Gusmão de Moura [2]
RESUMO: O presente artigo analisa o parágrafo 5° do artigo 10 da Lei 9.263/96 que dispõe sobre a obrigatoriedade de consentimento expresso do cônjuge para a realização da esterilização voluntária. Objetiva demonstrar que este dispositivo conflita com princípios e direitos constitucionais, sendo prejudicial em especial às mulheres, em consequência ao grande número de casos de discriminação, imposição e violência contra a mulher. Aborda um assunto atual, tanto pela força dos movimentos feministas pela efetivação da liberdade e igualdade entre homens e mulheres constitucionalmente prevista, quanto por tramitar duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 5097/2014 e ADI 5911/2018) sobre o dispositivo ora analisado. A metodologia utilizada foi a exploratória e bibliográfica, com embasamento teórico dogmático que transcendeu para um viés interdisciplinar da Sociologia.
Palavras-Chave: Planejamento familiar. Esterilização voluntária. Consentimento.
ABSTRACT: This Article examines paragraph 5 of Article 10 of Law 9.263/96 which provides for the obligation to express consent of the spouse to carry out voluntary sterilization. It aims to demonstrate that this device conflicts with constitutional principles and rights, being detrimental in particular to women, as a result of the large number of cases of discrimination, imposition and violence against women. It addresses a current issue, both by the strength of feminist movements for the effectiveness of freedom and equality between constitutionally planned men and women, and for processing two Direct Actions of Unconstitutionality (ADI 5097/2014 and ADI 5911/2018) on the device is now analyzed. The methodology used was exploratory and bibliographic, with dogmatic theoretical basis that transcended an interdisciplinary bias of Sociology.
KEYWORDS: Family planning. Voluntary sterilization. Consent.
INTRODUÇÃO
A Lei 9.263/96 (Lei de Planejamento Familiar) em seu artigo 10, parágrafo 5°, dispõe sobre a obrigatoriedade do consentimento expresso do cônjuge para a realização da esterilização voluntária. Esse dispositivo é alvo de discussões tanto no seu aspecto jurídico, quanto social. No aspecto jurídico questiona-se os conflitos que esse dispositivo possui com direitos e princípios constitucionais. No viés social percebe-se que essa exigência legal prejudica em especial as mulheres, demonstrando um problema social enraizado na nossa sociedade.
Desta maneira, temos como pergunta norteadora: como a exigência do consentimento do cônjuge para a realização da esterilização voluntária conflita com direitos e princípios constitucionais, sendo prejudicial, em especial, às mulheres?
O parágrafo 5° do artigo 10 da Lei de Planejamento Familiar será analisado em seus aspectos jurídicos e sociais, objetivando demonstrar quais os princípios e direitos constitucionais que conflitam com o dispositivo, como essa exigência é especialmente prejudicial às mulheres e a obsolescência do dispositivo. Ressalta-se que além de haver duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade tramitando sobre o dispositivo, o tema é bastante atual devido a força dos movimentos feministas na busca da efetivação da liberdade e igualdade entre homens e mulheres.
A construção da estrutura metodológica dessa pesquisa pode ser classificada: a) quanto aos fins como exploratória, porque são parcos os materiais encontrados que aludem o tema e; b) quanto aos meios como bibliográfica, pois foram utilizados livros, artigos científicos, reportagens publicadas em sites da internet e processos eletrônicos.
Para o embasamento teórico dogmático foram utilizados como base jurídica a Lei Federal n° 9.263/96 e a Constituição Federal de 1988, transcendendo para um viés interdisciplinar da Sociologia, onde foi possível abordar o aspecto de prejudicialidade à mulher.
1 DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS COMO DIREITOS HUMANOS
A criação da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) no ano de 1948 foi um marco histórico que objetivou, de modo extenso, a garantia do mínimo existencial a todos. Com o seu advento, os direitos humanos passaram a ser reconhecidos internacionalmente como o conjunto de direitos individuais, coletivos e difusos que afirmam a necessidade de proteção da dignidade da pessoa humana.
A igualdade estabelecida no art. 1° da DUDH elevou a discussão sobre os direitos das mulheres do século XX, sendo que as subsequentes convenções sobre direitos humanos reiteravam a necessidade das nações de promoverem a igualdade entre os sexos.
Em 1979 foi criada a Convenção[3] sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, com o objetivo de combater a discriminação contra a mulher, em diversas matérias, ao estabelecer parâmetros para os direitos humanos da mulher. O artigo 12 dessa Convenção dispõe que:
Os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar.
É possível extrair do referido artigo uma tímida ideia do que seria os direitos reprodutivos, uma vez que contempla o direito da mulher de acesso a serviços médicos e ao planejamento familiar. Segundo Laura Davis Mattar (MATTAR, 2008, p. 76) “a vinculação com o direito à saúde viabilizou a formulação e positivação dos direitos reprodutivos e, posteriormente, ainda que de forma preliminar, a dos direitos sexuais”.
Para a Organização das Nações Unidas (HR/ PUB/ 14/6, 2014, p. 21) “os direitos reprodutivos são direitos humanos e representam uma constelação de liberdades e direitos já reconhecidos nas legislações nacionais, instrumentos internacionais de direitos humanos e outros documentos de consenso”.
Os movimentos feministas, que lutavam para que as mulheres conquistassem a autonomia sobre o corpo e vida, foram fundamentais para dar visibilidade política aos direitos reprodutivos e sexuais. Esses movimentos foram responsáveis por apontar um
[...] contraponto à concepção limitada de “planejamento familiar”, a qual se fundamentava na preocupação governamental com a chamada “explosão demográfica”, considerada equivocadamente uma determinação central da pobreza. Essa lógica do “planejamento familiar” estava, portanto, muito mais voltada para o controle sobre o corpo e a vida das mulheres do que para afirmar sua autonomia e poder de decisão sobre querer ou não ter filhos(as) e quantos(as) gostaria de ter (CISNE, 2013, p. 68).
Os movimentos feministas também foram responsáveis por afirmar que não existem apenas os direitos reprodutivos, mas também existem os direitos sexuais. Nesse contexto, a mulher passou a ter direito de sentir prazer sexual com quem desejar, independente de procriação, ou seja, com a liberdade de orientação sexual.
No Brasil, a recepção dos direitos reprodutivos e sexuais foi marcada pela criação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher em 1983 e pela Lei de Planejamento Familiar em 1996. Ademais, a Constituição Federal de 1988 se comprometeu com a implementação e efetivação dos direitos humanos, estando os direitos reprodutivos e sexuais positivados na Carta Magna através do princípio da dignidade da pessoa humana.
2 O PLANEJAMENTO FAMILIAR E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA NO BRASIL
O instituto do planejamento familiar teve origem quando países considerados subdesenvolvidos realizaram estudos que constataram que o aumento da pobreza estava diretamente ligado ao aumento da população, gerando, consequentemente, um grande impacto econômico na sociedade.
O Brasil, no início dos anos 60, foi pressionado por países desenvolvidos a adotar uma política demográfica como requisito para empréstimos financeiros, sob o argumento de que o controle de natalidade deveria ser fruto das conquistas sociais das mulheres e do desenvolvimento econômico dos países e não o inverso
Com a ditadura militar, o Estado passou a explorar a mão-de-obra, aumentando as jornadas de trabalho e reduzindo os salários. Durante esse período, os investimentos na saúde pública foram baixos, o que culminou em uma grave crise que teve como consequência a diminuição do padrão de vida da população, bem como, o aumento dos problemas de saúde. Em razão dos movimentos sociais, da crise que se instalou e da dependência de capital internacional, o governo militar se rendeu às exigências quanto ao planejamento familiar. Nesse sentido:
Uma vez dependente do capital internacional, o Brasil se rendeu às entidades americanas consideradas de planejamento familiar, apesar da resistência de militares, da Igreja e do próprio governo, que justificavam a importância de uma grande população, tanto do ponto de vista estratégico como econômico (COELHO; LUCENA; SILVA, 2000, p. 40).
Nos anos 80, surgiram movimentos sociais liderados por mulheres que questionavam o planejamento familiar, momento em que se instituiu a assistência à contracepção como uma política de saúde reprodutiva
Em 1983 foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, representando um avanço do Poder Público no compromisso com questões reprodutivas, apesar de não abranger nenhuma responsabilidade masculina quanto à regulação de fecundidade.
Durante a Assembleia Constituinte participaram três entidades que debateram sobre o planejamento familiar: a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), organizações privadas representadas pelo Bem Estar da Família no Brasil (BEMFAM) e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Nesse sentido, ficou redigido o art. 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Apesar da previsão constitucional quanto ao planejamento familiar, tal instituto ainda carecia de regulamentação, uma vez que as esterilizações cirúrgicas eram consideradas ilícitos penais. Nesse sentido, dispôs o parecer 20.613/94 do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo:
O Código Penal Brasileiro, embora não faça referência expressa à esterilização, estatui em seu artigo 129 como crime de lesões corporais a ofensa da integridade física ou a saúde de outrem, impondo a pena de reclusão de dois a oito anos se da mesma decorrer perda ou inutilização de membro, sentido ou função. A prática da esterilização cirúrgica, sem que haja finalidade terapêutica, como método contraceptivo, frente as disposições contidas no Código Penal Brasileiro é, então, considerada ilícita, passível de punição. [...] Diante do exposto, respondendo ao primeiro quesito, podemos dizer que a laqueadura tubária só pode ser realizada diante de indicação médica. Esta deve se basear em dados clínicos da mulher que indique risco de agravamento da saúde e/ou risco de morte se houver nova gravidez.
É imperioso salientar que mesmo sendo considerado crime, as taxas de esterilizações cirúrgicas realizadas no País eram as mais elevadas do mundo.
A Lei De Planejamento Familiar
O projeto de lei que deu origem à Lei Ordinária 9.263/96 objetivava regulamentar o §7º, do art. 226 da Constituição Federal de 1988, além de coibir a esterilização indiscriminada da população brasileira naquela época.
Inicialmente, o texto da Lei de Planejamento Familiar garante o direito de todo cidadão ao planejamento familiar, que consiste no “conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (BRASIL, 1996). Além disso, está prevista expressamente a proibição do uso de ações de regulação de fecundidade para o controle demográfico da população.
A Lei 9.263/96 determina que as instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde (SUS) garanta à população, programas de atenção integral à saúde da mulher, do homem e/ou do casal:
Art. 3º O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde.
Parágrafo único - As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:
I - a assistência à concepção e contracepção;
II - o atendimento pré-natal;
III - a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato;
IV - o controle das doenças sexualmente transmissíveis;
V - o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis.
A Lei também prevê que o planejamento familiar deve ser orientado por ações de prevenção e educação, sendo obrigatório que o SUS promova a capacitação técnica de seus profissionais, a fim de qualificar a prestação de serviço da melhor maneira possível. Destaca-se que a responsabilidade de promover condições e recursos informativos que assegurem o livre exercício do planejamento familiar é do Estado, através do SUS. Nesse sentido:
[...] o Estado apenas pode intervir no planejamento familiar com a criação de políticas públicas, também conhecidas como programas sociais, que visem atender aos melhores interesses da família, sempre respeitando sua liberdade na tomada de decisões (VECCHI, 2018, p. 7).
O art. 9º da Lei dispõe que só serão realizados métodos de concepção e contracepção que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, sendo garantida a liberdade de opção. Entre os métodos contraceptivos, ressalta-se que a esterilização cirúrgica só pode ser realizada de maneira voluntária, ou seja, é imprescindível a manifestação de vontade do indivíduo. Nas palavras de Vitor Frederico Kümpel:
Considerando o direito fundamental à integridade física, bem como a mencionada liberdade de planejamento familiar, a opção pela esterilização cabe ao indivíduo, cujo consentimento é indispensável. O sistema jurídico – seguindo a linha de todos os sistemas civilizados contemporâneos – proíbe a esterilização compulsória, ou seja, a adoção de esterilização cirúrgica independentemente da vontade da parte envolvida. A proibição é perfeitamente compreensível, já que o procedimento de esterilização importa incapacidade permanente para a reprodução, com repercussões em nada banais para a vida do indivíduo e do casal (KÜMPEl, 2018, p. 1).
No art. 10 da Lei estão previstas as situações e os requisitos que devem ser preenchidos para a realização da esterilização voluntária. A esterilização cirúrgica voluntária consiste em um método contraceptivo realizado através da laqueadura tubária, vasectomia ou outro método cientificamente aceito. Nesse sentido, dispõe o referido artigo:
Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:
I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;
II - risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.
§ 1º É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.
§ 2º É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
§ 3º Não será considerada a manifestação de vontade, na forma do § 1º, expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.
§ 4º A esterilização cirúrgica como método contraceptivo somente será executada através da laqueadura tubária, vasectomia ou de outro método cientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e ooforectomia.
§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.
§ 6º A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei (BRASIL, 1996).
A esterilização cirúrgica de forma voluntária está sujeita ao preenchimento dos supracitados requisitos, entre os quais se destaca a idade mínima de 25 anos ou ter pelo menos dois filhos vivos, e ainda, o consentimento expresso do cônjuge na constância da sociedade conjugal.
Ressalta-se que a Lei prevê sanção de reclusão por dois a oito anos para a realização de procedimento cirúrgico em desacordo com o supracitado artigo, isto se não configurar crime mais grave.
3 OS ASPECTOS DA EXIGÊNCIA DO CONSENTIMENTO DO CÔNJUGE PARA A ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA
A exigência de consentimento do cônjuge para a realização da esterilização voluntária é objeto de diversas discussões que abrangem aspectos jurídicos e sociais. No âmbito jurídico, a discussão abrange o conflito do dispositivo com princípios e direitos constitucionais, questão que abordaremos adiante.
No âmbito social, percebe-se que essa exigência é prejudicial em especial às mulheres, visto que apesar da evolução da sociedade em diversos aspectos, a vulnerabilidade do gênero feminino ainda é evidente, sendo constante os relatos de agressões físicas e morais, de preconceito no mercado de trabalho e até mesmo os casos de feminicídio. Nesse sentido, dispõe:
A decisão de reprodução, ou não, ainda é apontada como uma decisão do casal, porém, percebe-se um conceito nítido de que a maternidade é concebida como algo natural no contexto feminino, enquanto para o homem, constitui um processo de socialização e amadurecimento. Este posicionamento explica muito bem o ideário social de rejeição à mulher que escolhe não ter filhos, muito diferente da opção masculina neste mesmo sentido (ZANELLO; PORTO, 2016, apud COMPAGNONI, 2017, p. 69).
A responsabilidade quanto a gravidez e a criação dos filhos ainda recai com um maior peso sobre a mulher, ante as condutas anacrônicas da sociedade. O ordenamento jurídico vêm buscando uma maior participação da figura paterna na criação de seus filhos, através de leis como a da guarda compartilhada (Lei n. 13.058/2014) e a de alimentos gravídicos (Lei n. 11.804/2011).
Destarte, a discussão sobre o requisito em questão evidencia um problema social ainda não superado pela sociedade brasileira.
4 A EXIGÊNCIA DO CONSENTIMENTO DO CÔNJUGE E OS CONFLITOS COM PRINCÍPIOS E DIREITOS CONSTITUCIONAIS
A Constituição Federal de 1988 ao dispor sobre os direitos e princípios fundamentais que norteiam as ordens sociais e econômicas, acabou por reforçar a proteção a autonomia privada. A autonomia privada consiste na capacidade de autodeterminação dos sujeitos para que através de seus interesses possam criar/exercer direitos ou deveres. Para o doutrinador Wilson Steinmetz (STEINMETZ, 2004, p. 190-191) a “autonomia privada pode ser definida como o poder conferido pela lei aos particulares para que, livres e soberanamente, auto regulamentem os próprios interesses”.
A autonomia privada abrange a autonomia corporal, autonomia reprodutiva e a liberdade individual, uma vez que o indivíduo com capacidade de autodeterminar-se tem o poder de gerência sobre o seu corpo e vida sexual. Para Ana Carolina Brochado Teixeira (TEIXEIRA, 2010, p. 52) a autonomia corporal significa que “o corpo pertence à própria pessoa e é ela quem deve lhe dar a destinação que melhor lhe aprouver, dentro do que a realiza”. Já a liberdade individual pode ser entendida como o “direito do indivíduo de tomar decisões que digam respeito à sua própria vida e determinar seu destino da maneira como entender mais oportuna à sua realização pessoal” (ADI n° 5911, 2018).
Quanto ao planejamento familiar não poderia ser diferente. A existência de sociedade conjugal não é argumento que justifica a exigência do consentimento do cônjuge para a realização da esterilização cirúrgica voluntária, até porque as diversas modalidades de família afastam o antigo entendimento de que para a construção de uma família é necessário a procriação.
A não observância dos direitos a autonomia corporal, autonomia reprodutiva e a liberdade individual, gera violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que fundamentam a sua efetividade. Nesse sentindo, leciona o Ministro Luís Roberto Barroso:
A dignidade como autonomia envolve, em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito do indivíduo de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade. Significa o poder de fazer valorações morais e escolhas existenciais sem imposições externas indevidas. Decisões sobre religião, vida afetiva, trabalho, ideologia e outras opções personalíssimas não podem ser subtraídas do indivíduo sem violar sua dignidade (BARROSO, 2010, p. 24).
Simultaneamente ao conflito existente entre o requisito em questão e a autonomia privada, denota-se um conflito com os direitos reprodutivos e sexuais. A salvaguarda e o respeito ao livre exercício dos direitos reprodutivos e sexuais é fundamental para que os indivíduos desenvolvam um bom desenvolvimento físico, mental, intelectual e moral. Entretanto, Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias e Marianna Chaves destacam que:
O Estado brasileiro está falhando na salvaguarda da saúde reprodutiva, que não se resume à ausência de enfermidades ou moléstias, sendo antes o estado de total bem- estar social, físico e mental em todas as matérias relativas ao sistema reprodutivo, suas finalidades e processos. Nessa lógica, a saúde reprodutiva equivale a que um indivíduo possa ter uma vida sexual segura e boa, tenha a faculdade de procriar e a liberdade de decidir se, quando e quantas vezes o fará, como proposto pela Conferência do Cairo de 1994 [...] (PEREIRA; DIAS; CHAVES, 2017, p. 12).
Outrossim, a igualdade jurídica entre homens e mulheres é um dos elementos que norteia as relações familiares, consagrando o exercício da conjugalidade colaborativa, o que não dá direitos a um cônjuge de interferir nas intervenções médicas que o outro possa vir a realizar, mesmo que no âmbito reprodutivo. Nesse sentido, dispõe a Assessoria de Comunicação do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM):
[...] o consentimento para intervenções médicas assume um caráter personalíssimo, sempre que a capacidade de julgamento e discernimento do paciente o permita. E é exatamente o caso de cirurgias eletivas, como as esterilizações voluntárias, portanto, esse consentimento cabe única e exclusivamente ao paciente, sem que qualquer terceiro tenha direito de impedir esse ato médico, ainda que seja cônjuge (IBDFAM, 2018, p. 1).
Os conflitos existentes entre a exigência do consentimento do cônjuge com direitos e princípios constitucionais são objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 5097/2014 e ADI 5911/2018), o que afirma a relevância dessa discussão.
5 A ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA NO ÂMBITO INTERNACIONAL
Em uma análise pelo direito comparado percebe-se que algumas legislações estrangeiras não adotam os requisitos estabelecidos pela legislação brasileira para a realização da esterilização voluntária.
Na Argentina, por exemplo, o regime de intervenções cirúrgicas de contracepção é regulamentado pela Lei n° 26.130/06. Esta lei estabelece que toda pessoa maior de idade, a partir dos 16 anos de acordo com o atual Código Civil Argentino, pode realizar a esterilização cirúrgica. Além de não haver qualquer limitação em relação ao número de filhos, a lei expressamente dispõe sobre a desnecessidade de consentimento do cônjuge para a realização esterilização voluntária. Vejamos:
ARTICULO 1º — Objeto. Toda persona mayor de edad tiene derecho a acceder a la realización de las prácticas denominadas "ligadura de trompas de Falopio" y "ligadura de conductos deferentes o vasectomía" en los servicios del sistema de salud.
ARTICULO 2º — Requisitos. Las prácticas médicas referidas en el artículo anterior están autorizadas para toda persona capaz y mayor de edad que lo requiera formalmente, siendo requisito previo inexcusable que otorgue su consentimiento informado.
No se requiere consentimiento del cónyuge o conviviente ni autorización judicial, excepto en los casos contemplados por el artículo siguiente.
ARTICULO 3º — Excepción. Cuando se tratare de una persona declarada judicialmente incapaz, es requisito ineludible la autorización judicial solicitada por el representante legal de aquélla (ARGENTINA, 2006).
No Chile a realização da esterilização voluntária é regulamentada pelas “Normas Nacionales Sobre Regulación de la Fertilidad”. A normatização chilena não dispõe sobre a idade mínima para a realização da cirurgia voluntária, entretanto prevê expressamente que tal decisão é pessoal e se embasará apenas na vontade de quem deseja fazê-la:
Demanda voluntaria: El hombre o la mujer podrán solicitar la esterilización voluntaria en los servicios públicos de salud o privados del país. La decisión para someterse a esterilización es personal y radicará sólo en la voluntad de quien desee hacerlo (CHILE, 2000).
Em Portugal a esterilização voluntária é regulamentada pela Lei n° 3/84 que trata da educação sexual e do planejamento familiar. Para a realização da esterilização voluntária, a legislação portuguesa exige uma declaração escrita e devidamente assinada somente por quem deseja realizar a intervenção cirúrgica, salientando que foram prestadas as informações sobre as consequências da mesma. A semelhança que existe entre a legislação portuguesa e a brasileira é a idade mínima para a intervenção cirúrgica, qual seja, superior a 25 anos de idade.
Apesar dos referidos países possuírem uma cultura muito próxima da brasileira, os requisitos estabelecidos para a realização da esterilização voluntária são muito diferentes. Ademais, em relação à necessidade de consentimento do cônjuge, a legislação brasileira não encontra nenhum respaldo na legislação estrangeira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A família pós-moderna é a prova do crescimento de tolerância e autonomia no lar conjugal, o que difere das gerações anteriores. Contudo, não rara as vezes a mulher tem os seus interesses vilipendiados. Apesar do ideário de que o casamento não pressupõe a necessidade de procriação, a realidade vivenciada pelas mulheres é diferente. Para Pereira, Dias e Chaves é como se as mulheres, alienadas pela sociedade, estivessem destinadas ao papel de executoras de uma função biológica (2017, p. 27).
Nesse sentido, o conflito existente entre a exigência do consentimento do cônjuge para a realização da esterilização voluntária e os direitos reprodutivos e sexuais é prejudicial, em especial às mulheres, pela dificuldade que a sociedade tem de aceitar que estas, assim como os homens, tem o direito de ter relações sexuais independente da reprodução. Além disso, os casos de discriminação, imposição e violência contra a mulher, principalmente no âmbito conjugal, estão enraizados na nossa sociedade o que dificulta que estas exerçam livremente a autonomia privada, gerando, consequentemente, violação ao princípio da dignidade da pessoa.
Ressalta-se que as mulheres, principalmente através de movimentos feministas, tiveram um importante papel ao longo da história para a afirmação do verdadeiro significado de planejamento familiar e o reconhecimento dos direitos reprodutivos e sexuais. Foi através de movimentos feministas que as mulheres conseguiram conquistar o seu espaço na sociedade, tendo, inclusive, como consequência a criação de legislações no âmbito internacional e nacional que ressaltassem a necessidade de igualdade entre os sexos.
Apesar das mulheres lutarem até hoje pela efetiva igualdade entre homens e mulheres, percebe-se que o dispositivo em análise não condiz com o atual ordenamento jurídico. A evolução legislativa no que diz respeito a proteção da mulher, bem como, a evolução da sociedade em alguns aspectos, fez com que tal requisito se tornasse ultrapassado.
Portanto, mesmo que ainda persista na nossa sociedade um viés machista que dificulta a ascensão da igualdade entre homens e mulheres, a obsolescência do dispositivo que dispõe sobre a obrigatoriedade do consentimento expresso do cônjuge para a realização da esterilização voluntária é consequência da evolução legislativa e dos movimentos feministas, restando apenas a necessidade de confirmação legal através da declaração de inconstitucionalidade do mesmo.
REFERÊNCIAS
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BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010. Disponível em: <https://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf>. Acesso em: 13 de outubro de 2019.
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[1] Advogada. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Doctum de Teófilo Otoni/MG. Trabalho de Conclusão de Curso da graduação (2019). E-mail: nataliaesteves.direito@gmail.com.
[2] Especialista em Direito Público, Mestranda em Educação. Docente do Centro Universitário Doctum de Teófilo Otoni/MG.
[3] Primeiro tratado internacional que dispõe amplamente sobre os direitos humanos da mulher. Aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18.12.1979, entrou em vigor em 03.09.1981. Assinada pelo Brasil, com reservas, em 31.03.1981 e ratificada, com reservas, em 01.02.1984. Entrou em vigor no Brasil em 02.03.1984 e foi ratificada, sem reservas, em 22.06.1994.
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