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O pacto de não processar - E o direito das famílias
O pacto de não processar
E o direito das famílias
Rafael Calmon
Já pensou como seria se cônjuges ainda casados, mas em vias de se divorciar, combinassem o seguinte: antes de efetivamente mexer com a papelada, vamos ajustar um período obrigatório de reflexão por tantos meses ou o comparecimento prévio a certo número de sessões de mediação extrajudicial?
Cláusulas de paz, como essas, poderiam até mesmo causar a reconciliação do casal.
Que tal, também, se eles deixassem acertado que, em sendo o divórcio inevitável, não seria feito nenhum pedido relacionado ao automóvel comum X, ou postulada indenização pela ocupação exclusiva do imóvel Y?
Promessas de não postular, como essas, poderiam permitir que as finanças do agora ex-casal fossem reorganizadas muito mais rapidamente.
O que você acharia, ainda, de um acordo por meio do qual os companheiros se comprometessem a não deduzir pedido de indenização por infidelidade, na eventualidade de isso vir a ocorrer antes de sua união estável ser dissolvida?
O sigilo em torno do que acontece em certas relações talvez seja tão ou mais importante do que a própria fidelidade entre o par.
E se isso tudo pudesse ser feito até mesmo antes de o casal se casar? Imagine como seria se um pacto antenupcial (pré-nup) pudesse conter cláusula estabelecendo que, se um dia o par viesse a se divorciar, teria que se submeter a um determinado número de sessões de terapia familiar ou aguardar a anuência de um especialista em desenvolvimento infantil dando seu “ok” a respeito da capacidade de o filho comum conseguir suportar, sem traumas, os altos e baixos do fim da relação de seus pais?
Diferente, não é mesmo?
Pois é! Por incrível que pareça, acordos como esses são plenamente válidos, legítimos e aceitos no Brasil. Apesar disso, sua utilização no cotidiano forense é baixíssima, se não inexistente.
Independentemente de qual seja a verdadeira razão por detrás dessa postura, parece ter chegado o momento de se rever conceitos e de se reinventar a prática profissional daqueles que atuam no dia a dia das Varas de Família. O sistema judiciário brasileiro se encontra sobrecarregado de processos e qualquer alternativa que possa contribuir para a não judicialização de disputas é bem-vinda.
Nesse cenário, o pacto de não processar (pactum de non petendo) talvez represente um elemento de grande valia.
Conceitualmente tais pactos são acordos de vontades por meio dos quais os pactuantes firmam o compromisso mútuo de, durante determinado período de tempo, ou, até que sejam preenchidas certas condicionantes, não acionarem uns aos outros em juízo. Não se equiparam às obrigações naturais, pois, através deles, não ocorre renúncia ao direito material que fundamenta a ação (pretensão de direito material), mas a mera abstenção, temporária ou perpétua, do exercício judicial desses direitos (pretensão de direito processual), razão pela qual são mantidas intactas não só as demais prerrogativas processuais por eles asseguradas (como o direito de eles serem alegados em defesa), como também seu próprio exercício extrajudicial (o que permitiria seu protesto e o uso de notificações, por exemplo).
Antigo conhecido da tradição romano-germânica (civil law), mas de uso corriqueiro também no sistema anglo-saxônico (common law), tais pactos vêm viabilizando incontáveis negócios em razão de sua enorme aptidão para tranquilizar os envolvidos e para conter litígios que, em outros cenários, se tornariam inevitáveis.
Na Europa, sua prática chega a ser tida como algo corriqueiro. No direito francês, por exemplo, os contratos de não oposição (contrat de non-opposition) são bastante comuns, especialmente no campo securitário. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde são conhecidos como convenções de não processar (covenant not to sue), são empregadas habitualmente na área da propriedade intelectual.
No Brasil há poucos registros de seu uso no foro, sendo a literatura bem escassa a respeito. A bem da verdade, parece que a brilhante obra de Alberto Lucas Albuquerque da Costa Trigo (Promessa de não processar e de não postular) é a única escrita por aqui.
Não é possível fazer uma afirmação precisa a respeito dos motivos que levam os brasileiros a fazerem tão poucas convenções dessa espécie. Talvez o receio da animosidade excessiva, a falta de diálogo, a polarização de métodos voltados à solução de conflitos, o apego desmedido a certas tradições e até o desconhecimento de regras de processo possam ser alguns deles.
Porém, se as coisas forem enxergadas mais de perto, possivelmente a superação desses entraves seja tarefa bem simples.
Vejamos.
Em vez de acirrar a animosidade, acordos desse tipo podem fazer justamente o contrário: contê-la. Essa afirmação se torna especialmente verdadeira quando os pactos contemplam prazos de reflexão ou condicionam a propositura de demanda ao fracasso de certas práticas colaborativas antecedentes (cláusulas de paz).
Para isso, é importante que sejam celebrados ao menor sinal de que as coisas não estejam caminhando bem entre o casal.
A falta de diálogo entre os consortes é outro falso obtáculo, pois os acordos devem, preferencialmente, ser celebrados e redigidos por profissionais do Direito, aos quais compete fazer os esclarecimentos que se mostrarem necessários a respeito da importância de o relacionamento afetivo e as relações patrimoniais dele originadas encontrarem solução da forma mais pacífica e tranquila possível.
Afinal, não é pelo fato de o projeto conjugal ter fracassado que o casal terá que entrar em guerra. Conflito, já foi dito várias vezes por aqui, não se confunde com litígio.
Portanto, é perfeitamente possível que os sujeitos envolvidos na disputa familiar (conflito) optem por transformar o processo (litígio) em algo bem mais célere, simples, barato e menos desgastante, sendo os pactos de não processar uma importante ferramenta para que se atinja esse propósito.
A polarização dos meios de solução dos conflitos é outra prática que talvez precise ser abandonada. O apego demasiado a este ou àquele método, com a consequente rejeição de qualquer outro não parece ser o ideal, até porque nenhum conflito é igual ao outro. A negociação, a mediação, a conciliação, as práticas colaborativas, a constelação e a conciliação podem representar excelentes instrumentos para a solução de certas disputas, mas fracassarem enormemente ao tentarem resolver outras.
Concentrar as técnicas A, B e C em um polo, antagonizando-as aos métodos D, E e F que se encontram em outro polo, definitivamente, não dá mostras de ser a solução para os problemas.
É perfeitamente possível que se conglomere mais de um método, até mesmo de forma escalonada, para que, no insucesso do primeiro, o segundo possa ser utilizado e assim sucessivamente.
De sua parte, o apego a certas tradições incorporadas ao direito de família deve ceder passo às inovações trazidas pelo Direito das Famílias. A ideia de que todo e qualquer direito originado no seio familiar é indisponível e insuscetível de ser acordado pelas partes é algo tão falso, quanto obsoleto. Tanto é assim que os cônjuges podem se divorciar e partilhar seus bens em Cartório, literalmente abrindo mão de seu casamento e da mancomunhão, longe da presença do juiz e do promotor de justiça. Além do mais, aquele consorte que não possuir interesse em manter o nome de casado após o divórcio pode renunciar a ele, a qualquer momento, dando nítidas mostras de que este também é um direito passível de abnegação por seu titular. Paralelamente a isso, existem direitos das famílias que, embora sejam absolutamente irrenunciáveis, podem deixar de ser exercidos por quem os titulariza, como é o caso dos alimentos (CC, art. 1.707). Completando o acervo, diversos outros direitos, mesmo sendo genuinamente indisponíveis, são passíveis de autocomposição pelas partes, notadamente em relação a seus aspectos temporais, econômicos e ao seu modo de exercício. Não à toa são designadas audiências para tentativa de celebração de acordo em ações de guarda (onde pode ser ajustada aquela espécie que se mostrar mais adequada ao caso concreto), de alimentos (onde podem ser pactuados o seu valor e a sua periodicidade, por exemplo) e de convivência entre pais e filhos (onde pode ser combinados os melhores dias e horários para tanto).
Se as pessoas podem fazer isso, é porque a indisponibilidade não é uma característica inerente a todo e qualquer direito proveniente das relações jurídicas de família. Muito pelo contrário. Existe uma gama enorme de direitos das famílias disponíveis, e outra tão grande quanto de direitos autocomponíveis, o que deixa claro que a relação entre familiaridade e indisponibilidade do direito não é de causa e efeito, mas, quando muito, de mera correlação.
Finalmente, a boa compreensão das técnicas de processo é algo que precisa, urgentemente, compor a pauta dos profissionais que atuam na área. O artigo 190 do Código de Processo Civil de 2015 encampou uma cláusula geral de negociação sobre o processo e sobre as situações jurídicas processuais titularizadas pelas partes. Por meio dela, é plenamente possível que os envolvidos em uma disputa celebrem acordos versando sobre aspectos da eventual demanda a ser proposta entre eles, como prazos, formas de intimação dos atos processuais, renúncia antecipada a prerrogativas, tudo sem prejuízo de serem celebradas incontáveis negociações sobre os poderes, deveres, faculdades e ônus processuais.
Para que isso seja feito, basta que o direito em jogo seja passível de autocomposição (autocomponível), que sejam respeitadas as regras de direito, que as partes sejam capazes e que não exista situação de manifesta vulnerabilidade entre elas, como a mais simples leitura do texto normativo permite antever.
Obviamente assuntos mais sensíveis, relacionados aos filhos incapazes e aos sujeitos vulneráveis, não poderiam ser pactuados, até porque encontrariam real obstáculo na disciplina conferida pela normativa.
Todavia, não sendo esse o caso, o campo de liberdade dos envolvidos é significativamente amplo, até por que, se existem incontáveis direitos das famílias autocomponíveis, qual impedimento haveria na celebração de pactos de não processar envolvendo-os? Será que existiria mesmo a obrigatoriedade de se postular o divórcio em caso de desamor? Em se tornando o divórcio inevitável, seria obrigatório o pedido de partilha dos bens comuns? E se ele não fosse postulado, o que o Estado poderia fazer a respeito?
Além disso, será que um consorte não poderia se abster de pedir a partilha desse ou daquele bem, antevendo que esta postura acalmaria os ânimos dos envolvidos ou beneficiaria os filhos? Que tal se, antes de dar entrada no pedido de dissolução da união estável, os companheiros deixassem ajustado que não pediriam a partilha de um bem específico, até que os filhos menores concluíssem o ensino médio? Talvez isso desse mais tranquilidade a todos os membros daquela família.
Havendo infidelidade ou qualquer stress entre o casal, esses detalhes necessariamente precisariam ser trazidos à ação de divórcio? De repente, inúmeros traumas e desavenças poderiam ser evitados caso fosse ajustada a promessa de não os mencionar nas petições processuais.
O único bem comum ao par não poderia continuar sendo ocupado por um só deles, se contasse com a anuência do outro? Nesse cenário, qual problema haveria no estabelecimento de um pacto de não pedir indenização pelo seu uso exclusivo, até que fosse decretada a partilha? As finanças do casal poderiam ser mais facilmente equalizadas desse modo, facilitando o acerto de contas por ocasião da liquidação patrimonial.
Ao ensejo do divórcio, os agora ex-cônjuges não poderiam ajustar pacto de abstenção de pedido de alimentos futuros? Se esse direito é algo que eles podem não exercer (CC, art. 1.707), que mal haveria nesse ajuste?
No processo de execução, outras tantas hipóteses poderiam ser cogitadas. Será que haveria algum obstáculo à celebração de pactos de não execução provisória ou definitiva de quantias devidas entre cônjuges (pactum de non exequendo)? Que tal, ainda, serem celebradas promessas de não requerer a aplicação de técnicas executivas específicas em uma execução de alimentos entre eles promovida, como o protesto da sentença ou a prisão civil? De repente, isso poderia evitar problemas ainda maiores no caso de inadimplemento da dívida.
Perguntas como essas poderiam ser repetidas à exaustão, caso necessário.
As respostas, ao que tudo indica, reforçariam cada vez mais a conclusão de que nada impediria a elaboração desses pactos no direito das famílias - tanto antes (pré-nups), quanto depois da formalização da união (pós-nups), e até mesmo durante o curso de eventual ação de família já instaurada -, desde que, é óbvio, fossem respeitadas as condicionantes impostas a todo e qualquer acordo processual (CPC, art. 190).
Longe de representar algo novo e afrontoso às regras de direito das famílias, os pactos de não processar talvez precisem ser enxergados como um importantíssimo método de gestão da crise processual, colocado a serviço dos cidadãos.
Mas, como sempre faço questão de frisar, isso é só um ponto de vista.
Até a próxima!
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