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A família pede guarda provisória da lei em proteção urgencial
A família pede guarda provisória da lei em proteção urgencial
Jones Figueirêdo Alves
Um denominado “iceberg infinitesimal” colocou-se frente à humanidade em sua navegação de cotidianos comuns de generalidades, com a pandemia do Covid19. Esse repentino choque existencial colocou gentes e povos no mesmo sentimento de luta por uma sobrevivência experenciada pelo isolamento social, sem respostas prontas ao enfrentamento do vírus. E o depois?
Depois dessa crise humanitária, abre-se, inevitavelmente, um grande debate sobre políticas públicas de gestão de riscos e de um sistema normativo específico, para gerir, em governança adequada, todas as fases de um evento catastrófico. Será preciso, de fato, um Marco Civil de Desastres.
Antes de mais, porém, a necessidade de um novo modelo de desenvolvimento humano exsurge de tudo isso. Não serão suficientes regimes jurídicos emergenciais, contemplando fórmulas de temporariedade ou implementos diferidos.
No ponto, a família como instituição básica de organização social, pede passagem. E, nesse contexto, a família pede guarda provisória da lei, em proteção urgencial, com a adoção de políticas públicas e legislativas, preordenadas e adequadas ao enfrentamento de crises como a atual.
Mais precisamente, uma ordem jurídica pré-constituída que coloque em prontitude de urgência as soluções alinhadas. Construída sob três premissas básicas: a) valorização do ser humano sobre todas as coisas; (b) o valor da solidariedade humana como um referencial axioma do princípio jurídico de fraternidade; (c) as desigualdades sociais amplamente mitigadas, em garantia não apenas de um mínimo existencial de dignidade, mas de um bem-estar social adequado a qualquer pessoa.
Veremos, assim, o atual quadro de políticas públicas, legais ou de lege ferenda, compatíveis ao propósito de proteção familiar urgencial:
(i) A recente Lei nº 13.982, de 02.04.2020, (1) é a principal assertiva dessa política, dispondo sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC) (2) e estabelece medidas excepcionais de proteção social no atual período de pandemia. Concede auxílio emergencial, limitado a dois membros de uma mesma família, observadas as rendas e designando, outrossim, que a mulher provedora de família monoparental receberá duas cotas do auxílio (art. 2º, caput, e § 3°).
(ii) Mais adiante, o PLS nº 873/2020, aprovado em 22.04.20, (3) aumenta os perfis destinatários do auxílio emergencial, incluindo pais solteiros, sem distinção do gênero, mães adolescentes e trabalhadores informais de baixa renda. O projeto institui uma Renda Básica de Cidadania Emergencial durante os casos epi(pan)dêmicos, com benefícios específicos, como os de suplementação aos detentores do Programa Bolsa Família e o de beneficio especial às pessoas listas no Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico) e todos os seus dependentes, com renda familiar per capita inferior a três salários mínimos e que não sejam beneficiários daquele Programa. Insere art. 4º-A à Lei nº 10.835/2004, que instituiu a renda básica de cidadania (4)
(iii) Lado outro, a Medida Provisória nº 936, de 01.04.20, cria o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, com prestações mensais continuadas. Destina-se às hipóteses de redução proporcional de jornada de trabalho e de salário; e de suspensão temporária do contrato de trabalho; durante todo o tempo dos eventos (art. 5º, caput, I e II; e § 2º, inciso III). (5)
Em todas essas iniciativas, as declarações objetivas de cidadania da família, guardam regimes temporais, perfilando uma economia de desigualdade, nos episódios que menciona. Induvidoso, contudo, que o incremento das desigualdades tem, historicamente, seu sentido prático relacionado diretamente com a redução da proteção social, cumpre-nos defender a edição permanente (e não sazonal) de um “Estatuto Jurídico de Proteção Familiar”. Nele, sim, deverão constar os tratos legais de suporte protetivo às diversas famílias, com ou sem filhos, sob a elegibilidade pormenorizada dos seus núcleos e casos, rendas e necessidades, para os benefícios sociais, apoio psicológico e material nas crises epidêmicas, e uma gestão protetiva, a exemplo do “demogrant", como renda básica, permanente e incondicional, independentemente de sua situação financeira ou exigência de trabalho.
A família não pode quedar-se desprotegida, em momentos dramáticos, pelas armadilhas da pobreza e do desemprego. Exige-se um arcabouço jurídico preexistente, como suporte de medidas preestabelecidas de amparo absoluto.
(iv) Uma gestão parental sobre a essência do pesar do luto vivenciada por filhos menores, designadamente nas famílias infortunadas pela pandemia, está a merecer, a seu turno, urgente tratamento por normativos legais e/ou administrativos.
O psiquiatra britânico Colin Murray Parkes, maior autoridade no estudo do luto, disserta que o evento morte de um dos pais para os filhos causa um grande sofrimento (06). Entretanto, a magnitude de reação ao luto é afetada de acordo com a faixa etária, reconhecendo ele que crianças e adolescentes se tornam mais vulneráveis ao sofrimento por perdas parentais, com efeitos impactantes do luto na saúde e no desenvolvimento saudável da vida iniciante.
De fato, relatos de acompanhamento psicológico bem demonstram que a ruptura definitiva e traumática da relação presencial de apego entre pais e filhos menores, por morte de um daqueles, implica em maiores problemas emocionais, significativamente durante os seis primeiros meses após a perda.
Em casos que tais, a intensidade do luto faz evidenciar, por suas implicações, a necessidade de os filhos menores receberem uma tutela integral protetiva, em gestão parental do luto, tudo a demandar as licenças parentais excepcionais nas relações de trabalho público ou privado, com prazo de 180 dias.
Não há negar que a associação entre a idade infanto-juvenil e os resultados do luto, com a incidência de reações diversas e diferenciadas e/ou de sérios distúrbios afetivos reclama, por isso, maiores cuidados quanto ao luto em si dos filhos por parte do genitor sobrevivente para o adequado enfrentamento dos traumas da perda.
Nesse contexto, a responsabilidade parental do referido genitor ganha amplitude às mitigações das dores dos filhos, nos seus pesares continuados ou intermitentes, cabendo ela ser exercida com adequada dinâmica e novos mecanismos indutores a esse particular papel social adveniente.
Cuido de sugerir e incentivar, de lege ferenda, a concessão de uma “licença social de magnitude de luto,” destinada a pais trabalhadores, no serviço público ou privado, que precisem dedicar maior tempo aos filhos menores diante da perda do outro genitor. Apresenta-se essa licença como um instrumento apropriado à consecução dos objetivos de assistência afetiva e emocional ao processo de luto experenciado.
(v) Em outro viés, diante de tantos lutos, surge o PLS nº 2.033/2020, de 20.04.2020, que estabelece: a) indenização aos herdeiros de pessoa falecida por falta de leitos de UTI, durante a pandemia, (quaisquer óbitos, independente da causa), ou seja, por conduta ilícita da Administração Pública, no valor de R$ 60 mil por membro da família; e b) pensão por morte, em face dos lucros cessantes, com valor mensal calculado pela média das doze ultimas remunerações mensais do falecido (07).
No ponto, merece relevo jurídico atender a proposta uma visão mais moderna sobre os diferentes núcleos familiares da vítima, todos legitimados à indenização por dano moral, sob o princípio da “comunidade familiar” ou o da “família extensiva”. O STJ concluiu, nesse sentido, admitindo que a indenização paga aos familiares mais próximos, não afasta, automaticamente, a possibilidade (legitimidade) de outros parentes venham a ser indenizados. O Ministro João Noronha, seu atual presidente, definiu que cada um deles “possui direito autônomo, oriundo da relação afetiva e de parentesco” (AgRg no REsp no 1.236.987/RJ, j. em 2/8/11).
Cuido entender que o PL nº 2.033/2020 ao invés de estabelecer uma responsabilidade estatal tarifada (de valor único), cumpriria aquele valor servir apenas de parâmetro, não igualando todos os núcleos familiares. O STJ tem definido que “o sofrimento pela morte de parente é disseminado pelo núcleo familiar, como em força centrifuga, atingindo cada um dos membros, em gradações diversas, o que deve ser levado em conta pelo magistrado, para fins de arbitramento do valor da reparação do dano moral. (REsp no 1101213/RJ, j. em 2/4/2009).
No mais, a proposta carrega consigo elevada afirmação humanitária, por iniludível falha ou omissão de socorro público, ante um sistema de saúde muito aquém das necessidades sanitárias da população.
A propósito, o filósofo italiano Nuccio Ordine Diamante afirmou que a crise de saúde que atualmente tem golpeado o seu povo e o mundo é consequência de uma política neoliberal, “que tem descuidado e posto em risco um dos pilares da dignidade humana, o direito à saúde (...)” (08). Um excesso de economia que nos faz perder o sentido da vida. Bem é dizer e repetir o discurso pronunciado por Robert Kennedy (18.03.1968): “O PIB mede tudo, menos as coisas mais importantes da vida, menos o que faz a vida valer a pena”.
(vi) Também na ordem do dia, a proteção aos idosos de risco e às crianças reclama preocupações para uma legislação aperfeiçoada:
a) Desponta, em primazia, o PL nº 105/2020, de 05.02.2020 (09) que introduz o novo instituto jurídico da senexão ao Estatuto do Idoso, como medida protetiva a colocar o idoso em família substituta.
Diferente da “adoção de idosos”, objeto de outros projetos de lei (10), o instituto da senexão é “aplicável apenas a idosos em situação de risco (art. 43, EI)”, “a fim de proporcionar-lhe amparo e estabilidade de relações sócio afetivas com a família receptora”, não estabelecendo vínculos de filiação entre senector e senectado e nem afetando direitos sucessórios. Em primoroso artigo sobre o novo instituto, Patrícia Novais Calmon o indica como instrumento de “inclusão do idoso em um núcleo familiar que lhe confira dignidade e pertencimento”, onde, afinal, amplia-se “o espectro conceitual da socioafetividade, viabilizando a formação de laços familiares atípicos/inominados e não filiais” (11).
b) A condição da criança dentro da família, em situações desvantajosas, exige novos investimentos públicos, com adoção de “benefícios infantis substanciais”, destinados, notadamente, à primeira infância. E o primeiro deles deveria ser promovido, em nosso sistema jurídico, pela inspiração da lei portuguesa de nº 75, de 19.11.1998, que instituiu um Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (art. 6º). O Estado, face o inadimplemento absoluto ou relativo das obrigações pelos alimentantes, oferece uma “prestação social de alimentos”, como ação interveniente de proteção à família, em caráter substitutivo.
(vii) Nesses estupores de enfermidades fatais, proposta legislativa vem possibilitar o convívio familiar com os enfermos, em efetividade de afetos e de arrimo emocional aos pacientes. Cuida o PL nº 2136, de 23.04.2020, de dispor sobre a visita virtual, por meio de videochamadas, de familiares a pacientes internados em decorrência do COVID-19. O artigo 1º é limitador da destinação, tudo recomendando que uma nova redação possa alcançar quaisquer pacientes em UTIs. (12).
Ultrapassada a pandemia, não poderemos mais ficar indiferentes, para uma nova realidade seguinte, que “a verdadeira fonte de prosperidade são as pessoas” (13). Há, de fato, um novo despertar da razão, reconhecido pelo jurista e filósofo Luigi Ferrajoli, quando na histórica biblioteca Valliceliana, de Roma, na Piazza della Chiesa Nuova, em dia de véspera do primeiro contágio local na Itália (21.02.2020), pronunciou e defendeu uma “Constituição da Terra”.
Realmente. Após o inventário das mortes, a humanidade precisará, de uma agenda global que supere os desajustes entre a realidade do mundo e as formas jurídicas e políticas com que tratamos de governá-la” – afirmou o jurista florentino - e disso dependerá, induvidosamente, a sua sobrevivência.
Essa agenda planetária terá de enfrentar a indiferença moral que desconhece a morte de milhões de pessoas que morrem, a cada ano, por faltas de alimentação básica, de um sistema de saúde de qualidade, de tratamentos médicos e de remédios essenciais.
Com ela, será feito um novo contrato das famílias do mundo com o seu melhor futuro. Elas dependerão, como observado, de legislações protetivas e permanentes, sobretudo fundamentais à qualidade e segurança da própria existência.
A família humana será constituída pelo amor ao próximo, que já não será somente o outro, mas nós mesmos que nos encontramos nele; quando em cada um descobrirmos a face mais visível da humanidade; o outro ou cada um de nós será a humanidade inteira.
(01) Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm
(02) O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é assegurado pelo art. 203 da Constituição Federal.
(03) PLS nº 873/2020; Web: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8076745&ts=1587676793255&disposition=inline
(04) Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.835.htm
(05) Web: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-936-de-1-de-abril-de-2020-250711934
(06) “Luto. Estudos sobre a perda na vida adulta” “Bereavement” – Summus Editorial, 1998, trad. Mara Helena Franco;
(07) PLS 2033/2020. Web: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141646; e Web: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8097768&ts=1587751823543&disposition=inline
(08) “La economia vale más que la vida humana em la lógica neoliberal”, em entrevista ao jornal “El País”, Madrid, 26.03.2020. Autor de “A utilidade do inútil: Um Manifesto” (Ed. Zahar, 2016, 224 p.), ele denuncia como a lógica utilitarista e o culto da posse esvaziam o espírito das pessoas, colocando em perigo valores fundamentais como o da dignidade humana.
(09) PL nº 105/2020. Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1854691&filename=PL+105/2020
(10) Projetos de Lei nºs. 956/2019, 5.475/2019 e 5.532/2019.
(11) CALMON, Patrícia Novais. Senexão: um novo instituto de direito das famílias? In: Site IBDFAM, em 07.04.2020. Web: http://www.ibdfam.org.br/artigos/1404/Senex%C3%A3o%3A+um+novo+instituto+de+direito+das+fam%C3%ADlias%3F
(12) PL n° 2.136/2020. Vistas virtuais em UTI. Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1885437&filename=PL+2136/2020
(13) SIMON, Julian S. “The Ultimate Resource”, Princeton University Press, 1983.
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O autor é Desembargador Decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa (FDUL). Integra a Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Fonte: Consultor Jurídico, em 03.05.2020
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