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Affectio familiae versus regra legal mínima de diferença de idade entre adotante e adotado
Affectio familiae versus regra legal mínima de diferença de idade entre adotante e adotado
Daniella dos Santos Pinto
Advogada – OAB/RS 117.813
A máxima do Direito de Família Contemporâneo é a valorização do afeto como base necessária à formação da família. Felizmente, os novos juristas estão buscando adequar as normas até então vigentes de acordo com a evolução da sociedade e do modo comportamental do indivíduo que nela encontra-se inserido. Em contrapartida, considerando a forma gradual e lenta que estas mudanças se apresentam no ordenamento jurídico, muitas normas ainda não estão em perfeito compasso com o Princípio da Afetividade.
Atento ao princípio supracitado e ao movimento de extrajudicialização do direito privado, o CNJ editou o Provimento nº 63/2017, o qual altera inúmeras questões relacionadas ao registro de pessoas naturais. Entre elas, está a possibilidade de reconhecimento extrajudicial das filiações socioafetivas e o registro dos filhos havidos por métodos de reprodução assistida.
Inobstante tal facilitação, algumas famílias ainda precisam recorrer ao Poder Judiciário para resolver determinadas questões relativas ao reconhecimento da filiação socioafetiva, entre elas, a regra legal mínima de diferença de idade entre o adotante e o adotado.
O Estatuto da Criança do Adolescente (ECA) dispõe sobre a proteção integral a meninos e meninas até os 18 (dezoito) anos de idade. A lei prevê diversos direitos para assegurar que eles tenham a possibilidade de se desenvolver plenamente. Entre esses direitos, o ECA, em seu artigo 42, § 4º, garante que no caso do jovem ser adotado, o adotante deve ser, pelo menos, 16 (dezesseis) anos mais velho que o adotando, isso para que a adoção confira cunho biológico à família que está sendo constituída. Em consonância com o referido dispositivo, o Provimento nº 63/2017 reproduziu tal regra em seu artigo 10, § 4º.
É sabido que questões relativas à filiação são intituladas como questões de estado e, portanto, de ordem pública, tratando-se de direitos indisponíveis. A forma pela qual se estabelece a relação jurídica de filiação, quando não há vínculo de consanguinidade, é a adoção. A filiação socioafetiva é construção jurisprudencial, legitimando a posse do estado de filho e a chamada adoção à brasileira, que passou a merecer atenção do Conselho Nacional de Justiça, que editou o provimento supramencionado.
Infelizmente, mesmo com o avanço jurisprudencial e com a valorização do affectio familiae, o Poder Judiciário ainda entende que a existência de liame afetivo não possui o condão de alterar a natureza jurídica da relação. Em inúmeros casos, mesmo restando comprovada de forma inequívoca a relação familiar e a vontade expressa em formalizar o vínculo familiar, a justiça brasileira ainda superestima o critério etário mínimo previsto no Provimento nº 63/2017 e no ECA.
O Estatuto da Criança e do Adolescente consubstancia-se no princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, considerando seus destinatários como sujeitos de direito, contrariamente ao Código de Menores que os considerava como objeto de direito. Dessa forma, entre os diversos direitos elencados na Lei nº 8.069/90, está que a criança e o adolescente possuem o direito fundamental de serem criados no seio de uma família, seja esta natural ou substituta. Entre as modalidades de colocação em família substituta, encontramos a adoção, medida de caráter excepcional, mas irrevogável, que atribui a condição de filho ao adotado, impondo-lhes todos os direitos e deveres inerentes à filiação.
A adoção, salvo melhor juízo, pressupõe a maturidade emocional para assumir uma família e tal fato deve ser analisado caso a caso, mesmo quando ausente o requisito formal e objetivo do Art. 42, § 3º do ECA, sob pena de estar-se a contrariar a finalidade protetiva do referido Estatuto. Teologicamente, tal norma também visa impedir fraude, tal qual um matrimônio disfarçado de adoção. Porém, as particularidades de cada caso devem ser ponderadas e analisadas cuidadosamente.
Em um caso que chegou ao STJ, um padrasto 12 (doze) anos mais velho que a enteada buscava obter a adoção unilateral dela. Ele alegou que, apesar da diferença de idade entre adotante e adotanda ser menor do que a estabelecida em lei, ele convivia em união estável com a mãe da menina desde 2006, quando assumiu a responsabilidade e os cuidados com a garota como se fosse sua filha.
O relator do recurso, o Ministro Luis Felipe Salomão, ressaltou que não se percebe no caso situação jurídica capaz de causar prejuízo à adotanda, já que a mãe biológica está de acordo com a adoção. A 4ª Turma determinou que o processo volte à primeira instância para que o juiz prossiga com a instrução do caso, ouvido o pai biológico.
Conclusão
O instituto da adoção confere estado de filiação, com os mesmos efeitos civis oriundos da filiação biológica. Para tanto, a lei estabelece requisitos com a finalidade de tornar a família oriunda da adoção o mais próxima da família natural.
Um dos requisitos legais exigidos é a diferença etária mínima entre adotante e adotando, que, segundo o § 3º do Art. 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente, é de 16 (dezesseis) anos. A não observância do requisito etário, seguindo esta norma, importa em impossibilidade jurídica dos pedidos de adoção.
Caso mantida esta regra, sem analisar as particularidades de cada caso, os Tribunais estarão a materializar um rompimento de vínculo emocional e afetivo já estabelecidos, contrariando o Princípio da Afetividade que rege o Direito de Família Contemporâneo.
A decisão de um magistrado, seja ela qual for, deve demonstrar sua retidão às partes envolvidas em um litígio. A regra prevista no ECA e no Provimento nº 63/2017 pode ser mitigada em prevalência dos interesses do adotando, pois necessária também é a tomada de consciência da finalidade do referido Estatuto. O adotando já inserido em uma família (vivenciada no seu cotidiano, e não nos moldes do que reproduz a lei) não pode permanecer à mercê do tempo.
Em consonância com este entendimento, contrariando as normas vigentes e o posicionamento quase unânime dos Tribunais, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que é possível, dependendo das circunstâncias de cada caso, flexibilizar a exigência de diferença mínima de 16 anos entre adotando e adotante, prevista no parágrafo 3º do artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A afetividade é o tema central do Direito das Famílias e deve ser resguardada sempre que tais questões divergirem do ordenamento jurídico vigente.
Referências
BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em:
PROVIMENTO 63/2017. CNJ. Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=2525>
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