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Alienação parental - algumas notas a partir do filme o filho protegido
Alienação parental - algumas notas a partir do filme o filho protegido
Claudia Pretti Vasconcellos Pellegrini[1]
Não me lembro de nenhuma necessidade da infância tão grande quanto a necessidade da proteção de um pai.
(Freud, Mal-estar da civilização)
A imagem que ilustra a capa do seminário 4 de Jacques Lacan, intitulado A relação de Objeto (1994), é o quadro Saturno devorando um filho (1821-1823), de Francisco de Goya. A obra faz parte do conjunto de obras denominado de “pinturas negras”, e, nela, Saturno, ao devorar seu próprio filho, encena o que há de crueldade na constituição do sujeito humano.
Não por acaso, o mesmo quadro aparece de forma destacada no enredo do filme argentino O filho protegido (2019), dirigido por Sebastian Schindel. O longa retrata de forma intensa e em um ambiente sombrio a questão da alienação parental e de seu agravamento quando encontra no genitor alienador uma precariedade ou mesmo um quadro de patologia psíquica.
Interessante notar que a cena inicial do filme é uma relação sexual do casal protagonista, o que pode, inicialmente, deixar ao espectador uma ideia equivocada de conjugalidade, ainda que estejamos advertidos de que o ato sexual não sustenta por si só uma conjugalidade. Como ser de cultura, o humano deixa de lado o que poderia ser um funcionamento puramente fisiológico e instintual, mergulhando na dimensão do desejo. Somos seres de falta, e o amor vem em suplência a essa falta estrutural que nos constitui. Na dimensão psíquica da conjugalidade, estão implicados os traços dos primeiros objetos amorosos de cada um e de seu encontro sempre sintomático com os traços primitivos do outro. É exatamente por isso que um encontro amoroso entre duas pessoas nunca foi e nem será um evento simples.
No filme em questão, temos um casal composto por um homem que vem de um divórcio complicado, acrescido de problemas com o alcoolismo, o que o levou ao afastamento de suas duas filhas. Nesse contexto, encontra na relação com sua nova parceira a possibilidade de reparação dos traumas vividos. Retoma sua pintura, abandona o álcool, e, diante do desejo de sua nova companheira, Sigrid, de ter um filho, partem em busca de realizá-lo. Aqui precisamos lembrar que querer ter um filho não coincide necessariamente com desejar um filho. E que é somente na dimensão do que denominamos desejo que uma criança pode efetivamente encontrar as condições necessárias para vir ao mundo.
Sempre prematuro e vulnerável, o filhote humano depende de um outro para sobreviver, e é com os elementos fornecidos pelos discursos familiar, cultural e social de seu tempo que ele poderá articular um sintoma como resposta, colocando-se no mundo com sua marca própria. Para tanto, é necessária uma transmissão que não seja anônima. Ele precisa necessariamente estar inserido em uma genealogia que permita essa transmissão. Nesse sentido, depende radicalmente desses outros, representados inicialmente pelos pais, e depois pela família extensa e pelo social. É na transmissão das narrativas familiares e no vigor das funções paternas e maternas, independente de quem as exerça, que a saúde psíquica pode ser garantida.
Aquilo que se nomeia no campo do direito como “garantir o melhor interesse da criança” pode ser traduzido, pelo discurso psicanalítico, como “garantir a presença dos elementos necessários à estruturação psíquica pela via das funções paternas e maternas”. Somente assim teremos sujeitos de direito, mas também sujeitos de desejo. Exatamente por isso que pensar o apagamento de uma dessas figuras constituintes tal qual vemos encenar-se nos quadros de alienação parental é grave. Logicamente, tratando-se de função, ela é intercambiável e poderá vir a ser ocupada por outros, que não apenas os genitores. Mas, na alienação parental, trata-se de uma tentativa deliberada de apagamento radical de uma dessas figuras da vida da criança, o que nunca será sem consequências nefastas.
Desde o início do filme, podemos perceber nessa mulher uma série de comportamentos que poderiam ser lidos como prenúncio dos fatos que irão se desenvolver mais tarde, como a tentativa obstinada de tratar a gravidez sem o acompanhamento médico, já que nenhum médico concordava em deixá-la no comando das decisões sobre os procedimentos necessários, e o uso de medicamentos e condutas não recomendadas pelos médicos e, sobretudo, a impossibilidade radical de levar em conta as opiniões, desejos e ponderações de seu parceiro e pai da criança. Uma série de eventos iam deixando Lorenzo, o pai, cada vez mais impedido de participar da vida do filho que estava por vir. Uma das cenas emblemáticas e que ilustram com clareza essa dificuldade, é a que ele entra no quarto que seria do bebê, e o qual ele havia pintado com todo carinho, imprimindo nas paredes seu traço de artista e presenteando seu filho com o que tinha de dom mais precioso, e encontra suas pinturas apagadas. Apenas um quarto todo bege, “sem nenhum estímulo” – como, de acordo com Sigrid, a mãe tirânica, que tudo sabe, e que não apresenta nenhum sinal de angústia –, deveriam ser os quartos dos bebês.
Cabem aqui algumas considerações sobre Lorenzo. Sem conseguir se posicionar, fica quase como um espectador diante do quadro insano que se apresenta, quadro esse coroado pela vinda de uma babá/parteira húngara, que não falava sua língua, mas que assume o comando da casa, deixando-o totalmente de fora do cotidiano da vida do casal. A partir de sua chegada, é Sigrid e a babá que parecem fazer as vezes do casal parental, deixando Lorenzo atônito e totalmente imobilizado. Esse traço de impossibilidade ou mesmo incapacidade de posicionamento é um traço comumente encontrado nos genitores alienados. Estranham o que está acontecendo, fazem até muitas queixas, mas não conseguem sair da inibição e nem agir diante da situação apresentada. Isso acaba deixando o terreno fértil para que a alienação parental ocorra. Importante ressaltar que, ao falarmos de responsabilização e mesmo de coparticipação do genitor alienado, não significa que este seja um ser inferior e que possa ser culpabilizado ou desqualificado. Trata-se, aqui, sobretudo, de podermos levar em conta que a dimensão inconsciente e o sintoma de cada um vão participando da trama e tecendo a teia que prende cada um dos envolvidos nessa situação trágica que é a alienação parental.
Jacques Lacan, ao tratar da questão das psicoses e da posição da mãe, mesmo do que podemos nomear de loucura materna, nos adverte que, em nome do amor, fazemos muitas coisas com nossos filhos, inclusive as maiores atrocidades. E, para ilustrar, busca na etologia o exemplo das mães crocodilo que, ao sinal de perigo, colocam os filhotes na boca para protegê-los, e que, algumas vezes, por acidente, acabam engolindo um deles. Diz ainda que a função paterna é a de colocar uma estaca bem forte na boca da mãe para impedi-la de engolir o filho, tal qual um crocodilo. Usa essa metáfora para mostrar que a tendência materna de manter com o filho uma relação simbiótica é esperada que aconteça, mas que em nenhuma hipótese poderá ser bem sucedida, pois o preço disso seria uma patologia mental para a criança. Põe relevo, ainda, que é a função paterna que, enquanto transmissora do interdito fundamental, garante a possibilidade de o filho sair do lugar de objeto materno e se constituir como sujeito desejante. A partir daí, o que podemos pensar que seriam as consequências para esse filho protegido de forma doentia no filme em questão? Evidentemente, não temos como prever de forma objetiva o que é da ordem da subjetividade, mas não parece fora de contexto afirmarmos que os riscos psíquicos que essa criança sofre são enormes. Lembremos da última cena, onde se descortina o fato de que essa criança ainda vive sem contato com o mundo, protegida pela loucura materna. Por fim, a partir do filme, podemos levantar algumas questões fundamentais: se a Lei 12.318/2010 considera “ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente – promovida ou induzida por um de seus genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou o adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância –, para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”, o que o filme nos retrata não seria o cúmulo da interferência na formação psicológica? Quais os limites entre a proteção e o adoecimento psíquico pelo excesso de proteção? Lorenzo, enquanto genitor alienado, pagou com a vida por ter tentado retirar seu filho desse aprisionamento doentio. Qual o preço a ser pago por esse bebê? Que possamos todos estarmos livres desse tipo de proteção.
Referências
LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 4, A relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
[1] Psicanalista. Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, Coordenadora do fórum Clínico da Infância e da Adolescência, Vice-diretora de relações interdisciplinares do IBDFAM.
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