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A “família ética” em melhor reaprendizado no confinamento
A “família ética” em melhor reaprendizado no confinamento
JONES FIGUEIRÊDO ALVES
A expressão família ética foi construída pelo economista britânico Paul Collier, da Universidade de Oxford (2018), segundo a fórmula de um vínculo, não apenas afetivo, mas de obrigações mútuas, com potenciais de reciprocidade e de pertencimento, um sistema de crenças e de responsabilidades (1). Ela agora está sendo testada por um confinamento global, onde a sociedade perdida do século XXI está se reencontrando dentro de casa. Esse reaprendizado de quarentena reúne a família em torno de um de seus valores mais importantes, o da solidariedade familiar.
Essa família é a nuclear e parental, de três gerações, vivenciada no seu locus próprio, o da casa, em expressão literal de abrigo, tratada por Xenofonte (2); quando nem sempre a aproximação física implicara, antes, uma ética das atenções mais dedicadas entre pais e filhos ou entre os casais.
A pandemia está nos oferecendo lições básicas sobre as desigualdades sociais e da necessidade urgente de resolvê-las por amor à humanidade. De igual modo, lições de o nosso senso de cumplicidade com a família dever ser revisitado por se achar em defasagem.
A propósito, o filme “Un Homme Pressé”, do diretor francês Hervé Mimran (2018), traz o tema universal da reconstrução de vidas, quando o personagem Alain Wapler, respeitado empresário, cujo tempo implica sucesso, dinheiro e negócios, sofre um AVC. Confinado em casa, descobre que perdeu de acompanhar (bem) a adolescência da filha e, afinal, o melhor proveito do tempo, aprendendo a ser um novo homem (3).
O isolamento social compulsório coloca a família em um reaprendizado de suas próprias relações, com os protagonistas redescobrindo a si mesmos e os demais, em rituais que potencializam as interações afetivas. A família se reencontra e se reinventa. Melhorias de todos, no aprimoramento das convivências.
A adaptação ao confinamento há de consolidar a assertiva de “entre todas as entidades que nos enlevam acima do indivíduo, a mais poderosa é a família” (4). A base da ideia da família ética foi abalada, quando “no lugar do apreço por cumprir as obrigações familiares colocou-se o apreço por uma realização pessoal”. Agora, essa adaptação ressignifica o grupo familiar, importando que as obrigações com a família, obriga-nos a ser melhores, a partir dos novos compartilhamentos com ela.
Essa família ética foi objeto de tema intrínseco à sua real importância, quando a Facultat de Dret, da Vniversitat, de Valência, na Espanha, em seminário coordenado por Fernando Fita Ortega (ESP), Fernando Araújo (PT) e Theresa Nahas (BR), com nossa participação, colocou em debate as “Políticas Públicas para fomento de la corresponsabilidad familiar” (16-17/01/2020).
Exposto pelos juristas Elena García Testal (Vniversitat de Valência) e Sílvio Romero Beltrão (UFPE) o tema exibe a sua atualidade. Expressou Silvio Romero: "Nos dias atuais há um enorme envolvimento entre as atividades de trabalho e as atividades familiares, uma influenciando na outra. O reconhecimento pelo Estado e pelos Empresários da existência de uma realidade familiar típica de seus trabalhadores é essencial para fomentar e desenvolver as atividades econômicas de forma equilibrada, em que haja ganhos dos dois lados."
Ora, o trabalho das tarefas domésticas e os cuidados com os filhos são responsabilidades de todos os adultos da casa que formam o paradigma da nova família ética. Essa distribuição da responsabilidade doméstica e familiar deve ser refletida sobre as atividades profissionais de cada um deles, ou seja, em normativos de igualdade de oportunidades e de tratamento de trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidade familiares, segundo a Convenção OIT, 1981, nº 156 (5). Pasmem: não ratificada pelo Estado Brasileiro (06).
Beltrão defendeu o equilíbrio entre o trabalho e a família, sustentando que “trabalho e família são aparentemente regidos por lógicas diferentes: Uma pública e outra privada. Mas uma tem importante influência em outra. É o trabalho que gera renda para o sustento e a manutenção da família. E ao mesmo tempo uma família estável tem enorme influência na atividade profissional e na produtividade da empresa”.
Essa busca de equilíbrio está sendo feita no confinamento pandêmico e tende a demonstrar a necessidade de compatibilidade do interesse econômico das empresas com os interesses familiares dos trabalhadores. Depois dele, trabalho e família terão lógicas muito mais próximas, para a estabilidade e o melhor proveito de ambos. (7)
Incursões outras sobre a família ética, permitem-nos refletir determinadas questões, em ótica do presente tempo instante da pandemia:
(i) A convivência integral.
A convivência de tempo inteiro e em âmbito restrito reclama que o confinamento atual mantenha a estabilidade emocional-afetiva em níveis de adequação ideal a dois e com o núcleo familiar. A relação espaço-tempo exige, por isso mesmo, standards de atenções particularizadas a atender os interesses comuns e os interesses pessoais de cada um.
Neste sentido, Cláudio Paixão, doutor em Psicologia Social (UFMG), pondera: “a hiperconvivência gera alguns conflitos e a regra número um é: estabelecer o espaço próprio e o espaço do outro” (8).
Esse direito à integridade psíquica do casal na dinâmica psicológica de suas relações, tem sido brilhantemente trabalhado pela psicanalista Giselle Groeninga (IBDFAM). Ela elucida pela responsabilidade funcional exercida por cada qual numa família, que “ganhou outras nuances, inclusive com a consciência de que os aspectos subjetivos, emocionais, se operacionalizam nos vínculos, nas formas de relacionamento, nas diversas possibilidades de convivência” e sob a crescente importância dada aos aspectos afetivos (9).
Em suma, importa dar consistência à ideia-força da “comunhão de vida” instituída pela família (art. 1.513, Código Civil), tendo-se o confinamento como eticamente preponderante à confirmação dos afetos.
(ii) O casal parental.
Nada obstante se colocarem como ex-parceiros de um relacionamento findo, eles continuam substancialmente permanentes, como pais comuns que são dos mesmos filhos. É o denominado “casal parental”, constituindo uma nova família jurídica, dentro da família ética (10). A sua moldura, sem regulação ideal, experimenta agora o desafio inusitado de um confinamento singular.
A propósito, Projeto de Lei nº 1.627/2020, de 07 de abril, de autoria da senadora Soraya Vieira Thronicke (MS), dispondo sobre o “Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito de Família e das Sucessões no período da pandemia causada pelo CoVid-19”, cuida de bem enfrentar os novos problemas jurídicos. O texto proposto foi elaborado por consagrados juristas, os profs. Mário Luiz Delgado (FADISP/IASP), José Fernando Simão (USP) João Ricardo Brandão Aguirre (Mackenzie) e Mauricio Bunazar (IBDMEC). Chega em momento precioso. (11)
O projeto estabelece que “o regime de convivência de crianças e adolescentes, qualquer que seja a modalidade de guarda, poderá ser suspenso temporariamente, de comum acordo entre os pais ou a critério do Juiz, para que sejam cumpridas as determinações emanadas das autoridades públicas impositivas de isolamento social ou quarentena” (art. 6º). Bem de ver que, em caso de desacordo, o dispositivo tem sua matriz no § único do art. 1.631 do Código Civil.
É providencial que “durante o período de suspensão das atividades escolares, poderá ser aplicado o mesmo regime previsto para as férias” (§ 2º do art. 6º) e decisivo que “será assegurada a convivência do genitor não guardião ou não residente por meios virtuais”. (§ 1º do art. 6º). O recurso aos meios virtuais também terá emprego para o direito de visita dos avós idosos ou em condição de vulnerabilidade (art. 7º).
Logo, predominante o melhor interesse dos filhos resulta inequívoco que não poderá o cônjuge detentor da guarda singular, em atual confinamento com eles, impor ao outro (ou avós) desprovido(s) da convivência presencial, também um isolamento virtual. Esse ato configura alienação parental, para além da ilicitude civil por um dano existencial provocado.
Lado outro, a guarda compartilhada vem permitindo, na atual crise, melhores experiências dignificantes, com outros arranjos temporais, e melhor exemplo da família ética surge com a situação de casais divorciados que fazem a quarentena juntos para manterem os filhos perto. A engenheira civil Monique Andrade, de Brasília, coloca a referência-paradigma, quando para não afastar o filho do pai convidou o ex para o confinamento familiar (12). Realmente, “a separação do casal exige melhores pais” (Eduardo Sá, 2011).
(iii) A violência doméstica.
Cuide-se, outrossim, que relações mal resolvidas dos casais se tornam mais agônicas durante o confinamento. Ocorre o recrudescimento da violência doméstica. A quarentena forçada obrigou casais viverem maior parte do tempo juntos quando já viviam, de fato, separados por suas vidas egoísticas e individuais. O confinamento doméstico trouxe o efeito colateral de a casa representar um maior perigo para as mulheres.
Fato é que os casos de violência doméstica cresceram, em percentuais elevados, no país e no mundo. Revela-se bastante significativo o apelo global do secretário geral da ONU, António Guterres, “para que se protejam mulheres e crianças "em casa", desprotegidas pelo confinamento provocado” (13).
Em outro viés, aumentaram os divórcios no mundo. Relatos da China pós-confinamento indicam recorde nos pedidos de divórcio, notadamente formulados por mulheres que, desde a Lei do Casamento de 1950, adquiriram esse direito de postulação. Em Nova York, o fenômeno se repete, enquanto na Rússia, onde 60% dos casamentos terminam em divórcio, diante das medidas de controle, casamentos e divórcios foram suspensos até 1º de junho.
Em pleno confinamento, tem-se então sancionada a Lei nº 13.984, de 03.04.2020, que determina novas medidas protetivas de urgência das vítimas de violência doméstica. A lei altera o artigo 22 da Lei Maria da Penha, com o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação (inc. VI) e o seu acompanhamento psicossocial (inc. VII). Anote-se que a lei foi inspirada no Enunciado nº 26, aprovado no IV Fonavid (TJRO, 7-8/11/2012). A terapêutica reclama urgência.
(iv) A solidariedade familiar.
O princípio jurídico da solidariedade migra para as relações familiares, com notável presença dentro da crise atual desencadeada pelo coronavírus. “A solidariedade é fato e direito; realidade e norma” (14) e se torna pressuposto da família ética, quando mais se aperfeiçoa dentro de casa, por ser o lar, ora revisitado em confinamento, “por excelência um lugar de colaboração, de cooperação, de assistência e de cuidado”.
Solidariedade, aos filhos pela exigência da pessoa ser bem cuidada até a maioridade (ECA, art. 12), aos idosos e vulneráveis do grupo familiar, diante dos estatutos jurídicos que os tutelam e aos cônjuges ou conviventes, pelo afeto, cooperação, mútua assistência, respeito e consideração (artigos 1.566 e 1.724, Código Civil).
Agora, estes fatos psicológicos ou anímicos convertidos em categorias jurídicas, para iluminar a regulação das condutas (Paulo Lobo), em flagrante conjunção de valores e sentimentos, tornam-se urgentemente indispensáveis.
De fato. Em consequência do distanciamento social externo, funcionalizam-se essas categorias, na “sedutora proposição de encontrarmos a nós mesmos” a partir da família, agora confinada, doravante ética e afetivamente reaprendida.
Quando o filosofo pré-socrático Heráclito afirma que “é na mudança que as coisas repousam”, há “um estímulo para enfrentar as mudanças como fases auroreais e orientar os resultados rumo a desfechos felizes” (15). Assim seja.
Notas:
(01) “The Future of Capitalism: Facing the New Anxieties”, London, UK: Allen Lane, 256 p; 2018;
(2) Em sua obra “Econômico” ele ensina as virtudes domésticas, despontando a passagem mais famosa quando Iscômaco expõe para Sócrates quais julga serem os papéis do homem e da mulher: “E, pelo fato de que, por natureza, ambos não são igualmente bem dotados para tudo, precisam muito um do outro e a união é mais útil ao casal quando um é capaz daquilo em que o outro é deficiente”. (Econ. VII, 18-28)
(3) O filme, com licenças poéticas, baseia-se na obra autobiográfica “J'étais un homme pressé” (2014), de Christian Streiff, alto executivo que chegou a ser CEO da Airbus e do Grupo PSA, incluindo as montadoras Peugeot e Citroen.
(4) COLLIER, Paul. O futuro do capitalismo: enfrentando as novas inquietações”, p. 115.
(5) C156 - Sobre a Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres Trabalhadores: Trabalhadores com Encargos de Família. 1981.
Web: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242709/lang--pt/index.htm . Acesso em 12.04.2020
(6) Web: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242947/lang--pt/index.htm Acesso em 12.04.2020
(7) Há quem sustente que o teletrabalho, com a experiência exitosa apresentada, aumentará em 30%.
(8) RICCI, Larissa. Quarentena contra o coronavírus vira teste de fogo para casais. In: Estado de Minas, 06.04.2020.
Web:https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/04/06/interna_gerais,1135904/quarentena-contra-o-coronavirus-vira-teste-de-fogo-para-casais.shtml Acesso em 12.04.2020.
(9) GROENINGA, Giselle. Novo CPC valorizou aspectos da Psicologia no Direito de Família. Consultor Jurídico, 24.04.2016. Web: https://www.conjur.com.br/2016-abr-24/processo-familiar-cpc-valorizou-aspectos-psicologia-direito-familia
(10) ALVES, Jones Figueirêdo. Casal parental merece maior atenção do Direito de Família. Consultor Jurídico, 10.02.2014. Web: https://www.conjur.com.br/2014-fev-10/jones-figueiredo-casal-parental-merece-maior-atencao-direito-familia
(11) Web: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8090502&ts=1586284555285&disposition=inline Acesso em 12.04.2020
(12) Web: https://www.metropoles.com/vida-e-estilo/comportamento/casais-divorciados-fazem-quarentena-juntos-e-mantem-filhos-perto Acesso em 12.04.2020
(13) https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2020-04/onu-pede-protecao-mulheres-e-criancas-vitimas-de-violencia-domestica. Acesso em 12.04.2020;
(14) LOBO, Paulo. Princípio da solidariedade familiar. Web: http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/78.pdf Acesso em 12.04.2020
(15) DE MASI, Domenico. O mundo ainda é jovem. Conversas sobre o futuro próximo. São Paulo: Vestígio, 2019, 284 p.; pp. 248-249.
Referências bibliográficas:
COLLIER, Paul. O futuro do capitalismo: enfrentando as novas inquietações”, trad. de Denise Bottmann, 1ª ed., Porto Alegre: L&PM, inverno de 2019, 302 p.;
XENOFONTE. Econômico. Tradução e introdução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 99 p.
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O autor é Desembargador Decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Fonte: Consultor Jurídico – Conjur, 20.04.2020
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