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Suicídio infantil: da criança-sintoma à passagem ao ato
Suicídio infantil: da criança-sintoma à passagem ao ato
Resumo: Este trabalho teve como objetivo analisar, à luz da psicanálise, o fenômeno do suicídio infantil a fim de fomentar a discussão sobre este tema que ainda se apresenta como um tabu e facilitar a reflexão acerca do papel da criança na atualidade e as particularidades do sofrimento psíquico, caracterizando-o como sintoma, tanto no sentido de mensagem a ser decifrada quanto signo das formas de subjetivação da nossa época, e identificar a passagem ao ato suicida como um recurso possível encontrado pela criança para afastar-se do sofrimento e fazer-se ouvida enquanto ser falante e de direitos.
Palavras-chaves: Suicídio Infantil; Psicanálise; Passagem ao ato.
Introdução: A ideia de que uma criança possa vir a escolher a morte choca e impede a análise imparcial deste fenômeno por parte da sociedade e dos profissionais que atuam com a infância. Se em todos os países e culturas do mundo o suicídio é menos frequente na infância do que em outras faixas etárias, sua incidência leva a sociedade e as autoridades a se perguntarem o que se passa com as crianças. Para responder a essa pergunta, contudo, se faz necessário primeiro compreendermos qual o lugar da criança na atualidade e que mensagem o sintoma infantil busca transmitir. Visto que, como afirmou Lacan (2003), se o sintoma infantil remete à estrutura familiar, esta, por sua vez, nos aponta, diretamente para as formas de subjetivação e laço social da atualidade, sobretudo àquilo que de disfuncional e patológico é inerente a essas. Desta forma, avançando na discussão para além dos sintomas infantis, torna-se possível ler a criança como sintoma de uma época que anseia por ser escutado e interpretado a fim de evitar o surgimento do pior ou, neste caso, a passagem ao ato suicida.
Metodologia: O percurso baseou-se na procura inicial e exploratória por materiais disponibilizados em sites de busca a partir das palavras-chave “Suicídio Infantil”, “Psicanálise”, “Sintoma da Criança”. Após, os dados encontrados foram aproveitados para, em conjunto com a literatura psicanalítica freudiana e lacaniana, investigar o aspecto sintomático do suicídio em crianças e suas implicações no campo social. Em relação aos critérios de inclusão, foram utilizados artigos e dissertações referentes ao suicídio infantil, priorizando os publicados a partir dos anos 2000, bem como artigos e revistas de psicanálise do mesmo período que tratam sobre a criança e seu lugar no século XXI. Foram excluídos os artigos que tratam exclusivamente do suicídio na adolescência.
Resultados e discussão: De acordo com a Organização Mundial da Saúde - OMS (2002), o suicídio é um ato intencional, portanto, consciente, que visa acabar com a própria vida. Porém, deve-se atentar para a existência de um espectro suicida que vai desde o suicídio propriamente dito, até as tentativas, ideações e desejos suicidas e, também, o para-suicídio, que incluiria os comportamentos que oferecem risco de morte sem a intenção consciente de causá-la. Segundo Souza (2010 apud KUCZYNSKI, 2014), foram registrados 43 casos de suicídio de crianças até 10 anos, no Brasil, de 2000 a 2008. Destas, cerca de 80% dos meninos lançaram mão do enforcamento, enquanto entre as meninas houve a preferência por métodos como intoxicação medicamentosa, objetos cortantes e afogamento. Ressalta-se que, quando índices sobre suicídios são analisados, deve-se considerar as altas taxas de subnotificação, consequência, entre outras coisas, do tabu que perpassa o fenômeno. E se a busca por silenciar os fatos é consideravelmente alta entre os adultos, presume-se que a situação deve se agravar quando o suicida é uma criança. Apesar do choque causado pelos dados acima, que nos confrontam com a ideia de uma criança deliberadamente planejar a própria morte, deve-se ter em mente que nem sempre quem pratica o ato suicida efetivamente deseja morrer, pois, conforme indica Lacan (1957-1958 apud COSTA, 2010, p. 55), o sujeito suicida “não busca precisamente a morte, mas um estado de repouso das pedras”, o retorno à uma condição anterior ao sofrimento. Desta forma, podemos inferir que o sujeito suicida encontra na morte um recurso para a vida, utiliza-se dele para afastar-se de um sofrimento que o embaraça. Este, por sua vez, pode ser lido como um sintoma: o signo de uma queixa à espera de escuta e decifração. Mas, se a tentativa de suicídio ou o ato consumado por parte da criança podem ser entendidos como um sintoma infantil, este tem por objetivo responder ao que há de sintomático na estrutura familiar (LACAN, 2003). Em outras palavras, a criança pode tomar para si o dever de representar as problemáticas e inadequações que atravessam o ambiente familiar, inserindo-se no e encarnando o discurso de seus pais. E, considerando que as configurações familiares são necessariamente construções sócio-históricas, elas nos remeterão à uma reflexão acerca da atualidade, afinal de contas, como nos sugere Freud com a novidade de sua descoberta, sempre se é filho da época em que se vive. Com isto, o pai da psicanálise nos alerta para os riscos de se pensar um fenômeno fora da época em que o mesmo está inserido. Assim, se o aumento no índice de suicídio infantil se apresenta como um sintoma na modernidade, fá-lo necessariamente por ser um sintoma oriundo de uma modernidade caracterizada pela gestão sistemática de crises e por um excesso inerente às novas formas de gozo e laço social, que inevitavelmente atravessam e constituem as organizações familiares na atualidade. Sabe-se que a modernidade é marcada pelo seu caráter de ruptura constante, tanto com tradições, rituais e regras morais e religiosas quanto com formas de vínculo e de Estado; exalta-se a imagem, o consumo e o individualismo a ponto dos conceitos “Cultura do Narcisismo” (LARSCH, 1983) e “Sociedade do Espetáculo” (DEBORD, 2000) serem os mais utilizados para defini-la. Contudo, para além de qualquer conceituação, basta ver o noticiário para se dar conta do caos que circunda o cotidiano do indivíduo moderno: uma crescente onda de violência, descrença nas instituições, epidemia de depressão e um regime econômico que produz endividamento em massa e divide as pessoas entre os que podem e os que não podem ter acesso à realização de seus “sonhos de consumo”. Pois bem, se esta nova ordem social produz significativo sofrimento e mal-estar nos adultos, presume-se que as crianças são ainda mais afetadas pelos impactos das sistemáticas rupturas inerentes às mudanças do mundo moderno, pela condição mesma da infância de dependência legal e afetiva dos seus cuidadores, em que o contato com a realidade é mediado pela referência simbólica daqueles que assumem esta função. Haja vista a crescente incidência do infanticídio, da criminalidade infantil, do desamparo social, da ampliação do uso de drogas e da participação juvenil em crimes organizados, tudo isso serve para exemplificar o deslocamento do papel da criança na atualidade e suas peculiares formas de sofrimento. De um lado, estima-se um número de 9 milhões de crianças vivendo em situação de extrema pobreza expostas a toda a sorte de violências e carências – de acordo com a Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos - ABRINQ (2019) – no outro, temos a criança burguesa exposta aos imperativos de um neoliberalismo que preza pela eficiência e pelo sucesso a todo custo, ocupando seu tempo ao máximo com compromissos: idiomas, música, esportes, robótica, xadrez, aulas de reforço, dentre outros afazeres, que tendem a exaustá-la e impedi-la de viver a infância em suas brincadeiras, tal como ela deve ser vivida. Esta “adultização” da agenda infantil é comumente justificada pelo interesse dos pais em capacitar os filhos para o mercado de trabalho, ignorando-se que o brincar é essencial para o desenvolvimento infantil saudável, não só porque estimula competências e habilidades na criança, mas, principalmente, por ser o meio de rearranjo das situações do seu mundo, transformando e significando a realidade traumática e penosa (FREUD, 1920). O peso da incansável busca pelo sucesso atinge cada vez mais cedo os indivíduos e a ampliação de seus limites o tornam cada vez mais impossível de alcançar. O fracasso, então, quase sempre se apresenta como um sintoma, tal como dislexia, hiperatividade, depressão e suicídio (COSTA, 2010). A criança ocupada, tal qual um adulto, é transformada em objeto e posta em circulação para gozo capitalista, passando a ser um produto do qual se exige funcionamento perfeito, dando-nos uma pista sobre a atual epidemia de crianças super medicadas e amplamente diagnosticadas pela mera observação do comportamento. Fato é que tanto a criança pobre quanto a burguesa são potencialmente vulneráveis pela própria condição infantil e sentem no dia-a-dia os impactos das mudanças sociais, sendo que nenhuma das duas é escutada e tomada como ser falante. Há, na atualidade, uma infinidade de discursos que pleiteiam o saber sobre a criança, reduzindo-a a mero objeto. Por isto, faz-se indispensável a compreensão desses saberes como manifestações igualmente problemáticas de poder sobre a criança (SARMENTO, 2013). É neste contexto de sufocamento e silenciamento da infância que, à criança carente de bagagem simbólica suficiente para lidar com a realidade, é relegado um enfrentamento traumático e angustiante. E se para a psicanálise a falta é constituinte, portanto, a angústia estará sempre à espreita do sujeito, marcando um momento de perturbação e comoção, fazendo com que confronte uma falta de sentido radical e convidando-o a agir para apaziguá-la. Daí o suicídio pode surgir como passagem ao ato, ou seja, “momento de embaraço maior para o sujeito” (LACAN, 2005, p. 129), que diante da escassez de apoio e recursos para simbolizar, no contexto de sua história, o excesso que se apresenta como sofrimento, precipita-se a fim de “salvar-se evitando a si mesmo” (ANSERMET, 2003 apud COSTA, 2010, p. 55). O ato, então, apresenta-se como uma palavra não pronunciada, mas atuada; um recurso encontrado pela criança não somente para afastar-se de seu sofrimento, mas também para fazer-se ouvir enquanto sintoma.
Considerações finais: Se a abordagem do suicídio permanece indigesta, entre outros fatores, pelo choque que o tema provoca na sociedade, o aumento no índice do autoextermínio entre crianças torna urgente e indispensável que os profissionais que atuam com a infância se debrucem sobre o fenômeno, lançando mão da interdisciplinaridade a fim de compreendê-lo na proporção de sua complexidade e ampliar a discussão com o intuito de pensar meios eficazes de prevenção. Visto que o suicídio infantil se apresenta como sintoma de uma época que tem no núcleo de sua estrutura a produção massiva de patologias e sofrimento social, combatê-lo torna-se dever de todos. Diante disto, à psicanálise, sobretudo, demonstra-se essencial a reafirmação do compromisso com a palavra, tendo em vista que deve sua fundação à escuta das queixas historicamente silenciadas das categorias mais vulneráveis da sociedade. Combater o suicídio infantil, afinal, é prezar pela infância naquilo de mais nobre que ela tem a ensinar: fazer resistência ao engessamento da vida cotidiana pela via da espontaneidade e brincadeira.
DÍODORO, Rubens
Discente, UNAMA, Psicologia. - diodoro59@outlook.com
Referências Bibliográficas
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS FABRICANTES DE BRINQUEDOS. Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2019 [online]. Fundação ABRINQ, 2019. Disponível em: <https://www.fadc.org.br/publicacoes>. Acesso em: 12 dez. 2019.
COSTA, Daniela Scarpa da Silva. Ato suicida na infância: Do acidental ao ato. 2010. 91 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia.) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KUCZYNSKI, Evelyn. Suicídio na infância e adolescência. Revista Psicologia USP (Impresso), São Paulo, v. 25, p. 246-252, 2012.
LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, p. 369-370, 2003.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro. Zahar, 2005.
LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. Disponível um: <http://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2019/04/14142032-relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2019
SARMENTO, Fátima. A criança no século XXI. Revista @gente Digital, Salvador, ano 2, nº 8. p. 48-51, abr. 2013. Disponível em: <http://www.institutopsicanalisebahia.com.br/agente/download/agente008_fatima_sarmento.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2019.
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