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Coronavírus e as relações familiares
Coronavírus e as relações familiares
Adriana Grandinetti Viana
Andressa de Luca Kugler
Taíssa Albertina de Nadai
- INTRODUÇÃO
A pandemia ocasionada pela proliferação em alta velocidade do Coronavírus tem alarmado todas as esferas - políticas, econômicas e sociais - do país e do mundo.
Frente a essa nova situação, surgem dúvidas e questionamentos sobre as consequências e possíveis soluções com relação ao regime de convivência paterno ou materno/filial.
Como se pode imaginar, nenhum acordo ou sentença previu a regulamentação de convivência “durante uma pandemia com a determinação de isolamento social por período incerto”. Trata-se de fator imprevisível, que necessita compreensão social e a colaboração dos genitores visando à proteção de seus familiares.
Pois bem. Bom senso, ponderação e cooperação são conceitos escassos nos desinteligentes “combates” entre genitores, em que a emoção e a irracionalidade comumente dominam e impedem o diálogo e a resolução de simples conflitos.
Diante de tais circunstâncias, revela-se imprescindível a adoção de postura colaborativa e conciliadora dos profissionais da área de família, que podem – e devem – orientar e intervir para que não seja necessário sobrecarregar o Judiciário com novas demandas e pedidos liminares de suspensão ou alteração do regime de convivências, devido à pandemia.
- AS MEDIDAS DE ENFRENTAMENTO AO VÍRUS E OS CASOS DE FAMÍLIA
O ordenamento jurídico brasileiro disciplina os direitos e deveres relacionados à guarda e convivência dos entes parentais com seus filhos. Os artigos 1.583[1] e seguintes do Código Civil, em conjunto com os artigos 22, 33, 34 e 35 do Estatuto da Criança e do Adolescente[2], bem como o artigo 227[3] da Carta Magna, por exemplo, pautam-se nos princípios do melhor interesse e da proteção integral da criança e do adolescente, regulamentando os direitos e deveres dos pais e estabelecendo as denominadas guardas compartilhadas e unilaterais.
Na realidade, a necessidade de legislação ampla sobre o tema decorre da antiga confusão ante os conceitos de parentalidade e conjugalidade. O primeiro, entende-se pelo vínculo existente entre os responsáveis e seus filhos, isto é, diz respeito às funções de proteção, educação e todos os cuidados necessários para o desenvolvimento salutar da prole[4]. Já a conjugalidade decorre do vínculo existente estritamente entre os consortes, isto é, a díade conjugal[5].
A dificuldade - muitas vezes compreensível - de administrar as questões conjugais acaba transferindo a frustração e o desamor desenvolvido na conjugalidade à parentalidade. Entretanto, é justamente nos momentos calamitosos - como o em que nos encontramos - que essas diferenças necessitam ser deixadas de lado em prol do bem estar dos filhos em comum.
Não há previsão doutrinária, legislativa ou jurisprudencial que abranja a dimensão da situação ora vivenciada. Conforme relata a Promotora de Justiça da área de família do Ministério Público do Rio de Janeiro, Viviane Alves Santos Silva[6]: “as eventuais e necessárias modificações da convivência, tanto as consensuais quanto as feitas pelas vias judiciais, terão
que envolver os interesses da coletividade, e não só das pessoas da família que possam ser infectadas pela doença”.
Com razão o Ministério Público. Não há como respeitar o estipulado em acordos celebrados entre os pais, ou sequer decisões/sentenças proferidas judicialmente, se estas forem prejudiciais aos interesses dos menores e também ao interesse público.
Neste contexto, ressalte-se que a Portaria 356/2020[7], a Lei 13.979/2020[8] e os demais atos publicados posteriormente estabeleceram algumas medidas no combate ao vírus, que visam a proteção da coletividade e exigem compreensão e paciência de todos os brasileiros. Dentre elas, encontram-se o isolamento por período ainda não determinado de pessoas sintomáticas e assintomáticas, garantindo justamente a integral proteção ao princípio constitucional do direito à saúde.
É certo que nenhuma criança deverá ser privada do convívio com os seus entes parentais. Não seria justo com ela, nem com os pais. Por outro lado, o detentor da guarda ou da residência fixa não deve ficar sobrecarregado com todos os cuidados ao filho, em conjunto com o trabalho doméstico e as suas funções profissionais. É preciso estabelecer um equilíbrio.
Ao lado disso, é indiscutível que a alternância de residências, ou a convivência da criança com idas e vindas, poderá ser prejudicial não só aos menores, mas aos pais e ao grupo de risco que por ventura conviva com o núcleo familiar.
É oportuno citar alguns exemplos e dilemas para demonstrar que - como em todas as situações envolvendo o Direito de Família - cada caso deverá ser analisado com cautela e de acordo com as suas respectivas peculiaridades. Vejamos:
(i) Pais que moram em cidades diversas: como conciliar o limite geográfico com o fechamento das fronteiras dos estados e o regime de quarentena imposto aos pais e aos filhos?
(ii) O genitor que possui a guarda e residência fixa da criança e não pode deixar de trabalhar, devendo ainda manter o afastamento dos avós, pode pedir auxílio e extensão do regime de convivência ao outro ente parental?
(iii) Um dos pais que retornou recentemente de viagem ao exterior, ou a local com transmissão comunitária do vírus: como conciliar com a necessidade de isolamento por, no mínimo, 15 (quinze) dias, se o filho menor não possui outro responsável para gerir os seus cuidados?
(iv) Um dos pais que trabalha no sistema de saúde ou em ambientes que exigem contato com diversas outras pessoas: qual é a melhor solução para a proteção de seu filho?
(v) Pais e/ou filhos que possuem contato ou são parte dos indivíduos da zona de maior risco quanto ao vírus: como manter a convivência e garantir a proteção integral ao grupo de risco?
Não é só: como agir diante de situações inversas, referente aos pais que nem sequer apresentam sintomas, ou risco, mas utilizam-se da desculpa da pandemia para não visitar o filho, sobrecarregando o outro ente parental?
Como conciliar a complexidade dessas situações diversas e sui generis com o regime de convivência outrora estipulado?
É imperioso reconhecer que o diálogo é a única vacina capaz de proteger as crianças dos nefastos efeitos da crise atual, tanto pela privação de contato com um dos genitores, quanto pela exposição ao ciclo da contaminação do vírus.
De outro lado, como já ressaltado, não há como esperar que o Poder Judiciário consiga prestar – com celeridade – respostas aos inúmeros casos que demandam adaptações ao regime de convívio atual, sem deixar de lado as situações que continuam surgindo e prescindem de atendimento imediato dos promotores e juízes. Do mesmo modo que o Sistema de Saúde não possui condições de receber todos os casos suspeitos da doença, por não possuir leitos, profissionais e equipamentos disponíveis, não há como almejar que o Judiciário, já sobrecarregado por natureza, consiga cuidar de todas as excepcionalidades provenientes da pandemia.
- POSSÍVEIS SOLUÇÕES
Como o presente estudo tem como objetivo auxiliar os genitores e operadores do direito, passamos a listar sugestões e algumas possibilidades que, apesar de não substituírem - apenas complementam - o diálogo, podem ser de grande alento e guia a todos que estão enfrentando situações similares:
- Ab initio, é preciso frisar que as mudanças por meio de concessões e adaptações serão necessárias, em caráter provisório, e poderão ser documentadas em instrumentos particulares e até mesmo por emails;
- Nas resoluções, o relacionamento dos pais deixa de ser a problemática central, mas sim a proteção do filho;
- Os genitores não podem, simplesmente, ser proibidos de conviver com os seus filhos sem razão fundamentada e comprovada;
- Qualquer que seja a medida adotada pelos pais, a criança necessita ser orientada e informada de que é algo temporário, de modo a amenizar a abrupta mudança e instigá-la a compreender os motivos para a alteração;
- Os filhos devem, se possível, participar e ser informados de que as concessões estão sendo deliberadas para a sua proteção. Assim, além de se sentirem importantes, tenderão a aceitar com mais facilidade as mudanças, colaborando com a adaptação de todos os envolvidos;
- Nos regimes de convivência “regulares”, sugerimos adaptar a regra vigente para ao previsto nas férias escolares dos filhos. Por exemplo, em vez de o(a) genitor(a) buscar o filho todo fim de semana e nas quartas-feiras, poderia ser dividida a quarentena em períodos idênticos, ou não, para cada genitor, evitando-se o deslocamento dos pais e dos filhos;
- Nas situações de genitores que moram em outras cidades ou que não podem se deslocar no período da quarentena, o pai ou a mãe que não estiver em contato com o filho poderia ser compensado futuramente nas férias ou em outros feriados. Ressalta-se que é esse o exato posicionamento do Prof. ROLF MADALENO[9];
- Em todos os casos, no período em que a criança se encontrar afastada de um dos entes parentais, é imprescindível a facilitação do acesso ao outro genitor pelas vias digitais. Atualmente, são inúmeros os aplicativos que possibilitam vídeos de conversa entre pessoas distantes (skype, whatsapp vídeo, facetime, etc). Estabelecer uma rotina em que a criança converse, conte sobre o seu dia, brinque, e faça atividades virtualmente com quem ali não se encontra presente, pode ser muito saudável e inclusive ajudar a criança a passar pelas dificuldades do momento.
- Se um dos pais estiver retornando de viagem do exterior, ou estiver em locais e/ou trabalhos de risco, que seja este isolado pelo período mínimo de 15 (quinze) dias antes da convivência com o filho, cabendo ao outro genitor todos os cuidados durante o período de afastamento.
- BREVE CONCLUSÃO
Cada núcleo familiar tem as suas particularidades. Para a solução temporária de questões como a do período de convivência salutar, enquanto perdurar a pandemia do Coronavírus, assim como incidentes que surgirão sobre a verba alimentar devida, são indispensáveis o bom senso, a empatia, a proteção ao melhor interesse das crianças e adolescentes e, principalmente, a estipulação de concessões entre todos os envolvidos.
O que precisa ser mentalizado é que a situação de pandemia é temporária. Flexibilizar adaptações ao regime de convivência, em prol do bem estar de todos (principalmente das crianças e dos mais vulneráveis), é a medida que se impõe, para a solução mais branda e célere.
Aliás, essa é a tarefa não só de familiares, mas principalmente dos profissionais do Direito, que devem adotar postura colaborativa perante a sociedade como um todo, mediando a comunicação de modo a obter, em conjunto com os pais, alternativas inteligentes para cada circunstância, prevenindo litígios e desafogando o Poder Judiciário com questões nunca enfrentadas.
Com a colaboração de todos, enfrentaremos a atual e atípica realidade; por ora, a única certeza que temos é que o diálogo e outras formas de resolução de conflitos são as ferramentas mais valiosas diante das inusitadas situações e dúvidas que surgirão com o período de isolamento e decorrente dos efeitos nefastos da grave crise da saúde e economia em nosso país.
Adriana Grandinetti Viana, sócia do escritório ATPG Sociedade de Advogados, advogada do Núcleo de Família e Sucessões, mestre em Direito Processual Civil, especialista em Direito de Família, Negociação e Mediação, compõe a Comissão de Direito de Família da OAB/PR e a Diretoria do IBDFAM/Paraná, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil, Membro da International Family Law Association.
Andressa de Luca Kugler, sócia do escritório ATPG Sociedade de Advogados, advogada do Núcleo de Família e Sucessões, graduada em Direito pela Universidade Positivo (UP), especialista em Direito de Família pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), membro da Comissão de Direito de Família da OAB/PR.
Taíssa Albertina de Nadai, atuante no Direito de Família e Sucessões junto ao escritório ATPG Sociedade de Advogados, bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pós graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
[1] Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. (Redação dada pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua ( art. 1.584, § 5 o ) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 2º Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos. (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
(...)
§ 5º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos. (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014).
[2] Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016).
Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais. (Vide Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
§ 1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.
§ 2º Excepcionalmente, deferir-se-á a guarda, fora dos casos de tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos determinados.
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários.
§ 4 o Salvo expressa e fundamentada determinação em contrário, da autoridade judiciária competente, ou quando a medida for aplicada em preparação para adoção, o deferimento da guarda de criança ou adolescente a terceiros não impede o exercício do direito de visitas pelos pais, assim como o dever de prestar alimentos, que serão objeto de regulamentação específica, a pedido do interessado ou do Ministério Público. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
Art. 34. O poder público estimulará, por meio de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, o acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente afastado do convívio familiar. (Redação dadapela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
§ 1o A inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida, nos termos desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 2o Na hipótese do § 1 o deste artigo a pessoa ou casal cadastrado no programa de acolhimento familiar poderá receber a criança ou adolescente mediante guarda, observado o disposto nos arts. 28 a 33 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
§ 3o A União apoiará a implementação de serviços de acolhimento em família acolhedora como política pública, os quais deverão dispor de equipe que organize o acolhimento temporário de crianças e de adolescentes em residências de famílias selecionadas, capacitadas e acompanhadas que não estejam no cadastro de adoção. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)
§ 4o Poderão ser utilizados recursos federais, estaduais, distritais e municipais para a manutenção dos serviços de acolhimento em família acolhedora, facultando-se o repasse de recursos para a própria família acolhedora. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016).
Art. 35. A guarda poderá ser revogada a qualquer tempo, mediante ato judicial fundamentado, ouvido o Ministério Público.
[3] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[4] SOUSA, J. E. P. As famílias como projetos de vida: O desenvolvimento de competências resilientes na conjugalidade e na parentalidade. Saber (e) Educar. Porto: ESE de Paula Frassinetti, 2006. N. 11. P. 41-47.
[5] Ibidem.
[6]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/guarda-compartilhada-em-tempos-de-covid-19-22032020
[9] Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/03/20/guarda-compartilhada-visitas-pandemia/
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