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Família e casamento em evolução
Bertrand Russell
Primeiras palavras
Não se inicia qualquer locução a respeito de família se não se lembrar, a priori, que ela é uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos. Sabe-se, enfim, que a família é, por assim dizer, a história e que a história da família se confunde com a história da própria humanidade.
A respeito de qualquer sociedade que se mencione, arcaica ou recente, ocidental ou oriental, bem sucedida ou não, cuja trajetória tenha contribuído mais, ou menos, para a formação do arcabouço histórico de todo o ciclo que o ser humano desenha sobre a face da terra, enfim, a respeito de qualquer sociedade, dois pólos são sempre obrigatoriamente referidos, como essencialmente integrantes de sua conjuntura: o pólo econômico e o pólo familiar.
Alguma vez, a ênfase pendula para um dos pólos, em franco desprestígio do outro, e vice-versa. Alguma vez, o observador social refere melhor o aspecto econômico de uma sociedade – ou de parte temporal de sua construção – mas, em outra vez, referirá antes o paradigma da família, quando estiver intentando compreender e explicar as razões das mudanças comportamentais, ou de costumes, ou as sociais, ou as religiosas, ou quaisquer outras, enfim.
No que diz de perto à entidade familiar, acentuada é, sem dúvida, a sua influência nos desmoldes e reestruturações humanas de toda a sorte, especialmente quando se leva em conta a diversidade de sistemas que, ao longo da história da civilização, registraram e esculpiram os diferentes modelos de família.
Sempre importa, por isso, reconhecer o perfil evolutivo da família, ao longo da história, adequá-lo com o incidente social, econômico, artístico, religioso ou político de cada época, para o efeito final de se buscar extrair os porquês das transmudações, os acertos e os desacertos de cada percurso, a influência na consciência dos povos, sempre a partir do modus familiar e da relação efetivamente havida entre os seus membros, mormente entre o homem e a mulher.
Muitos – e muito diferentes – foram, portanto, os grupos familiares e os valores que os nortearam, sendo verdade que alguns destes valores talvez ainda se encontrem em voga nos dias atuais, quer pela sua normal eternização, quer por terem sido ressuscitados após lapsos temporais mais ou menos longos.
De resto importa constatar, desde logo, e ao que tudo indica, que há uma imortalização na idéia de família. Mudam os costumes, mudam os homens, muda a história; só parece não mudar esta verdade, vale dizer, a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família, este locus que se renova sempre “como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substutuída por qualquer outra forma de convivência social”.
Biológica ou não, oriunda do casamento ou não, matrilinear ou patrilinear, monogâmica ou poligâmica, monoparental ou poliparental, não importa. Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu âmago, se o de pai, se o de mãe, se o de filho; o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal.
A família e o casamento: confrontando passado e presente.
Sem dúvida, hoje, o modelo de família que prevalece é o modelo eudemonista, ou seja, o modelo pelo qual, cada um busca na própria família, ou por meio dela, a sua própria realização, seu próprio bem-estar.
A ampla diversificação de sistemas ou moldes de construção de grupos familiares, ao longo da história dos homens, é fato inegável; mas parece também ser inegável a verificação de que um ponto de semelhança resida na trilogia dos fatores que se responsabilizam, sempre, pela modificação dos costumes matrimoniais e, consequentemente, pelo perfil da família, quais sejam: o fator instintivo, o fator econômico e o fator religioso. Pode ser que apareçam isolados, cada um de per si, como pode ser que apareçam mesclados ou amalgamados, o que, aliás, me parece ser o mais comum.
Relativamente ao fator instintivo – segundo o enfoque de Russell – é, por todas as linhas, o mais estranho e curioso de todos eles, já que, às vezes, o que é instintivo para uma determinada sociedade, numa certa época, não é admissível para outra realidade, em outro tempo. Assim, por exemplo, relembra-nos o autor, “foi praxe comum não só entre selvagens, como entre raças relativamente civilizadas, o defloramento oficial das virgens (às vezes em público) pelos sacerdotes”. Com o advento do cristianismo, passou a ser “instintivamente” repugnante esta idéia de defloramento oficial, transferindo-se a prerrogativa do ato ao marido da virgem. E, como neste exemplo, outras situações são apontadas pela história como costumes oriundos do mero instinto humano, numa certa fase, ganhando foros, mais tarde, de verdadeiro absurdo ou de veemente rejeição pela família sucessora, no tempo. Registre-se, por curioso, o antigo hábito de se emprestar a esposa ao hóspede, como prova de cortesia e consideração, ou o costume da poligamia – ainda hoje vivenciado por algumas sociedades – com as variadas esposas convivendo pacificamente à volta de seu amado e senhor comum.
Mas, por outro lado, é possível notar, pela contemplação histórica destes fatores ou causas de transformação, que a mutação decorrente de fator de natureza religiosa muitas vezes acabou sendo mantida, se já não mais por força daquela motivação, mas porque passou a ser economicamente interessante que se a mantivesse. Assim, o fato de o cristianismo apregoar a virtude da mulher pela prática da fidelidade ao seu esposo, trouxe o benefício de afastar, para os homens, o medo da falsificação da descendência e o desconforto de alimentar quem não fosse seguramente seu filho.
Extremamente curioso, contudo, e a esse respeito, ainda, é a realidade dos habitantes das Ilhas Trobriand, relatada por Malinowisk , e segundo o qual, o sentimento de paternidade nada tem a ver com a verdade biológica e, por isso mesmo, o afeto e o cuidado que um homem melanésio dispensa a uma criança não se vinculam aos laços consangüíneos havidos entre eles, mas defluem, exclusivamente, da circunstância de serem, tais crianças, filhos do ventre de sua mulher amada. Na verdade, tais homens não conhecem o papel do pai na geração de filhos, já que acreditam que os espíritos é que são os responsáveis pela prenhez de suas mulheres, trazendo as crianças e “implantando-as” no ventre feminino. Por essa razão, e pelo fato, então, de que estes ilhéus não sabem que todos nós temos um pai, não é absurdo ocorrer a situação de um deles, ao voltar de uma viagem mais longa que um período gestacional, reagir contentíssimo ao nascimento de um bebê de sua mulher... Descomprometidos, desta maneira, com a verdade biológica, os ilhéus assumem para si, como verdade de alma, aquilo que para nós, povos cultos, é desenhado pelas cores da verdade cultural, vale dizer, a chamada presunção legal. Refiro-me à regra pater is est quem justae nuptiae demonstrant.
O que merece ser ressaltado, enfim, é o afeto sincero destes homens pelos filhos de suas mulheres, independentemente de estarem a eles ligados por qualquer liame de parentesco e independentemente de saberem que, ali, a descendência se identifica apenas pela linha feminina.
Nestas sociedades matrilineares, como é o caso deste grupo de habitantes das Ilhas Trobriand, concorrem portanto, de um lado, a certeza da maternidade e, de outro, a desbiologização da paternidade. Malinowisk descreve que se um homem ficar ao lado de sua mulher durante a gestação e o parto, este fato já é suficiente, de per si , para fazê-lo intuitivamente amar a criança e querer protegê-la, e que esta é a base do sentimento de paternidade, despindo-se-o, assim, de qualquer fundamento biológico.
Gosto particularmente deste modo de perscrutar o fenômeno da paternidade, perfeitamente aplicável, também, à maternidade por adoção. Apraz-me, convincentemente, posição como esta, de João Baptista Villela, quando afirma: “A verdadeira paternidade não é um fato da biologia, mas um fato da cultura. Está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen”.
Mas, enfim, não são em número avolumado os exemplos de sociedades matrilineares, sendo verdade, então, que o reconhecimento do fato fisiológico da paternidade é o principal motivo da criação e proliferação das denominadas sociedades patriarcais.
Nestas sociedades, o homem, pai e marido, ocupa a figura central do núcleo, da autoridade e do poder, a ele competindo pois, exclusivamente, a direção da família. Este homem, com este perfil sociológico, orgulha-se de reconhecer a criança como a sua semente, o que oportuniza um sentimento de paternidade efetivamente biologizado, ou seja, originando um afeto que tem como fonte o fato da certeza fisiológica da paternidade. Sob este suporte, a própria Bíblia descortina o fenômeno do amor paterno, por “premiar” o pai amoroso e cuidadoso com a promessa de prolongamento da estirpe e, consequentemente, da hipótese sequencial de suas próprias realizações. A filiação legítima, assim vista, é a continuação do ego paterno, o que talvez permita concluir que, em certas vezes, o afeto pela criança é uma forma de egoísmo.
Sob tal regime, mulher e prole ocupavam lugar sem qualquer destaque, no seio familiar, cada qual com seus menores papéis bem definidos e com seus projetos pessoais bem sepultados, já que a finalidade essencial de tais famílias residia justamente na hipótese de sua continuidade. Esta primordial finalidade, como se aferiu antes, resultava claramente na busca da certeza biológica da filiação, que a tudo superava, inclusive o amor. A supremacia desta certeza de tal forma se enraizou na personalidade masculina do chefe de família que lhe vedou – e, por isso, à própria sociedade – a chance não recuperável de apreender uma eficiente e útil participação da mulher do passado no delinear dos contornos sociais e familiares.
Assim, “o amor, como relação entre homens e mulheres, foi estragado pelo desejo da certeza da legitimidade dos filhos”, o que promoveu, como conseqüência, a sujeição da mulher como “único meio” de garantir sua virtude. Com isso, “sofreu não apenas o amor, como toda a contribuição que as mulheres tivessem podido dar à civilização”...
Felizmente hoje, no meu sentir, o panorama mostra-se bem outro. Admitam, os senhores, por breve momento, que eu antecipe conclusões comparativas do passado com o presente. Hoje, as relações de afeto parece que caminham à frente nos projetos familiares e, por isso, conduzem à assunção da responsabilidade pela constituição das famílias, bem assim como podem conduzir à interrupção do casamento ou da união estável, garantindo a cada um de seus membros, em princípio, o direito à recuperação ou reformulação de seu projeto pessoal de felicidade, mantida a responsabilidade original, em face daqueles que ainda se encontram em liame de dependência.
Mas, mesmo sob tão mais moderno traço, é bastante curiosa a manutenção, no patriarcal Código Civil Brasileiro – e mesmo após a revolucionária evolução constitucional de 1988 – da regra inserta no art. 340, que opera a presunção legal de paternidade, pela qual o filho de mulher casada tem por pai o marido de sua mãe. Não registro o meu espanto tanto pela manutenção da presunção-princípio, eis que, pessoalmente, entendo que o interesse que se procura ver preservado, por força de tal presunção, seja o interesse do filho. E, então, comovo-me. Mas registro meu desconforto pelo fato de não ser sempre esta a inspiração que fundamenta a hipótese da referida manutenção!
De mais a mais, não seria interessante argüir se o interesse jurídico do filho não estaria melhor garantido se não lhe fosse – digamos assim – falseado o fato de sua verdadeira origem, encoberta esta pela parêmia samaritana, protetora exclusiva, talvez, do casamento e da “honra” do marido? Não estaria a presunção de que se fala, ao contrário da dicção do legislador, ou do espírito da norma, metamorfoseando-se apenas como mais um odioso obstáculo ao exercício do direito de personalidade, inscrito no coração de cada um de nós, de podermos buscar, se quisermos, a nossa identidade biológica, a nossa identidade genética? Deixo a indagação à deriva, para consideração no futuro, quiçá.
Fechado o parênteses solicitado, retorno ao aspecto inicialmente proposto à nossa reflexão, que versava sobre algumas ligeiras incursões nos sistemas de formação de núcleos familiares.
A evolução dos costumes, em face da diversa necessidade humana a cada época, nos informa que a família pôde se apresentar, neste cenário, com roupagem diferenciada, ela também. Desta maneira, reconhece-se, por exemplo, entre os diferentes modelos familiares – diferentes no que respeita à origem ou à própria estrutura de composição – a família matrimonial, a família comportamental, a família concubinária, a família monoparental e a família homossexual. Esta dissimilitude de modelos revela, rigorosamente, que a família deva mesmo ser considerada como um “grupo espontâneo de pessoas – constituído por pai, mãe e filhos – acolhidos em uma determinada época histórica pela sociedade daquele tempo”, conforme bem refere Villaça Azevedo, apoiado em Pugliatti.
O mais tradicional dos modelos, o da família matrimonial, resulta exatamente daquela concepção patriarcal de família a que antes referia, traduzindo uma estrutura familiar dominada pelo varão, sob o jugo de quem gravitavam todos os demais membros, incluindo a mulher, cuja virtude monogâmica era mantida, na maior parte das vezes, por força desta subjugação marital. Enfim, o casamento exerceu na estrutura familiar o papel formador fundamental, mas exerceu, também, o papel máximo de ser sua própria segurança, garantindo, assim, a sua eternização.
Tipos e formas bastante variados de casamento são registrados nos tratados de história, de sociologia, de antropologia e nos de cunho jurídico, a nos relatar distintos tempos, distintos povos, distintos rituais ou procedimentos, como por exemplo, o casamento por rapto, o casamento por compra ou troca, o casamento consensual – religioso ou civil – este último caracterizando época histórica mais recente. Mas ao se buscar formas ainda antigas de matrimônio, entre os ancestrais romanos, encontraremos tipos bastante curiosos neste modelo que se pode denominar casamento por compra ou troca, como por exemplo, a coemptio, que consistia na venda simbólica da noiva ao noivo, de forma ritual, ou a confarreatio, que consitia numa celebração solene, de natureza religiosa, na qual se ofertavam, aos noivos, o panis farreus, na presença de dez testemunhas. Ou, ainda, como antiga modalidade romana, o casamento cum manus, espécie de casamento pelo usus, que se consolidava pelo usucapião, salvo se a conivência fosse interrompida pela usurpatio trinoctii, isto é, se a mulher passasse três noites fora de casa, provocando, assim, o divórcio, pois seria repudiada pelo marido.
A família matrimonial – do passado ou do presente – teve sua formação, pois, centrada no casamento, fosse ele de que tipo ou modelo fosse, ao longo dos séculos. Sobrevive, ainda hoje. É, apesar de certo desprestígio que já experimenta, o modelo mais repetido, ainda, embora sua motivação moderna já não seja mais, como no passado, exclusivamente econômica, mas se revele como uma motivação de natureza afetiva. No interessante modo de dizer de João Baptista Villela, “a família é atualmente menos uma instituição procreativa do que uma instituição recreativa.” Ou, no dizer de Eduardo Oliveira Leite, foi uma decisão dos jovens a de “substituir um sistema de valores centrado na fidelidade à cadeia de gerações e às responsabilidades perante a coletividade, por um sistema de valores exaltando a felicidade e o desenvolvimento pessoais”. (g.n.)
Apesar desta nova e tão surpreendentemente aperfeiçoada forma de se conceber a família, na atualidade, importa registrar que o modelo moderno não advém, exclusiva e obrigatoriamente do casamento. Aliás, nem podia ser. Se o paradigma contemporâneo mais tem a ver com as razões de fundo subjetivo, como o amor e a busca da felicidade, este pressuposto não se confina a arquétipos pré-estabelecidos, pois que é grande demais e livre demais para enclausurar-se.
A lucidez de pensadores nacionais do passado, como por exemplo Virgílio de Sá Pereira, já previam estas considerações de agora, quando escreveu páginas que se tornaram clássicas, com antecipações audaciosas para o seu tempo, como estas, para citar algumas: “A família é um fato natural. Não na cria o homem, mas a natureza. (...) O legislador não cria a família, como o jardineiro não cria a primavera. Fenômeno natural, ela antecede necessariamente ao casamento, que é um fenômeno legal, e também por ser um fenômeno natural é que ela excede à moldura em que o legislador a enquadra”. “Agora dizei-me:” – prossegue ele – “que é que vedes quando vedes um homem e um mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é o fruto de seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, com a sua lei, ou o padre, com o seu sacramento? Que importa isto? O acidente convencional não tem força para apagar o fato natural.” E, mais adiante, arremata o jurista sensível e culto: “De tudo que acabo de dizer-vos, uma verdade resulta: soberano não é o legislador, soberana é a vida. Onde a fórmula legislativa não traduz outra cousa que a convenção dos homens, a vontade do legislador impera sem contraste. Onde porém ela procura regulamentar um fenômeno natural, ou o legislador se submete às injunções da natureza, ou a natureza lhe põe em cheque a vontade. A família é um fato natural, o casamento é uma convenção social. A convenção é estreita para o fato, e este então se produz fora da convenção. O homem quer obedecer ao legislador, mas não pode desobedecer à natureza, e por toda a parte ele constitui a família, dentro da lei, se é possível, fora da lei, se é necessário.”
Tinha bem ele razão, tanto é verdade que se assistiu, especialmente nesta segunda metade do presente século , por toda a parte, mas também no Brasil, a uma espécie de surto de transformações no tradicional arcabouço jurídico de nosso sistema civil, instalando-se o fenômeno de se poder ver “o individualismo cedendo ao personalismo ético como valor político-social fundante e legitimador”.
Este, digamos, surto de transformações ocorreu, de modo significativamente contundente, na estrutura sócio-jurídica do Direito de Família, de sorte que estes direitos passaram a ser tidos e entendidos como direitos fundamentais, constitucionalmente protegidos. As alterações, nesta sede, passaram pela igualdade entre homem e mulher, pela igualdade entre filhos de qualquer origem, protegidos sem discriminação, pela união estável como entidade equiparada ao casamento e, enfim, pela família como cerne da sociedade.
Estes quatro grandes plexos de profunda transformação, no Direito de Família, se revelam sempre como reflexo da significativa – e cada vez mais crescente – participação da mulher na organização da família, da sociedade, da própria vida. Por ter paulatinamente conquistado lugar de destaque no mercado de trabalho e no desempenho de atividades intelectuais e sofisticadas, antes apenas atribuíveis ao homem, a mulher revelou poder ser esta sensível mola de impulsão às transformações antes alinhavadas, alterando intensivamente o perfil da família no tempo em que se prepara o mundo para transpor o limiar de mais um milênio. Sua sensibilidade e força de trabalho, sua disposição para atuar em face à vida exatamente como seu sócio de jornada – o homem – o faz, deram ao novo panorama que se descortinava as cores de uma família nova, menos patriarcal, menos unilateral e, por isso, mais justa, pelo fato de admitir, a cada um de seus membros, não só a definição de seu papel mas também a alegria da congregação final dos interesses, tendo por escopo, enfim, a realização do grande projeto familiar.
Pessoalmente desdenho as conclusões a que chegam alguns, aqui e ali, de que esta transformação não seja propriamente sadia e, por isso mesmo, ideal, uma vez que, fundada na idéia de igualdade entre homem e mulher, na verdade não estaria a produzir exatamente um complexo de igualdades, mas, quiçá, estaria tão apenas consolidando, invertidamente, um bloco de desigualdades como nunca se viu!! Espanta-me e martiriza-me muito ouvir falar nesta, digamos, “filosofia da opressão do ex-oprimido”, ou, “política de discriminação por parte de quem hovera sido, ancestralmente, discriminado”... Peço desculpas pela sinceridade e até pela ausência de freios, mas devo advertir que conclusões assim só devem partir mesmo de quem não conheça profundamente a mulher... E é uma grande pena que alguns ainda não a conheçam!
De qualquer modo, convém realinhar a atenção na evolução da família, em face de distintas formas pelas quais se pode ver, agregados, um homem, uma mulher e suas crianças. Convém assim, retomar o elo antes disponibilizado e que esteve a demonstrar que uma família, fato da natureza que é, se forma também por outros moldes que não exclusivamente aquele desenhado pelo legislador.
Esta forma de constituição da família, derivada especialmente da mais natural forma de se amarem e de se envolverem um homem e uma mulher, se revela como sendo aquela em que a opção é a mais livre possível; quero dizer, vivem, assim, livremente jungidas aquelas pessoas que optam por não casar, embora não impedidas legalmente de fazê-lo.
Haverá um momento de maior desnudamento ou de deslumbramento da alma e de seus anseios do que este em que, livres, os que se amam optam por apenas conviver, dividir seus sonhos, criar seus filhos, a prova viva do sentimento forte que não se afirma ou reafirma por meio de amarras sociais ou legais? Creio que não, embora não possa pessoalmente afirmá-lo, pois o paradigma matrimonial e familiar de minha própria vida é aquele que se aperfeiçoa conforme os moldes civis, do qual falávamos há pouco.
A verdade é que as relações livres, na constituição das famílias, não se conformam como novidade dos dias contemporâneos, nem representam a imagem da conspurcação, como pretendem os ultra legalistas ou moralistas. Ao contrário, revelam-se como o que existe de mais natural e atavicamente antigo, pois será a conduta, o modo de ser e de agir dos companheiros que determinará a existência de “casamento” – entre aspas e em sentido amplo – havido entre duas pessoas.
Apesar de real e justa a conclusão, a verdade é que nos custou muito, na época em que vivemos, obter o passaporte da aceitabilidade e o alvará da respeitabilidade para estas uniões livres, às quais, na atualidade, tem se convencionado denominar união estável.
A Constituição Federal de 1988, como tão bem se sabe, dez anos passados de sua promulgação, produziu importante concessão – até então não visualizada nem pela Carta nem pelo direito anterior – ao admitir que a família deixasse de ter como pressuposto exclusivo de sua constituição o casamento, abrindo, enfim, as portas legais para a contemplação da união estável, ao lado do matrimônio civil, como fontes viáveis e reconhecidas de gênese familiar. É claro que a Constituição, embora inovadora e embora corajosa, não o foi em suficiente grau para deixar de empregar o qualificativo estável – expressão esta que atormenta até hoje os intérpretes e aplicadores do direito – e para deixar de recomendar a mais inútil de todas as inutilidades, vale dizer, a advertência de que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento... Até hoje me pergunto o que teria realmente querido dizer o legislador!
A esse respeito, e à guisa de reforço à antipatia que deixo transparecer em minhas palavras, reescrevo, em parte, o pensamento de João Baptista Villela. Diz ele: “Em sua crônica obstinação de navegar na contracorrente da história, o Brasil insiste em impor normas para tudo, quando a consciência dos novos tempos e a superação de paradigmas positivistas apontam para a desregulamentação. O par que opta por não se casar (...) é porque, definitivamente, não se quer pôr sob o regime que a lei estabelece (...). Portanto, haveria que deixá-lo em paz, vivendo seu próprio e personalíssimo projeto de vida amorosa.” Mas não. E prossegue ele: “O delírio normativista do Estado traduz-se, por assim dizer, em casar ex officio quem não quis casar motu proprio. (...) É um erro primário supor que as pessoas que mantinham entre si uma convivência amorosa à margem do casamento civil, vivessem sob regime de completa anomia. Não viviam! (...) Quem, podendo casar, prefere a união livre deveria ter o direito de viver segundo suas próprias regras e não segundo aquelas que deliberadamente rejeitou.”
De qualquer forma, e enfim, aplaudo a iniciativa do legislador constituinte de ter carreado, para o bojo da Lei Maior, a proteção – ainda que tardia – às relações matrimoniais de fato.
Sob o nome de casamento por comportamento – conforme a proposta de Jussara Ferreira – devo referir-me, ainda, a esta outra forma consorcial de formação da família, que se instala entre a união estável e o casamento civil, e na qual – desde o início da convivência e independentemente de qualquer celebração, ainda que simplesmente ritual – se estabelece, presumidamente, o casamento. Em face desta nova espécie de congraçamento matrimonial – distanciada das uniões fáticas porque estas não adentram à esfera do Direito pelo casamento, e distanciada do próprio casamento porque não é solene, mas é simplificada a sua forma constitutiva – observa-se esta sua notável e exclusiva característica que é a de se apresentar como um casamento presumido, conversível em justas núpcias por um simples registro, absolutamente despojada de tanto rigor e solenidade no que diz respeito à celebração, tudo isto tão ao gosto brasileiro, conforme expõe a autora da proposição e da proposta de regulamentação, pois esta forma ainda não se encontra disponibilizada entre nós, a par de sua grande importância e utilidade.
Aqui, senhores, volto àquele enfoque de pouco antes, em que – por assim dizer – “metralhava” a Constituição Federal no momento em que ela, revelando uma aplestia de natureza angelicalmente protetiva, formatava a “pérola” da facilitação da conversão da união estável em casamento... E retomo o assunto, para deixar flutuando esta indagação: por que é que o Estado, ao querer impor a regra em assunto que não lhe interessa, não se apressa na regulamentação deste modelo conhecido em tantos outros países, que é o modelo do casamento por comportamento? Regulamentado, não parece aos senhores que estaria o Estado oferecendo a chance legitimadora, advinda da regulamentação, àqueles que se enquadrassem na expectativa do legislador constituinte e que desejassem dar à sua união os contornos do matrimônio civil, expurgado o rigor da celebração solene? Tenho para mim que é um bom assunto para se pensar, especialmente se estivermos em perfeita sintonia com as recomendações das autoridades contemporâneas no assunto, como por exemplo, Rodrigo da Cunha Pereira, que na folha de introdução de seu livro “Direito de Família: uma abordagem psicanalítica” adverte: “É preciso demarcar o limite de intervenção do Direito na organização familiar para que as normas estabelecidas por ele não interfiram em prejuízo da liberdade do ser sujeito.”
Bem.
Talvez ainda fosse útil que nos referíssemos, ao menos de passagem, às duas outras modalidades de família antes mencionadas, quais sejam, a família monoparental e a família homossexual, a primeira prevista pela própria Constituição Federal Brasileira e, a segunda, ainda muito distante, ao que tudo parece indicar, de se tornar viável a sua admissão, entre nós.
Quanto à família monoparental, extrai-se constitucionalmente, como se disse, a sua noção, para sabê-la como sendo a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, como entidade familiar. O novel instituto instituiu esta modalidade unilinear de família, desconectada da noção de casal, e demonstrando haver, efetivamente, uma entidade familiar reconhecida, nesta comunidade formada por um dos pais e sua prole.
A respeito dela, vale a pena reproduzir expressivo texto de Eduardo Oliveira Leite, que é o seguinte: “Tal opção, outrora considerada marginal, tornou-se freqüente, justificando uma atitude não mais reticente por parte da sociedade e da própria lei. Outros modos de conjugalidade, que não o casamento, surgiram, demarcando a crise do casal: casa-se menos, vive-se mais em uniões fáticas e há um forte crescimento de indivíduos vivendo sós.”
A respeito da denominada família homossexual, registre-se a existência de um projeto em trâmite, de autoria da deputada Martha Suplicy, que busca disciplinar uma nova modalidade de entidade familiar formada pela união civil entre pessoas do mesmo sexo. Certos direitos oriundos de uniões homólogas, todos eles de natureza patrimonial, principalmente, já vêm sendo reconhecidos pela admissão jurisprudencial. Apesar disto, e como é amplamente sabido e repetido, o eventual e futuro reconhecimento de uniões que tais, como entidades familiares, deverá certamente percorrer, ainda, um caminho árduo e preconceituoso, cujo sucesso não pode ser objeto, hoje, de um prévio diagnóstico.
Mas enfim, e como arremate deste plano expositivo em que estamos centrados, haveremos que concordar com as conclusões de Francesco Prosperi que se refere a um certo gosto pelo paradoxo, em matéria de Direito de Família, pois que, se de um lado tanta crítica há ao tradicional modelo matrimonial civil de constituição da família, por se revelar, este modelo, como retrógado, superado e alienante, por outro lado, curiosamente, passa a se operar, num tal atropelo como se em um arremedo contemporâneo de uma torre de babel, esta compulsão legislativa e regulamentadora do paradigma inverso, as uniões livres!! Curioso, sem dúvida.
É certo que o autor referido, em seus comentários, ameniza o impacto, demonstrando acreditar que a “contradição é apenas aparente; reflete, na verdade, uma crise não da instituição, mas da forma histórica assumida pela família contemporânea.”
Família e casamento: o núcleo familiar contemporâneo e a assunção constitucional dos novos modelos.
Parece não restar dúvida enfim, em cultura como a nossa, de que o núcleo familiar que se descortina contemporaneamente, mostra-se “desintoxicado” do rigor – quase obrigatório – da legitimidade. O modelo do legislador já não se oferta como “único” ou “melhor”, mesmo porque o descompasso gravado entre ele e a multiplicidade de modelos apresentados na “vida como ela é”, de tão enorme, já não admitia a sobrevivência de outra saída que não esta, adotada, enfim, pelo legislador pátrio, de constitucionalizar relevantes inovações, entre elas, e principalmente – para o quanto nos incumbe, hoje – a desmistificação de que a família só se constituísse a partir do casamento civilmente celebrado; a elevação da união livre, dita estável pelo constituinte, à categoria de entidade familiar; a consequência lógica de que, por isso, a união estável passou a realizar, definitivamente, o papel de geratriz de relações familiares, ela também; a verificação de que efeitos distintos, além dos meramente patrimoniais, estão plasmados nestas outras – e constitucionalmente regulamentadas – formas de constituição da família, hoje.
Senhores, eis o que houve: A lei se viu afrontada pelos fatos e não se atreveu ignorá-los, por mais tempo. Vale dizer, a verdade jurídica cedeu vez à imperiosa passagem e instalação da verdade da vida. E a verdade da vida está a desnudar aos olhos de todos, homens ou mulheres, jovens ou velhos, conservadores ou arrojados, a mais esplêndida de todas as verdades: neste tempo em que até o milênio muda, muda a família, muda o seu cerne fundamental, muda a razão de sua constituição, existência e sobrevida, mudam as pessoas que a compõem, pessoas estas que passam a ter a coragem de admitir que se casam principalmente por amor, pelo amor e enquanto houver amor. Porque só a família assim constituída – independentemente da diversidade de sua gênese – pode ser mesmo aquele remanso de paz, ternura e respeito, lugar em que haverá, mais que em qualquer outro, para todos e para cada um de seus componentes, a enorme chance da realização de seus projetos de felicidade.
Obrigada.
* Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora-Doutora, de Direito Civil, da Faculdade de Direito da USP.
1. Gustavo Tepedino, “Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio” in “Temas de Direito Civil, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1999, p.326.
2. Conforme refere João Baptista Villela, citando a socióloga Andrée Michel (“Modèles sociologiques de la famille dans les sociétés contemporaines”, in Archives de Philosophie du Droit, 131, 1975), na entrevista denominada “Família hoje”, publicada na obra coletiva “A nova Família: problemas e perspectivas”, organizada por Vicente Barreto, ed. Renovar, Rio de Janeiro.
3. Bertrand Russell, “O casamento e a moral”, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1956, trad. de Wilson Velloso, p.15.
4. Citado por Bertrand Roussell, op.cit., p.17 e ss.
5. João Bapista Villela, “Repensando o Direito de Família”, na edição de igual nome, Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família, IBDFAM/ OAB-MG , Belo Horizonte, 1998.
6. Bertrand Roussell, ob.cit., p. 22.
7. Idem, ibdem, p. 23.
8. Sobre tais modelos, conferir a obra de Rui Geraldo Camargo Viana, denominada “A Família e a Filiação”, tese apresentada à obtenção do grau de Professor Titular de Direito Civil, na Faculdade de Direto da USP, em 1996.
9. Álvaro Villaça Azevedo, “Do concubinato ao casamento de fato”, CEJUP, 1987, p.
10. A respeito, v. Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira, “Casamento por comportamento”, Forense, Rio de Janeiro, 1990.
11. Joáo Baptista Villela, “Família hoje”, entrevista publicada na obra “A nova Família: problemas e perspectivas”, organizada por Vicente Barreto, ed. Renovar, Rio de Janeiro.
12. Eduardo Oliveira Leite, “Temas de Direito de Família”, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1994, p. 18, citando Edward Shorter (Naissance de la famille moderne).
13. Virgílio de Sá Pereira, “ Lições de Direito de Família”, Ed. Freitas Bastos, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1959, p. 89.
14. Idem, ibdem, p. 90.
15. Idem, ibdem, p. 95.
16. Cf. Francisco Amaral, “Direito Constitucional: a eficácia do Código Civil Brasileiro, após a Constituição Federal de 1988”, in “Repensando o Direito de Família”, Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família, IBDFAM/ OAB-MG , Belo Horizonte, 1998, p. 313.
17. João Baptista Villela, op.cit., p.s80 a 83, principalmente.
18. Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira, op.cit.
19. Conferir em Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira, op.cit. (ps. 17 e 18, especialmente).
20. Rodrigo da Cunha Pereira , “Direito de Família: uma abordagem psicanalítica”, Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1997.
21. Consulte-se, como fonte de maiores esclarecimentos, Eduardo Oliveira Leite, “A família monoparental como entidade familiar”, in “Direito de família: aspectos constitucionais, civis e processuais”, vol.2, coord. Teresa Arruda Alvim Wambier, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, ps. 44 a 70.
22. Eduardo Oliveira Leite, idem, p.48.
23. Francesco Prosperi, “La Famiglia non fondata sul matrimonio”, referido por Gustavo Tepedino, na já citada obra “Temas de Direito Civil”, p. 326.
24. Conforme o registro de Gustavo Tepedino, ob.cit., p. 326.
25. Para aprofundar este assunto, v. Silvana Maria Carbonera, “O papel jurídico do afeto nas relações de família”, in “Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo”, coord. Luiz Edson Fachin, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1998, p.273 e seguintes.
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