Artigos
Guarda compartilhada em tempos de pandemia de COVID-19
Guarda compartilhada em tempos de pandemia de COVID-19
Por Isabel I. Z. Doria[1]
Acordos e sentenças de guarda compartilhada costumam estabelecer um regime de convivência que distribui de modo equilibrado o tempo que cada genitor passa com seu filho. Em tempos de normalidade, as crianças e adolescentes se revezam entre a casa do pai e da mãe, passando uma parte da semana com cada um.
Porém, devido ao atual cenário de pandemia de coronavírus, causador da COVID-19, estamos vivenciando uma excepcionalíssima situação de quarentena, na qual a orientação geral é ficar em casa para evitar o contágio ou a propagação da doença. No Brasil, inclusive, alguns governadores já adotaram medidas bem severas para a contenção da transmissão do coronavírus, as quais incluem suspensão das atividades escolares, imposição de teletrabalho à servidores e até fechamento do comércio.
Diante desse cenário de restrições, cautelas e incertezas, é natural que as pessoas comecem a se questionar sobre a viabilidade da manutenção do compartilhamento da convivência do modo que está previsto no acordo ou na sentença de guarda compartilhada. Poderia a criança continuar transitando livremente entre a casa de seus genitores em tempos de quarentena? Poderia um genitor ser impedido de conviver com seu filho caso esse pai ou essa mãe esteja como os sintomas da doença ou tenha sido exposto(a) ao vírus? O presente artigo busca responder a esse e a outros questionamentos relacionados ao tema da guarda compartilhada em tempos de pandemia de coronavírus.
Possibilidade de suspensão compulsória do direito de convivência dos pais com seus filhos
O direito das crianças e dos adolescentes à convivência familiar é um direito fundamental, previsto no art. 227 da Constituição Federal de 1988, que é a lei maior do nosso país. Entretanto, esse mesmo artigo também prevê que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à saúde, sempre colocando-os a salvo de toda forma de negligência.
O tema da suspensão compulsória da convivência em razão da COVID-19 aparentemente coloca em conflito dois direitos fundamentais. Por um lado, a criança tem assegurado pela Constituição o direito à convivência familiar, especialmente com seus pais. Por outro, cabe a ambos os pais, ao Estado e à sociedade preservar a saúde das crianças, com absoluta prioridade.
Como nenhum direito fundamental deve se sobrepor totalmente a outro, sempre deve ser buscada uma solução que, na medida do possível, respeite ambos os direitos. A partir desse raciocínio, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou o afastamento, por 15 dias, do convívio de um pai com a sua filha de dois anos de idade, em razão de ele ter acabado de retornar de um país onde o contágio da doença já estava consideravelmente disseminado.
Ao decidir pelo afastamento compulsório temporário, o Tribunal preservou a saúde da criança, evitando que ela tivesse contato com uma pessoa com reais suspeitas de ter contraído o vírus. Mas a corte de São Paulo também foi razoável ao estabelecer que o afastamento não se prolongasse por mais tempo do que o necessário.
A medida de afastamento compulsório é, portanto, possível e até recomendável quando a convivência apresentar real risco à saúde da criança. Todavia, o afastamento deve ser encerrado assim que houver condições para a retomada do convívio.
Impossibilidade de cumprimento dos termos da convivência em razão das mudanças de rotina impostas pelas autoridades
Diversos acordos e sentenças de guarda compartilhada têm suas regras de convivência norteadas pela rotina escolar das crianças. Com as aulas suspensas e os pequenos fora da escola, os pais precisam “se virar” para não deixar as crianças sozinhas e desassistidas em casa enquanto trabalham. Mesmo para quem tem a opção de trabalhar de casa, em esquema de homeoffice ou teletrabalho, são notórias as dificuldades de se trabalhar com a criançada presa em casa o dia todo. Na prática, muitas crianças acabam sendo mandadas para a casa dos avós, o que não é recomendado sob o ponto de vista médico, pois os idosos estão mais susceptíveis a desenvolver sintomas graves da COVID-19.
De acordo com o art. 1.853 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), “na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos”. Logo, para lidar com essas mudanças de rotina impostas pela pandemia, recomenda-se que os pais definam, consensualmente, um regime de convivência específico para esses tempos de quarentena, sempre pensando no melhor interesse das crianças. Uma sugestão é aplicar, durante esse período, as regras que já foram decididas para o período de férias escolares.
Independentemente do arranjo que for proposto, o mais importante é que os pais sejam extremamente responsáveis. Se, por exemplo, um dos pais morar junto com uma pessoa do grupo de risco (idosos, diabéticos, pessoas portadoras de doenças pulmonares ou cardíacas), evidentemente não será prudente estabelecer um regime de convivência que faça com que a criança fique constantemente se revezando entre as casas dos genitores, especialmente se houver necessidade de utilização do transporte público para se fazer o traslado.
De toda forma, enquanto estiverem longe, os genitores podem e devem exercer o direito de manter uma convivência “virtual” com seus filhos, por meio de plataformas como Skype, WhatsApp, Hangouts, a fim de manter o equilíbrio recomendado pelo referido artigo 1.853 do Código Civil.
Mas e se um dos genitores injustificadamente impedir a convivência dos filhos com o outro genitor?
De acordo com o § 4º do artigo 1.854 do Código Civil, “a alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda compartilhada” pode ter como consequência a redução de prerrogativas atribuídas ao genitor que assim proceder. Portanto, medidas drásticas, como afastar forçadamente um filho de um de seus genitores, apenas devem ser adotadas quando a manutenção da convivência apresentar risco real à saúde da criança.
O “excesso de zelo”, por si só, não deve justificar o rompimento da convivência de uma criança com um de seus pais. Vale lembrar que atitudes como “dificultar o contato de criança ou adolescente com um de seus genitores” ou “dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar” podem, inclusive, ser consideradas como prática de atos de alienação parental nos termos da Lei nº 12.318/2010.
Portanto, caso os genitores discordem sobre a necessidade de suspensão da convivência com um deles, caberá ao Judiciário, em última instância, dirimir a controvérsia, conforme previsão do art. 1.586 do Código Civil. Apesar de o Judiciário estar funcionando apenas em esquema de plantão, a Justiça continuará apreciando as causas urgentes, conforme determina a Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 313, de 19 de março de 2020. Antes de se recorrer ao Judiciário, porém, é recomendável que os pais busquem alternativas extrajudiciais para a solução do conflito, sendo a mediação uma excelente ferramenta de solução pacífica da controvérsia.
A solução é ter bom senso!
Não é razoável esperar que um acordo ou uma sentença de guarda compartilhada preveja cláusulas específicas para situações de pandemia. Também não existe, no Brasil, uma previsão legal específica que defina como os pais separados devem agir em momentos de quarentena forçada.
A falta de regras pré-definidas, no entanto, não impede que os pais tenham bom senso e estabeleçam uma rotina que preserve o melhor interesse dos filhos em tempos de pandemia. Nas palavras do advogado, mestre e doutorando Ricardo Calderón, “recomenda-se a todos os familiares que ajam com serenidade, equilíbrio e bom senso neste grave período de crise epidemiológica, procurando sempre encontrar uma solução harmoniosa que priorize e respeite o melhor interesse dos seus próprios filhos, sem que seja necessário recorrer à justiça para resolver eventual litígio decorrente dos riscos do Covid-19”.
Responsabilidade e bom senso é o que se espera das famílias nesses momentos de crise.
[1] Isabel I. Z. Doria é advogada, especializada em Direito de Família e Sucessões e sócia do escritório Torreão, Machado e Linhares Dias Advocacia e Consultoria (https://tmld.com.br/advogados-e-equipe/isabel-izaguirre-zambrotti-doria/).
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM