Artigos
Relacionamento Abusivo: o Coronavírus do Direito de Família
Relacionamento Abusivo: o Coronavírus do Direito de Família
Lucas Marshall Santos Amaral
Advogado. Mestre em Direito pela PUC/SP.
Especialista em Direito de Família e Sucessões pelo Damásio Educacional.
Dentre tantas situações desafiadoras que o mundo já enfrenta, uma delas vem ganhando destaque nos últimos dias: o coronavírus e tudo o que decorre dele (economia, rotina geral dos países, etc.). Porém, não podemos nos esquecer de que a vida segue, ao menos naquilo que não é possível suspender ou realocar, como ocorre com o trabalho, viagens, estudos, e várias outras atividades cotidianas. E dentro desse caos mundial, uma das realidades que certamente seguirá, inclusive intensificada, é a das relações familiares. Os crescentes isolamentos impostos pelas nações farão com que as famílias voltem a conviver grandes períodos conjuntamente, debaixo do mesmo teto, o que é motivo de alegria para muitos (as), mas de desespero para outros (as).
Para alguns, o lar é um refúgio e centro de paz, aquele local onde não se vê a hora de chegar após um longo dia de trabalho. Porém, a quem não tem essa felicidade, ele se torna verdadeiro sinônimo de tortura e desespero, de maneira que são preferíveis incessantes horas de trabalho, a ter que ali retornar ao fim do dia. E a razão disso não é novidade, nem muito menos surpreendente. Trata-se de assunto sério e antigo, que mata e adoece mais que pandemia viral: os relacionamentos abusivos nas relações familiares.
Enquanto os olhos do mundo se direcionam somente às diversas possíveis soluções ao coronavírus, concomitantemente outro mal também se alastra nos leitos. E não são nos leitos de hospital, mas sim nos próprios residenciais. Evidente que é sabida a dimensão do COVID-19 e sua importância, mas aqui se faz apenas uma analogia para chamar atenção a essa imensurável celeuma que não dorme, e que, diferentemente de pandemia viral, não tem prazo para acabar. Já foram feitas leis, políticas públicas, programas de conscientização, e tal enfermidade social insiste em permanecer presente.
Segundo levantamento feito em março de 2019 pelo G1[1], o Brasil teve 4.254 homicídios dolosos contra mulheres no ano de 2018, sendo que, deste total, 1.173 são feminicídios (crime motivado pelo fato de a vítima ser mulher). Outra estatística desta década, agora apontada pelo Instituto Maria da Penha, mostra que “a cada 2 minutos 5 mulheres são violentamente agredidas” [2].
Ou seja, enquanto todas as pessoas estacionam para contar um a um os casos de uma doença que de fato está merecendo atenção, outra problemática social segue alarmante, e com relevância considerável. De modo algum este escrito tem o escopo de criticar ou requerer desatenção com o coronavírus, mas tão somente aproveitar sua veemente notoriedade, para equipará-lo a algo que é secular, e infelizmente não tende a acabar nos próximos anos – em especial se nada for efetivamente feito, não só pelo Estado, mas pela população em geral, que é responsável por cuidar se si mesma e de todos os seus integrantes, sem exceção.
Após muitas lutas, atualmente o Brasil possui instrumentos para ajudar a conter essa “pandemia” criminosa, que são os relacionamentos abusivos e consequentes violências domésticas nas mais diversas formas de família – realidade que inclusive é presente em todo o mundo.
O governo Federal disponibiliza o “disque 180” (Central de Atendimento à Mulher), que é destinado para atender mulheres em situação de risco, inclusive com alcance internacional[3]. Em meio a tantos outros nesse sentido, há também o aplicativo de celular denominado “SOS Mulher”[4], que é uma ferramenta criada pelo Governo do Estado de São Paulo, para atendimento policial às vítimas com medidas protetivas. Isso sem falar nas Delegacias da Mulher, e efetivas formas legais de proteger aquelas que são vítimas dessa doença que, diferentemente do coronavírus, nem sempre é sintomática, mas que, de tão silenciosa e devastadora como ele, passa tão despercebida por todos, que às vezes só se faz presente quando resta somente o compulsório e irreversível suspiro final.
De tão problemática que esta realidade diária é, hoje está até mesmo ocorrendo na forma inversa, de modo a atingir não só mulheres, mas todos os tipos de gênero, inclusive o masculino – o que também merece atenção e cuidados, pois, mesmo que ainda irrelevante diante do cenário contrário, também ofende à dignidade do respectivo ofendido.
Enfim, seja pela regra ou pela exceção, é inegável que os relacionamentos abusivos se proliferam em larga escala, expressa ou tacitamente, letal ou suavemente, e que merecem tutela integral do Estado e da sociedade (cada um pode fazer sua parte, dentro daquilo que é possível). Por tal razão, é preciso que todos movimentem esforços e recursos para que algo tão antiquado e rudimentar deixe de fazer parte de uma sociedade que se mostra desejosa de tanto progresso, e que, com certeza, possui meios e pessoas capazes para alcançar isso cada vez mais.
Portanto, que ao cuidar dos relacionamentos abusivos, os operadores do direito e a sociedade em geral tenham os mesmos cuidados que os operadores da medicina e a mesma sociedade em geral estão tendo com o coronavírus, pelo medo de seus riscos. As consequências de ambos são as mesmas: adoecer e/ou morrer. O segundo é possível ser diagnosticado previamente, com altas chances de cura. Já o outro, na grande maioria das vezes, apenas é constatado para formar estatísticas trágicas, como visto acima. Então, seja no isolamento, ou então quando a vida retomar ao normal, que nossos olhos estejam sempre atentos e abertos à pandemia que não tem prevenção tão acessível, como ao higienizar as mãos, mas sim apenas por meio de incessante e inquebrantável atitude acautelatória e altruísta, para com si próprio (a) e perante terceiros.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM