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Entre o público e o privado, famílias
Fonte: Boletim do IBDFAM nº 25
Quando os afetos, os conflitos, as angústias transbordam as fronteiras da família, os conflitos privados, naturais das vivências humanas, requerem a intervenção de um terceiro. Dizia o ditado "roupa suja se lava em casa". Atualmente parece que esta tarefa tem sido, em muito, terceirizada....
Com a modificação das fronteiras entre o público e o privado, com a maior diversidade nas constituições familiares, os conflitos têm cada vez mais ganho o espaço público. Dependendo da cultura particular de cada família, o auxílio, vindo de um terceiro, pode ser buscado em vários fóruns - nas instituições religiosas, dentre os profissionais da saúde mental, por vezes na própria imprensa, ou nos profissionais do Direito.
As relações privadas ganham o espaço do Judiciário quando a família passa por transformações de estado e quando sua estrutura não consegue conter em seu seio a vivência dos conflitos. Neste casos, as leis e normas de constituição e funcionamento da família não são suficientes para pautar os relacionamentos de forma a que a família cumpra seus objetivos. Este terceiro encarna-se em nossa cultura na figura do juiz, que a partir do lugar público, e não mais privado do espaço da família, diz a lei. O discurso jurídico e a sentença só encontram seu sentido fazendo eco à constituição interna, à constituição psíquica dos indivíduos.
Uma importante modificação que assistimos é o cair por terra de uma certa ilusão da família somente como reduto de amor. O afeto, que tem ganho o status de valor jurídico, mostra seu outro lado. Têm chegado a público situações de violência, que antes eram contidas e outras vezes ficavam escondidas em um pacto de silêncio, e que mantinha a imagem idealizada da família. Cada vez mais emergem as questões de violência, física e psíquica, não só contra as mulheres e crianças, mas também contra os homens no que tange ao exercício da função paterna, como assistimos em uma crescente queixa ao impedimento das chamadas visitas. Alarmantes os crimes cometidos por menores, como também crimes cometidos contra os menores, que vão desde o abandono à violência sexual, realidade que os especialistas apontam com freqüência.
A sociedade mudou, a família mudou, e também nossa capacidade de enxergar a família. Distinguimos vários níveis de relações dentro da família, as afetivas, as patrimoniais, as do exercício dos papéis e as dos direitos e deveres.
Com o aumento de nossa percepção da complexidade das relações, devem acompanhar estas mudanças a forma de lidar, gerenciar os conflitos de modo a auxiliar as famílias no fortalecimento de sua estruturação e em suas transformações. Anteriormente nossos modelos e paradigmas de conhecimento, excluíam a complexidade que nos é inerente, e diferente não poderia deixar de ser no âmbito das leis e mesmo dos processos.
As relações familiares que eram alvo das demandas, o eram em seus aspectos mais patrimoniais, permitindo inclusive uma maior objetividade. Mesmo as questões da parentalidade eram objetivadas em uma rígida divisão de papéis e funções. No Judiciário, há uma maior informalidade das relações familiares, também prenhes de emoção, se contrapunha um formalismo excessivo, inclusive em parte como defesa às manifestações afetivas. No entanto, a complexidade, a informalidade, a subjetividade conhecidas do espaço privado das relações familiares se fazem cada vez mais presentes no espaço público, impulsionando parte das mudanças de paradigmas que assistimos. Atualmente, ganham o primeiro plano as relações pautadas pelo afeto.
Todas estas mudanças apontam para a necessidade de um espaço privilegiado para as questões de família, que leve em conta seu contrato básico, o afetivo, e consiga ser continente para os níveis do conflito, sem cair na excessiva objetividade e distanciamento, ou, no outro extremo, no assistencialismo, no psicologismo e no perigo alertado por Freud, de uma Psicanálise selvagem, confundindo o sujeito do desejo com o sujeito do Direito.
Os conflitos vividos pela família requerem um tratamento diferente de outros pelo alto nível afetivo que contém, pela vulnerabilidade emocional que se encontram as pessoas em situação de crise, pelo luto inerente às suas transformações. Mas também por parte dos operadores do Direito. Diversamente de outras áreas, nas questões de família há inegavelmente um envolvimento diferente. A medida da necessária distância profissional é mais muito mais difícil, pois as questões vividas pelas famílias, tocam consciente ou, o que é inevitável e mais delicado ainda, inconscientemente a todos. São estes os casos que devido ao sofrimento, despertam as reações mais passionais ou a maior frieza. Em outras palavras, para não se cair em confusão é necessária a consideração da complexidade das relações.
Necessário é que os profissionais que trabalham com questões de família, tenham um preparo profissional diferenciado, em que se contemplem as diferentes formas de abordagem dos conflitos, que incluem o litígio, a conciliação e a mediação. Preparo profissional que envolve também um trabalho pessoal, que lhes permita discriminar os níveis dos conflitos que se apresentam, níveis que vão do mais subjetivo ao mais objetivo, de modo que os afetos não borrem a necessária objetividade mas que possam, por outro lado, ser utilizados em prol do princípio da Dignidade Humana, que tem em sua base o recurso afetivo da empatia.
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