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A gemelaridade do natimorto
A gemelaridade do natimorto
A leitura do registro de pessoas físicas, à luz do ordenamento jurídico vigente, leva ao conceito de registro de nascimento como marco inicial do exercício dos direitos da personalidade de cada cidadão. O registro faz nascer formalmente mais um membro de uma sociedade. Contudo, é o nascimento com vida que determina o início da personalidade jurídica, que poderá ser exercida após o registro.
As circunstâncias desse nascimento determinarão elementos caracterizadores dessa pessoa natural específica, com o objetivo de identificar e individualizar cada sujeito. Esse conjunto de características reunidas no registro civil de nascimento rotulamos juridicamente como estado da pessoa natural. Ou estado civil no sentido genérico, em contraponto com o significado restrito de estado civil como aquele que posiciona o cidadão em relação à existência ou não de um vínculo de casamento.
Diante dessa breve introdução, tem-se um ponto de partida para responder à seguinte indagação :
Deve-se mencionar a existência de gêmeo(s) quando, da gestação gemelar, um dos indivíduos não nascer com vida? Em outras palavras: a existência de natimorto deve constar de alguma maneira do registro de nascimento do(s) que nasceu(ram)?
Antes de partir para a resposta, é importante entender qual o objetivo de se mencionar na DNV e no registro de nascimento a existência de gêmeos.
O formulário da DNV é dividido em blocos de informações. O bloco V refere-se à gestação e ao parto. O campo 35 da DNV tem como título “tipo de gestação”. Isso indica que, na DNV, o fato de ser gemelar refere-se à gestação e não necessariamente à quantidade de irmãos que nascerão. Tanto que no Manual de Preenchimento da DNV (http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/junho/08/inst_dn.pdf), ao detalhar como deverá ser o preenchimento do campo 35, utiliza-se o termo “concepto”. Assim, considera-se a quantidade de indivíduos concebidos, mesmo que nem todos tenham nascido.
Quanto aos elementos obrigatórios para a lavratura do registro de nascimento, o item 3º do artigo 54 da Lei nº 6.015/1973 aponta que deverá ser mencionado “o fato de ser gêmeo”. Pelo tempo verbal, “ser” está indicando que a análise da existência de um irmão gêmeo é feita durante o momento do registro. Donde se conclui que, para que esse elemento seja identificado, a informação do campo 35 da DNV, por si só, não é suficiente. É preciso aferir com o declarante quantos conceptos efetivamente nasceram.
Ora, se em uma gestação houve a concepção de dois indivíduos, porém, apenas um deles nasceu e o outro foi extraído do ventre materno já sem vida, é possível dizer que, no sentido técnico-jurídico, nasceram dois irmãos gêmeos? Em primeira análise, em se tratando de registro civil, deve-se levar em consideração a teoria natalista adotada pelo nosso ordenamento jurídico que considera a aquisição da personalidade jurídica como sendo no momento do nascimento com vida. Assim, se não houve nascimento com vida, não há que se falar em personalidade jurídica, condição para que se possa falar em parentesco civil. Apenas as pessoas físicas, assim considerados os seres humanos com personalidade jurídica, são e têm parentes, legalmente falando. Como dizer que a criança que nasceu com vida tem um irmão gêmeo se aquele que foi concebido junto com ele não nasceu? “Gêmeo” é uma classificação do parentesco civil “irmão”. Não há que se falar em irmão gêmeo se somente um nasceu. Havia uma expectativa de que teriam o vínculo jurídico que os considerasse irmãos gêmeos em função da gravidez gemelar. Do ponto de vista jurídico, esse parentesco depende da aquisição da personalidade, ou seja, do nascimento com vida.
É importante ressaltar que essas considerações expostas aqui não incluem avaliação e muito menos qualquer limitação ao envolvimento sentimental dos membros da família que esperavam o nascimento que não ocorreu. O foco está restrito aos efeitos civis de um nascimento com ou sem vida.
E quanto à menção obrigatória do “fato der ser gêmeo” no registro de nascimento, na vigência da Constituição Federal de 1988, somente pode ser explicada pela necessidade de se ter no registro (e também na certidão) o fato de que existem cidadãos (dois, três ou quantos forem os irmãos gêmeos) com estados civis muito semelhantes. Na antiga ordem constitucional era admitido o dispositivo da Lei nº 6.015/1973 que estabelece que, no registro de um irmão, tenha a ordem de seu nascimento em relação aos demais irmãos de mesmo prenome. Contudo, esse vínculo entre registros de irmãos e entre registros de casamento dos pais com registros de nascimentos de filhos somente se vislumbrava na época em que o registro de nascimento tinha como um de seus objetivos indicar o pertencimento de um cidadão a uma família específica. A pluralística família da atualidade impõe que o registro de nascimento individualize e identifique cada cidadão, estabelecendo seu estado civil (estado da pessoa natural). Os nomes dos pais e avós no registro definem o estado de filiação do registrado e não têm mais o condão de situá-lo em determinada família.
Diferente, portanto, o tratamento que se dá no registro, mesmo na atualidade, aos irmãos gêmeos. Seus registros são juridicamente vinculados já que o registro de um faz menção ao nome e à matricula do registro do outro. No entanto, esse vínculo não tem por fundamento excepcionar a finalidade de individualização dos cidadãos. Essa informação pode trazer maior segurança às relações jurídicas em que um ou todos os irmãos estiverem envolvidos, a um porque demonstra de imediato porque existem dois ou mais cidadãos com a mesma data e local de nascimento e com a mesma filiação. Imediatamente qualquer dúvida quanto a essa congruência de dados fica seguramente sanada pela simples leitura da certidão onde consta a informação de que existe(em) irmão(s) gêmeo(s) e qual o(s) nome(s) desse(s) irmão (ãos). A dois porque traz um alerta a qualquer interessado da eventual necessidade de se comprovar por outros meios se um não está se passando pelo outro.
Aqui cabe um parêntese de que essas garantias estariam mais claramente asseguradas caso os documentos de identidade também trouxessem informações acerca da existência de irmão(s) gêmeo(s). Dificultaria, por exemplo, que em uma prova de concurso público, um irmão se passasse pelo outro. O avanço tecnológico da biometria talvez resolva de vez essa questão.
Detalhando a prática registral, o modelo padrão de certidão de nascimento estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça através do Provimento nº 63, traz um campo de preenchimento obrigatório onde deverá ser mencionado o fato do registrado ser ou não gêmeo. E, caso haja irmão(s) gêmeo(s), o campo deve ser preenchido com o(s) nome(s) e a(s) matrícula(s) do(s) registro(s) de cada um deles. Diante dessa exigência, em considerando a necessidade de afirmar que a criança que nasceu é gêmea de outra natimorta, como constar nome e matrícula de quem não adquiriu personalidade? Qual o número de matrícula a considerar se o natimorto não terá um registro de nascimento? Do registro no livro C-Auxiliar? Não poderia ser considerado constrangedor, além de totalmente desnecessário? Ainda mais difícil em se tratando do nome. Nome é um atributo da personalidade, que o natimorto não adquiriu. Alguns estados, fundados na dignidade da pessoa humana, criaram regras locais que permitem que os pais dêem nome, caso queiram, às crianças que não nasceram. Essa faculdade, porém, além de ser específica de algumas Unidades da Federação, é uma homenagem que se faz aos pais pela expectativa que tinham de ter um filho. E não em relação à dignidade do feto, já que, civilmente, não nasceu. Ou seja, não há fundamento legal para que se exija a escolha de um nome a todos os natimortos.
Uma situação diversa, que merece um espaço especial de discussão, é quando um dos irmãos falece logo após o parto, antes dos registros de nascimento. Nesse caso, o bebê que faleceu após manifestar sinais de vida adquiriu personalidade jurídica. Em razão disso, será lavrado um registro de nascimento e um de óbito, tornando possível o vínculo entre os registros de nascimento dos (aqui sim) irmãos gêmeos.
Em resumo, respondendo diretamente à indagação, não há necessidade jurídica de constar no registro de nascimento de um cidadão o fato dele ter sido concebido e gestado juntamente com um futuro irmão que não nasceu.
Márcia Fidelis
Professora, Palestrante e Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais - RCPN. Bacharel em Direito, especialista em RCPN, especializanda em Filosofia e Teoria do Direito e Direito das Famílias. Criadora do Projeto Registrando Vidas.
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