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O Direito à Privacidade dos Dados na Seara do Direito das Famílias
Patrícia Corrêa Sanches
Advogada, doutora em Ciências Jurídicas e Sociais, docente na Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, e nos Cursos de Pós-Graduação da UCAM-RJ/IBDFAM e da UNISANTA-SP.
Elizabeth Lamosa
Advogada com formação em Psicologia,
especialista em dados e relações interpessoais.
A nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD entrará em vigor em agosto de 2020[1], e um dos seus objetivos é proteger os direitos e liberdades fundamentais, em particular o direito à proteção de seus dados pessoais, assegurando o respeito à privacidade, e assegurando a propriedade de cada indivíduo sobre suas próprias informações.
As famílias são núcleos de proteção à intimidade, mas hoje estão vulneráveis à violação de sua privacidade pelas tecnologias da nova sociedade da informação. É no âmbito familiar que as pessoas estão em seu ambiente mais privativo. Na proteção da intimidade do lar são retiradas as vestes sociais, é onde as pessoas podem ser elas mesmas, relaxarem, se distraírem; é onde se guardam segredos, residem desejos, formam-se sonhos, discutem-se realidades, dificuldades, necessidades. Por isso, é por demais vil a violação da intimidade no ambiente familiar.
A LGPD chega como uma evolução necessária à proteção do direito à privacidade em nosso país. A nova lei, entre outras inovações, traz dispositivos importantes para que seja coibida a coleta indevida de dados pessoais, especialmente dos mais vulneráveis, como crianças e jovens, que a todo o tempo são chamados a interagir com amigos, conhecidos e desconhecidos, em alguns dos milhões de aplicativos disponíveis a um clique.
Daí a importância das restrições da lei para coleta e tratamento de dados pessoais sensíveis de crianças e adolescentes, e a exigência do consentimento do responsável legal para qualquer empresa, seja a escola ou o plano de saúde, coletar ou tratar dados de seus filhos. A LGPD confere poder ao titular dos dados, que passa a ter o direito de pedir acesso, eliminação, portabilidade, bloqueio e até mesmo revogar consentimento sobre o uso de seus dados e de seus familiares, especialmente se os mesmos estão em situação de vulnerabilidade.
A garantia à proteção de dados pessoais vai além da coleta de dados como nome, CPF, endereço, estado civil, profissão, e-mail, informações que estamos acostumados a preencher nos mais variados tipos de cadastro, seja no modo físico ou digital. Esses dados são pessoais e muito importantes, e em dado momento, tornam-se dados “públicos”, a que se tem o direito de ter controle da finalidade para qual são utilizados.
A LGPD vai além, ao legislar, também, sobre a coleta de dados sensíveis, que são os dados privativos e personalíssimos. São considerados dados sensíveis aqueles que falam sobre a sua personalidade de modo geral: sua origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, ou seja, os dados sensíveis são aqueles que dizem a própria pessoa. Seus dados são você!
Extensivamente, o ambiente familiar está em situação de vulnerabilidade quando os dados dos familiares estão sendo permanentemente coletados, processados e utilizados para finalidades desconhecidas por seus proprietários. A cada postagem, a cada clique, a cada like, a cada pesquisa, a cada vazamento, a sua privacidade e a de sua família podem estar sendo utilizadas e monetizadas, sem a sua necessária e expressa autorização.
A monetização dos dados pessoais na economia digital vem a se constituir como uma nova e perigosa ameaça à privacidade. As pessoas ainda não estão preparadas para esta nova realidade e, sequer, imaginavam o fato de que seus dados pessoais agora são uma nova moeda, o novo petróleo!
Yuval Noah Harari, famoso historiador moderno, compara o Google e o Baidu à inquisição e a órgãos de espionagem modernos, alertando para a necessidade de proteção frente à dicotomia entre a liberdade na exposição de dados e o direito à privacidade desses mesmos dados[2].
A necessidade de regulação das gigantes de tecnologia que controlam os dados mundiais - entre essas, Apple, Microsoft, Samsung, Facebook, Google - fez surgirem legislações por todo o mundo, incluindo o Brasil, visando proteger os direitos e empoderar as pessoas para que possam ter controle sobre os seus dados e à autodeterminação sobre estes. É importante ressaltar que a LGPD contempla empresas de todos os portes, todos aqueles que fazem coleta e tratamento de dados terão que se ajustar ao novo regramento.
É uma legislação fundamental para a proteção dos dados pessoais no mundo digital, por isso muito importante, porque os dados sensíveis que são coletados dizem respeito diretamente à nossa personalidade, aos nossos hábitos, à nossa saúde, ao que consumimos, ao que queremos e, também, ao que ainda não sabemos que queremos, mas seremos induzidos a querer. Nestes casos, somos consumidores vulneráveis.
A coleta de nossos dados pessoais permite um monitoramento de nossa saúde, preferências, potencialidades, fragilidades, medos, anseios, desejos; e não é exagero afirmar que empresas como o Google e o Facebook conhecem muito mais de nós e de nossas famílias do que a maioria de nós. Eles conhecem nossos segredos, os segredos de nossos pais, filhos, familiares - e essa privacidade precisa de proteção legal.
Para buscar essa proteção na seara familiar, a LGPD determina que o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes sejam realizados em seu melhor interesse, visto que são especialmente vulneráveis, por serem mais facilmente influenciáveis, já que não estão em plena capacidade de entendimento das consequências de seus atos. No caso de crianças menores de 12 anos de idade é necessário o consentimento específico e explícito concedido por um dos pais ou responsável legal – e os termos devem ser redigidos de forma simples, clara e acessível.
Outra violação da privacidade que vem se tornando comum, infelizmente, é a exposição indevida de pessoas em situação de vulnerabilidade nas redes sociais, com potencial de causar impactos irreversíveis na vida delas e de suas famílias. Uma violação que pode ocorrer perante milhões de pessoas, dependendo do quanto a notícia “viralizou” pelas redes sociais, e até se eternizar, pela dificuldade de remoção do conteúdo publicado.
As redes sociais estão transformando o conceito de privacidade de maneira muito rápida, tornando-o mais fluido, sem contornos definidos, porque a tecnologia evolui muito rapidamente. Atualmente, em nome da segurança, parece ser aceito pela maioria da sociedade o uso e o controle da tecnologia de reconhecimento facial, por mais invasivo à privacidade que seja ou possa vir a ser.
A privacidade é um conceito moderno, e foi postulada como um direito pela primeira vez no artigo "O Direito à Privacidade"[3], publicado em 1890, na Inglaterra. O que motivou os autores a escreverem o histórico artigo foi a publicação, em jornais, de fotos de uma cerimônia de casamento, privativa aos convidados. A fotografia era invenção recente e rapidamente se popularizou como poderoso meio de comunicação, e as elites passaram a ter sua vida privada exibida nas manchetes nos jornais, o que deveria ser protegido por lei. Nesta mesma época, foi cunhado o conceito do “Direito de Estar Só” (the right to be let alone).
No decorrer do século XX, o Direito à Privacidade foi adotado pelas legislações de vários países, vindo a integrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Art. XII), e o Pacto de San José da Costa Rica (Art. 11). Por sua vez, a Constituição Federal Brasileira de 1988 (Art. V), também garante o direito à privacidade, à reserva da intimidade, conferindo-lhe uma condição supralegal. A privacidade também é tutelada juridicamente na seara do Direito Civil e Penal, e no Marco Civil da Internet, a Lei nº 12.965/2014.
Toda a legislação citada é garantidora de direitos, mas é a LGPD que confere o status de direito fundamental aos dados pessoais, tendo como fundamentos (Art. 2º), entre outros, o respeito à privacidade, à autodeterminação informativa e a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem através dos dados pessoais.
Nos dias atuais, de pós-modernidade, a tecnologia continua evoluindo cada vez mais rápido, colocando as pessoas diante de situações e relações que não existiam há poucos anos. Foram criados ambientes e regras de convívio social entre pessoas que, talvez, jamais se encontrem pessoalmente, porém, possuem vínculo social tão estabelecido como qualquer outro relacionamento social de outrora. A exemplo do Facebook, que gerou comunidades com regras, pessoas, relacionamentos de amizade, inimizades; gerou empregos, demissões, casamentos, divórcios e até crimes.
As novas gerações nascem sob a égide da tecnologia. A “presença” das pessoas nos ambientes virtuais passa a ser imprescindível, visto que não possuir um perfil no Facebook, Instagram, WhatsApp, Messenger, Youtube ou Google, entre tantos outros, é quase não existir no mundo atual. Torna-se tarefa quase impossível sobreviver, na atualidade, sem concordar com os termos e formulários prontos.
De acordo com pesquisa realizada pela Tic Kids Online Brasil[4], realizada em 2018/2019, 86% de crianças e adolescentes de 9 a 17 anos usam a internet; 53 % de crianças e adolescentes de 9 a 17 anos usaram o celular como único dispositivo para uso da internet, e 40% usaram conjuntamente celular e computador. Nesta mesma faixa etária de 9 a 17 anos, 83% baixaram aplicativos e assistiram filmes e vídeos, programas ou séries on-line; 82% ouviram música on-line; 60% jogaram on-line, não conectados com outros jogadores, e 55% jogaram on-line, conectados com outros jogadores. Quanto à posse de perfil em redes sociais, por faixa etária, 58% das crianças de 9 a 10 anos e 70% de 11 a 12 anos têm perfil; 88% adolescentes de 13 a 14 anos, chegando a 97% na faixa etária de 15 a 17 anos. Ou seja, uma geração quase totalmente online e digital, que está vulnerável e precisa ser educada para a proteção de sua privacidade, e para o respeito à privacidade dos outros. A primeira lição para toda a família é aprender e ajustar as suas configurações de privacidade nas redes sociais em que participam.
Cada formulário online preenchido é uma doação de informações; cada clique no botão “concordo”, concedemos uma permissão para que nossos dados sejam utilizados. Mas o fato de aceitar os termos de uso nas redes sociais, não significa que a pessoa concorda com o uso de seus dados pessoais fora do seu controle. Por isso, a importância da Lei 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, ou simplesmente LGPD.
A nova legislação transforma os dados pessoais em um direito fundamental e, portanto, o que era considerado uma simples doação/recepção gratuita de dados, passa a ser uma responsabilidade por parte das empresas pois, de fato, não se traduz em simples doação gratuita por parte das pessoas e sim, uma demonstração de confiança e boa-fé objetiva que gera, em contrapartida, o dever de guarda e de cuidado, punível em caso de descumprimento.
Reconhecer os dados pessoais, inclusive os dados sensíveis, como direito fundamental da personalidade é garantir ao cidadão a possibilidade de controle, a segurança e a preservação de sua intimidade e de seus dados mais particulares. Concordar com os termos não poderá mais significar doação ou transferência irrestrita de direitos, haja vista a responsabilidade de quem os recebe, o dever de respeito e a obrigação de proteção.
Embora a LGPD não trate especificamente do direito ao esquecimento, traz em seus fundamentos o princípio de que a empresa só poderá usar o dado enquanto ele for necessário – então, as pessoas não precisam permanecer vinculadas a informações sobre elas e suas famílias que não são verdadeiras, ou que não são mais consideradas relevantes. Enfim, a pessoa tem o direito de excluir das redes as informações que não são mais relevantes.
Famílias atingidas por tragédias têm o direito ao esquecimento virtual, de que sejam apagados os registros públicos relativos àquele acontecimento; um casal que se divorcia tem o direito à preservação de sua história e à retirada das publicações referentes a um tempo que já não existe mais, o qual se tem o direito de esquecer. Como iniciar uma nova vida, desenvolver um novo relacionamento existindo na sociedade virtual as fotos, vídeos, declarações de amor que hoje são desnecessárias? Transexuais têm o direito de serem conhecidos por sua identidade social atual – precisam conviver com as lembranças e fotos do passado com as quais não se identificam? E as vítimas de violência doméstica?
Os Tribunais Superiores brasileiros já estão enfrentando o conflito entre o direito ao esquecimento e a liberdade de informação (RE 1010.606/RJ). A tendência é definir o limite do direito ao esquecimento – enquanto desdobramento do direito à personalidade, devendo ser ponderado a partir de casos concretos, com a proteção ao direito à informação e à liberdade de expressão, não se tratando de um direito absoluto. Essa ponderação considera o direito à informação, de modo a evitar a supressão de registros históricos, informativos e de domínio/interesse público.
Do ponto de vista da natureza jurídica, os dados pessoais passaram a ser considerados bens jurídicos, porquanto, tudo aquilo que tem importância na órbita jurídica passa a ter proteção do Direito. Não apenas pela relevância no dia-a-dia da pós-modernidade, mas também, em razão de ser patrimônio ativo pessoal, passível de ser herdado a compor o acervo partilhável – inclusive no divórcio/separação: quem ficará com os milhões/milhares de fãs que seguem um casal nas redes sociais? Lembrando que além da chamada influência digital, o número de “likes” e “views” em redes sociais podem render verdadeiras fortunas.
Assim, são sensíveis dados e informações relacionados ao ambiente familiar, como suas características, reuniões privadas, discussões, situações internas, e todo o universo privativo de cada membro da família – que a bem do resguardo dos direitos fundamentais, são relevantes apenas a seus integrantes.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD, com objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade, privacidade e personalidade, dispõe sobre o tratamento das informações pessoais, assegurando a cada cidadão o direito de apropriar-se delas e de controlá-las, incluindo suas relações individuais e, consequentemente, seu ambiente familiar. Com a nova lei, o tratamento de dados pessoais só poderá ser realizado mediante o consentimento do titular dos dados, com as exceções previstas no próprio texto legal. Esse mesmo consentimento pode ser revogado a qualquer instante, e todas as empresas que trabalham com dados pessoais deverão adotar, entre outras medidas, a transparência e o acesso às informações sobre o tratamento dos dados pessoais.
Sua implantação no Brasil irá gerar muitos desafios, porque a proteção da privacidade é um tema recente e ainda pouco debatido com a população, embora extremamente relevante e atual. Com o crescente debate acerca da LGPD, mais e mais pessoas estão se conscientizando da importância de controlar seus dados e a de seus familiares e, ao sinal de violação nas redes sociais e internet, a melhor opção é procurar a orientação de advogada(o) para a defesa e resguardo do direito fundamental, inclusive da própria família.
Referências Bibliográficas
HARARI. Yuval Noah. 21 Lições para o Século 21; tradução Paulo Geiger. 1ª. edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Pg. 74.
WARREN, Samuel; BRANDEIS, Louis. The Right to Privacy. Artigo Jurídico in Harvard Law Review, 1890 - https://www.jstor.org/stable/1321160?seq=4#metadata_info_tab_contents.
[1] O Projeto de Lei 5762/2019 está propondo a alteração da Lei nº 13.709, de 2018, prorrogando a data da entrada em vigor de dispositivos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD - para 15 de agosto de 2022. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2227704
[2] HARARI. Yuval Noah. 21 Lições para o Século 21; tradução Paulo Geiger. 1ª. edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Pg. 74.
[3] WARREN, Samuel; BRANDEIS, Louis. The Right to Privacy. Artigo Jurídico in Harvard Law Review, 1890.
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