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Abandono afetivo de idosos
É possível punir ou responsabilizar legalmente os filhos pelo abandono afetivo aos pais idosos? Embora o Estatuto do Idoso (Lei 10.741, de 2003) já determine como direito da pessoa idosa a manutenção dos vínculos afetivos com a família e o convívio comunitário, o projeto de lei 4.229/2019 quer ir além e propõe a responsabilização civil do filho por abandono afetivo. A proposta é que tal abandono seja configurado ato ilícito e vinculado à reparação de danos por parte do filho.
O projeto, de autoria do senador Lasier Martins (Podemos-RS) tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. O autor afirma que, com o envelhecimento da população idosa no país, que em 2033 corresponderá a 20% do total, a situação de desamparo e suas consequências poderão se tornar um problema ainda mais significativo em nossa sociedade.
O chamado abandono afetivo inverso consiste na falta de cuidado dos filhos em relação aos pais na velhice. A Constituição brasileira tem, entre seus pilares, a proteção da estabilidade familiar. A ausência de solidariedade, inclusive a afetiva, em particular em relação aos mais vulneráveis, como crianças e idosos, constitui-se em prática que deve ser, sim, apreciada juridicamente. Em seu artigo 229, a Carta Magna estabelece que os filhos maiores são obrigados a ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Propostas como o projeto de lei 4.229/2019 merecem ainda muitas discussões, mas são por si só um sintoma de que a sociedade brasileira está acordando para as transformações de sua pirâmide etária -- sobretudo por uma perspectiva mais humanista. Se por um lado ainda é recorrente a visão depreciativa da velhice, de outro lado há iniciativas, ações e esforços sendo aplicados em prol da dignidade da pessoa idosa, para a qual a convivência familiar e comunitária é tão vital quanto o direito à saúde, moradia, alimentação, cultura, educação, trabalho, esporte, lazer e cidadania.
Há que se trazer à luz, igualmente, que, além de criminalizar o abandono afetivo, é crucial a criação e o fortalecimento de políticas públicas para criar uma rede de proteção aos idosos. Aqui, não falo apenas de sobrevivência, mas de qualidade de vida para esta população, uma responsabilidade que deve ser dividida entre família, sociedade e Estado -- entre todos nós.
Maria Luiza Póvoa Cruz é advogada, presidente das Comissões Nacional e Estadual do Idoso do Ibdfam e membro do Conselho Nacional dos Direitos dos Idosos.
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