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A absurda exigência de prova documental da união estável para a adoção e para o registro do filho concebido por reprodução assistida
A absurda exigência de prova documental da união estável para a adoção e para o registro do filho concebido por reprodução assistida
Maria Berenice Dias[1]
Todo mundo sabe que nem a lei e muito menos normas administrativas podem afrontar disposições da Constituição da República (CR).
Tanto que existem dois sistemas para buscar que não seja aplicada alguma regra que não se coaduna com o comando constitucional. Via controle difuso ou controle concentrado, de forma incidental ou por meio de ação direta de inconstitucionalidade, é possível rotular como inconstitucional uma lei, um dispositivo legal ou um ato normativo.
Como é necessário que o Judiciário seja provocado para que exerça o poder controlador da constitucionalidade da legislação infraconstitucional, é urgente buscar o reconhecimento da inconstitucionalidade:
– do § 2º do art. 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família;
– do inc. III do art. 197-A do ECA: cópias autenticadas de certidão de nascimento ou casamento, ou declaração relativa ao período de união estável;
– do inc. III do art. 17 do Provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ): certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal.
Todos estes dispositivos ao exigirem a comprovação documental da existência da união estável, se confrontam com a própria natureza desta entidade familiar, que dispensa qualquer formalização para o seu reconhecimento. Nem a Constituição, ao conceder a especial proteção do Estado à união estável (CR, art. 226, § 3º), nem as leis que regulamentaram este instituto (Lei n. 8.971/1994 e Lei n. 9.278/1996) ou o Código Civil (arts. 1.723 a 1.727), impõem sua formalização.
A recomendação constitucional para que seja facilitada a conversão da união estável em casamento, não hierarquiza as duas formas de constituição de família. Ao contrário, visa dar mais segurança aos vínculos informais para que não seja necessária a intervenção judicial ao seu reconhecimento.
Invocando o princípio da igualdade entre casamento e união estável, acabou o Supremo Tribunal Federal de afirmar a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC, decisão que se espraia para todo o sistema jurídico.
Assim, ainda que o estabelecimento de relações parentais mereça especial atenção, não podem ser impostos requisitos que transbordem os limites legais, de modo a estabelecer tratamento discriminatório entre as estruturas familiares.
O casamento existe a partir da chancela estatal. É solene o ato que colhe a manifestação de vontade do casal de constituírem uma família (CC, art. 1.535). O fim do casamento depende também da intervenção oficial, ainda que os efeitos da união cessem quando da separação de fato.
Ou seja, a existência formal do casamento não é suficiente para comprovar que o casal se mantém casado. Mas a simples apresentação da certidão de casamento é o que basta para a habilitação à adoção. No entanto, na união estável, que se constitui pela convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família (CC, art. 1.723), é exigida a comprovação da “estabilidade da família”. Mesmo que ambos se apresentem como pretendentes à adoção é indispensável tal comprovação para que possa ocorrer a adoção conjunta.
Além disso, a falta de especificidade sobre a natureza da prova a ser apresentada tem gerado posições dissonantes. Alguns juízes exigem escritura púbica de união estável, a qual, no entanto, não dispõe de natureza constitutiva e nem serve para atender ao requisito de comprovação da estabilidade da família. Aliás, a escritura, por si só, não basta como prova da união estável. É necessária a comprovação dos requisitos legais: publicidade, continuidade e durabilidade.
De qualquer modo, exigir prova da estabilidade da família somente na união estável, nada sendo exigido com relação ao casamento, afronta o princípio da igualdade, o que fulmina a exigência legal.
A mesma mácula de inconstitucionalidade tisna a exigência de comprovação do período da união estável para a habilitação à adoção.
Como não é feita a mesma exigência quando os postulantes da adoção são casados, descabido exigir prova do período de convivência. Pelo jeito, no dia seguinte ao casamento, podem os cônjuges se habilitarem à adoção. Já na união estável é necessário o decurso de um determinado período de tempo, sem que se saiba de que tempo se estaria falando.
Aqui também não é identificada a forma que a indigitada declaração precisa ter. Basta um escrito particular firmado por ambos os conviventes? Ou é necessária a apresentação de uma escritura pública, com a indicação do período de convívio? Ora, como não compete ao tabelião comprovar a veracidade dos fatos que lhe são informados pelas partes, nenhuma diferença faz o tipo de instrumento eleito pelo casal para atender ao requisito legal.
Em face da irritante inércia do legislador, que não tem qualquer compromisso de cumprir com sua atribuição de fazer leis, cabe ao Judiciário decidir sobre as novas realidades da vida.
Claro que depois se fala em ativismo judicial, ditadura do Poder Judiciário, quando os juízes se limitam a atender ao comando legal. Mesmo inexistindo lei, o juiz tem que julgar, devendo fazer uso da analogia, dos princípios gerais de direito e dos costumes, atentando sempre aos fins sociais e às exigências do bem comum (LTNDB, arts. 4º e 5º).
Também o CNJ assume este encargo supletivo frente às lacunas da lei. Por meio de atos normativos edita provimentos e resoluções. Cria procedimentos e impõe exigências, muitas vezes até extrapolando os limites de suas atribuições.
Uma das novidades decorrentes da evolução científica, é o uso de técnicas de reprodução assistidas, que se popularizaram. Inclusive, é a forma eleita pelos casais homoafetivos para constituírem uma família. Assim, se fez urgente normatizar o registro de nascimento de quem é filho sem haver identidade biológica com um ou ambos os pais. Tanto o Conselho Federal de Medicina (Resolução 2.168/2017), como o Conselho Nacional de Justiça (Provimento 63/2017), estabeleceram normas regulamentadoras.
Modo expresso o CFM permite o uso das técnicas de reprodução assistida por pessoas solteiras e nos relacionamentos homoafetivos. Exige tão só a concordância, por escrito, do cônjuge ou companheiro, no caso de a cedente temporária do útero ser casada ou viver em união estável.
O CNJ regulamenta o registro de nascimento dos filhos havidos por reprodução assistida. Exige o comparecimento de ambos os pais e, entre outros documentos, a apresentação de certidão de casamento ou escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal.
Às claras que a exigência é para lá de descabida. A existência da união não exige documento comprovatório, sendo suficiente a declaração dos pais de que vivem em união estável.
E não se venha falar em insegurança jurídica. Basta atentar que é permitido a um dos pais proceder, sozinho, ao registro do nascimento do filho em nome de ambos os genitores. É suficiente apresentar a certidão de casamento. Ora, não há que se falar em presunção de filiação pelo só fato de os pais ostentarem a condição de casados.
Este absurdo jurídico é que pode gerar insegurança. Vai que o casal esteja, há anos, separados de fato. E, ao persistir este arcaico dispositivo, a afirmativa de um dos genitores de que vive em união estável com quem aponta como sendo o outro genitor, também deveria bastar para que o registro fosse levado a efeito em nome de ambos.
Cabe lembrar que há novas modalidades de famílias. A regra constitucional não é excludente ao elencar as entidades familiares a quem o Estado concede proteção.
E existe uma nova realidade. As chamadas parcerias parentais. Quando as pessoas desejam ter um filho, mas não querem ser um pai solo. Quem tem este projeto de vida, pode encontrar pessoas com o mesmo propósito até pela internet. Fazem um contrato de coparentalidade e, geralmente, o filho é gerado por técnica de reprodução assistida.
O filho terá um pai e uma mãe (ou dois pais ou duas mães), sendo registrado em nome de ambos. Terá dois pais, duas casas, duas famílias. Irá conhecer e conviver com ambos os genitores, sem que se estabeleça entre eles um vínculo de conjugalidade.
Nesta hipótese, pelo que reza o CNJ, o filho não pode ser registrado em nome de ambos os pais? Afinal eles nem são casados e nem vivem em união estável.
Como esta estrutura familiar não afeta “a moral e os bons costumes”, não é proibida. Sem esquecer que o filho tem direito à identidade, ingrediente maior do princípio de respeito à dignidade. Deste modo, de todo descabido excluir do reconhecimento jurídico alguém pelo fato de não ser fruto de uma relação de conjugalidade.
Seja como for, normas infraconstitucionais ou de natureza administrativa não podem atropelar o comando constitucional que empresta status de família a uma multiplicidade de vínculos de convívio.
E, enquanto não reconhecida formalmente a inconstitucionalidade dos indigitados dispositivos, o jeito é não aplicá-los!
[1] Advogada especializada em direito homoafetivo, famílias e sucessões. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Ex-presidente Nacional da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB. Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM.
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