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Direitos humanos e orientação sexual: a efetividade do princípio da dignidade
A história da humanidade comporta muitas mudanças de valores sendo certo que os conceitos morais vigentes são variáveis conforme parâmetros de tempo e espaço. A superestrutura, in casu, organização jurídica reflete os padrões culturais vigentes.
Partindo-se de uma visão globalizada, verifica-se uma tendência no sentido de enfatizar o ser humano, é dizer, o aparato jurídico serve de instrumento para realização da pessoa e proteção dos chamados Direitos da Personalidade, em especial, promoção da dignidade humana.
Nesse contexto, compreende-se que a orientação sexual de cada indivíduo integra o complexo subjetivo inerente à sua personalidade e, por via de conseqüência, sua livre manifestação é objeto de proteção por parte do Estado que se pretende Democrático de Direito.
Mediante um panorama histórico da evolução do tema da sexualidade verifica-se que os desvios dos “padrões sexuais de normalidade” eram analisados sob diversos enfoques delimitando-se os extremos de total ojeriza a uma social tolerância, passando-se por considerações de ordem patológica, distúrbio psicológico/psiquiátrico, opção de vida e orientação sexual.
O ordenamento jurídico pátrio, em consonância com a tendência mundial prestigia os princípios de defesa dos Direitos Humanos consagrando, em sede constitucional, os direitos fundamentais sendo inequívoca a íntima relação da liberdade de orientação sexual e os valores de LIBERDADE, IGUALDADE E DIGNIDADE.
A questão das uniões homoafetivas encontra resguardo nas novas tendências do Direito de Família tendo em vista que o eixo central da idéia de entidade familiar deslocou-se do grande formalismo da celebração matrimonial para a livre manifestação do AFETO.
Presentes, portanto, alguns requisitos peculiares de constituição familiar, evidente a necessidade de tutela específica das entidades que se formam à margem das solenidades antigamente idolatradas.
A produção de efeitos patrimoniais não mais é um fim em si mesmo senão uma natural conseqüência das uniões estáveis estabelecidas e baseadas no amor (independentemente de tratar-se de ligações hetero ou homossexuais).
Não basta identificar o problema evidenciado pelo preconceito pois isso só fomentaria as discriminações existentes em torno do assunto mas apresentar soluções juridicamente viáveis para disciplinar as novas situações apresentadas.
Sugere-se uma atividade de integração do direito mediante utilização do método de interpretação sistemática, recurso aos Princípios de Interpretação da Constituição e emprego da analogia.
Assim sendo, contorna-se a suscitada questão de inconstitucionalidade do §3º do art. 226 da Constituição Federal brasileira mediante cotejo de referido dispositivo com o disposto nos arts. 1º inc. I, 3º inc. IV, 5º caput incs. I, II e III e parágrafo 2º, 7º inc.III e o preâmbulo da Carta Magna que positiva os mais lídimos reclamos da justiça.
Há, pois, uma melhor compreensão das questões de orientação sexual como vertente dos Direitos Humanos merecendo proteção como tal.
Nesse contexto, o MINISTÉRIO PÚBLICO assume papel de especial relevância tendo em vista que atua como guardião da Constituição da República Federativa do Brasil, soldado combatente da justiça e fiscal da efetividade dos direitos e garantias individuais. A livre manifestação da sexualidade insere-se no espectro das prerrogativas inerentes à personalidade humana sendo seu reconhecimento, um reclamo do Princípio da Dignidade consagrado pela Carta Constitucional.
Os operadores do Direito só fazem Justiça e o ordenamento jurídico só adquire contornos de legitimidade ao refletirem as mudanças sociais e, na matéria em comento, o tratamento jurídico adequado é aquele que não compactua com discriminações e que entende que toda forma de amor vale a pena.
2. PREFÁCIO
O presente estudo tem por objetivo enfrentar o tema das uniões afetivas entre pessoas do mesmo à luz da proteção da dignidade humana como direito fundamental.
O trabalho identifica os problemas enfrentados em decorrência da assunção de uma orientação sexual considerada fora dos parâmetros da normalidade (a partir de noções e conceitos variáveis de acordo com aspectos culturais, religiosos, sociológicos, psicológicos, espaciais e temporais).
O tema engaja aspectos polêmicos da homossexualidade que a sociedade sistematicamente tende a estigmatizar e que se encontram ao desamparo em demandas judiciais: nas ações de partilha de bens, de pedido de alimentos, de direitos sucessórios, de disputa de guarda de filhos, de filiação e adoção, de investigação de paternidade e um sem números de situações que circundam o Direito de Família, inclusive as novas problemáticas referentes à reprodução assistida (inseminação artificial , fertilização in vitro etc).
O estado sexual é atributo intrínseco do ser humano, faceta da personalidade, projeção do ego, tudo inserido num contexto dos festejados “DIREITOS HUMANOS”.
A sexualidade e suas manifestações integram o complexo da PERSONALIDADE HUMANA e como tal deve ser tutelada pelo ordenamento jurídico com vistas à proteção da DIGNIDADE da pessoa humana.
Esses princípios não devem ser tratados como meras normas programáticas mas devem ser dotados de mecanismos prático-jurídicos que lhes confira EFETIVIDADE.
Discute-se a (in)constitucionalidade do artigo 226, §3º, da Constituição da República do Brasil, a possibilidade do reconhecimento de efeitos jurídicos às manifestações da sexualidade diferenciada dos padrões de normalidade mediante uma interpretação sistemática e aplicação da analogia e abre-se um parêntese para valorar as “anomalias sexuais” na categoria dos direitos de liberdade, proteção da intimidade e dignidade da pessoa humana, todos considerados direitos de personalidade .
Destaca-se, ainda, a atuação do MINISTÉRIO PÚBLICO no tema em análise em razão da clara pertinência ao Direito de Família (atuação na área cível em razão do disposto no art. 82 do CPC) e na Defesa das Normas Constitucionais conforme se extrai da exegese finalística do art. 127 da Constituição da República.
O Promotor de Justiça, como fiscal da lei, deve manter-se alerta para acompanhar as mudanças sociais e, nestes termos, conferir efetividade aos princípios que informam o Direito como um todo. Trata-se, pois, de importante aliado na crescente luta contra as discriminações, as quais não compactuam com o sistema de proteção das liberdades individuais e dignidade da pessoa humana.
3. CO-RELAÇÃO ENTRE DIREITOS HUMANOS, DIREITOS DE PERSONALIDADE e DIREITOS FUNDAMENTAIS.
Os Direitos Humanos são manifestações da personalidade humana cuja proteção é reconhecida tanto a nível de Direito Natural sendo, nesse sentido, anterior ao próprio homem, como pelo Direito Positivo.
Verifica-se, pois, preocupação com a pessoa humana, surgida com as Declarações de Direitos, a partir da necessidade de proteger o cidadão contra o arbítrio do Estado totalitário, e mais, limitando também as relações jurídicas patrimoniais. Verifica-se, portanto, a necessidade de tutela dos direitos inerentes ao Ser Humano não somente na esfera de Direito Público (proteção da pessoa humana contra arbitrariedades e violações praticadas pelo Estado) como também no âmbito do Direito Privado.
De fato, na medida em que a pessoa humana torna-se objeto de tutela também nas relações de direito privado (estabelecimento de direitos subjetivos para a tutela de dados axiológicos atinentes à personalidade) verifica-se que os valores inerentes ao sujeito humano transcende a divisão estanque entre o Direito Público e o direito Privado.
Insta ressaltar que faz-se a distinção doutrinária entre Direitos Humanos e Direitos de Personalidade aduzindo-se quanto aos primeiros tem-se uma gama de direitos subjetivos engendrados a proteger os valores da personalidade humana contra o Estado (abordagem de Direito Público) enquanto que os Direitos de Personalidade (propriamente ditos) considerariam esses mesmos direitos sob o prisma das relações entre particulares, ou, ainda, analisados quando da configuração de uma relação patrimonial (abordagem de Direito Privado).
Nesse sentido observa o autor Fabio De Mattia :
“(...) os direitos humanos são, em princípio, os mesmos da personalidade; mas deve-se entender que quando se fala dos direitos humanos, referimo-nos aos direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando desejamos protegê-los contra as arbitrariedades do Estado. Quando examinamos os direitos da personalidade, sem dúvida nos encontramos diante dos mesmos direitos, porém, sob o ângulo do direito privado, ou seja, relações entre particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras pessoas”.
No que se refere aos DIREITOS FUNDAMENTAIS são estes, nada mais nada menos, que os Direitos Humanos e Direitos da Personalidade consignados, ou melhor, positivados na Constituição da República. Assim, tem-se que o lugar de referência mediante disposição topográfica de nossa Carta Magna dos Direitos Humanos e Direitos da Personalidade são Título I e II: Princípios Fundamentais e Direitos e Garantias Fundamentais, respectivamente.
São, pois, características dos Direitos Humanos (lato sensu – englobando, pois, os Direitos de Personalidade propriamente ditos e Direitos Fundamentais) a generalidade, a extrapatrimonialidade, o caráter absoluto, a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a intransmissibilidade.
3.1. LIBERDADE DE ORIENTAÇÃO SEXUAL E PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
O Princípio da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA pode ser considerado como uma cláusula geral de tutela dos direitos da personalidade. Encontra-se expressamente previsto na Constituição da República Federativa do Brasil como um de seus fundamentos.
Sob a ótica de Sérgio Resende de Barros, "a dignidade humana é a versão axiológica da natureza humana".
Deveras, diante de qualquer caso concreto que bata às portas do Poder Judiciário, a interpretação que mais atende aos anseios de justiça é a que melhor realiza a dignidade do ser humano.
Do princípio da dignidade são irradiados os demais princípios também acolhidos em sede constitucional. Nesse sentido, estão especialmente relacionados à matéria em comento, os princípios da igualdade e liberdade.
O princípio constitucional de igualdade, erigido pela Constituição Federal, outorga específica proteção à expressão da sexualidade. Preliminarmente, o preâmbulo da Constituição e seu artigo 1º, inciso III, estabelecem o princípio da liberdade e da igualdade. Especificamente os artigos 3º, inciso IV, e 7º, inciso XXX, da Constituição Federal, proíbem qualquer dessemelhança por motivo de sexo.
As relações sexuais se albergam entre os direitos de personalidade, sob o teto da liberdade de expressão, principalmente no que diz respeito à identidade pessoal e a integridade física e psíquica.
O direito à liberdade do homem é o segundo direito fundamental assegurado no artigo 5º, caput, da Carta Constitucional , logo em seguida ao direito à vida. É na Constituição que se inserem dispositivos de proteção à personalidade, considerados agora como direitos fundamentais ou liberdades públicas: de consciência e de crença (artigo 5º, VI), de expressão (artigo 5º, IX), de exercício de trabalho (artigo 5º, XIII), de locomoção (artigo 5º, XV), de associação (artigo 5º, XVII) e as ações constitucionais de habeas corpus (artigo 5º, LXVIII) e mandado de segurança (artigo 5º, LXIX).
A liberdade de expressão sexual, como direito de personalidade, é direito subjetivo que tem como objeto a própria pessoa.
A orientação sexual é determinante, assim como são intrínsecas no ser humano a raça e a nacionalidade – todas estão condicionadas ao acontecimento natural do nascimento e à nada mais. Daí estarem inseridas na cláusula geral de proteção igualitária inserida no artigo 5º, caput, da Constituição Federal e no princípio fundamental de tratamento digno ao ser humano.
Não há fundamento lógico para o tratamento desigual.
Pode-se concluir que a discriminação por motivo de orientação sexual é uma espécie do gênero que proíbe a discriminação por motivo de sexo, portanto merece agasalho em nosso ordenamento jurídico.
3.2. ORIENTAÇÃO CONSTITUCIONAL - AS FAMÍLIAS POSSÍVEIS.
A Constituição agasalha princípios que revelam os reclamos de justiça e, nestes temos, verifica-se a tendência do constituinte originário no que se refere a viabilizar a interpretação que melhor atende á realização da pessoa humana.
– Chega-se à conclusão supra pela especial análise conjugada das normas consignadas no Preâmbulo da Carta Magna e nos seus art. 1º inc. III, art. 3º inc. IV, art. 5º caput e inc. I e parágrafo segundo, art. 7º inc. XXX, art. 226 e par. 3º e 4º.
Mais especificamente, no Direito de Família, houve uma profunda transformação. Albergaram-se outras formas de vínculos afetivos como entidade familiar. Tanto a união estável entre homem e mulher como as relações entre ascendentes e sua filiação, chamadas de família monoparental, passaram a ser consideradas entidades familiares (art. 226 §3º e 4º da CR).
Com a Carta Magna e 1988 foram nomeadas outras entidades familiares dignas de reconhecimento e proteção por parte do Estado além daquela decorrente do casamento.
Ressalte-se que a interpretação conjugada dos parágrafos do art. 226 da Constituição da República reforça a idéia de INCLUSÃO e não de exclusão, para fins de se alargar o espectro de configuração de entidades familiares.
"O caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensividade".
Não é razoável que se interprete a Constituição de forma a discriminar situações, é dizer, organizações afetivas que tenham as mesmas características, requisitos e finalidades não podem ter tratamento diferenciado.
Nesse sentido, tem-se como requisitos essenciais para configurar a entidade familiar:
AFETIVIDADE – esse seria o requisito preponderante; desloca-se o foco central da família da finalidade exclusivamente procriativa e geração de efeitos patrimoniais para o AFETO. A família é a sede do afeto e nicho de realização do ser humano. O item de especial ênfase e consideração em sede da família é a pessoa, os integrantes da entidade familiar;
ESTABILIDADE – não seria toda e qualquer união afetiva digna de reconhecimento como entidade familiar mas aquela duradoura cuja afetividade se protrai no tempo;
FIDELIDADE;
OSTENSIVIDADE – não se nos afigura familiar a entidade estabelecida às ocultas, de forma clandestina. A família, enquanto espaço de afeto e amor entre seus integrantes impõe-se como tal diante de todos;
“INTENÇÃO DE FAMÍLIA” – trata-se de um requisito subjetivo importante para a configuração da família. Seria, portanto, a affectio familiae em que os integrantes da entidade relacionem-se entre si como uma família merecedora do amparo do Estado como tal.
Sob essa perspectiva pode-se identificar, exemplificativamente, alguns tipos de entidades familiares, quais sejam, comunidade de parentes (exs.: irmãos, tios/sobrinhos, primos, avós/netos etc.); comunidade de pessoas que se unem por laços de afetividade – sem finalidade sexual ou patrimonial (ex.: duas senhoras idosas que não querem viver em asilo); família monoparental; comunidade decorrente da generosidade humana: entidades constituídas pelos filhos de criação, ou seja, vínculo afetivo paterno/materno sem que haja necessariamente filiação biológica ou adotiva; união concubinária – estável: -entre homem e a mulher; -entre homem e homem; -entre mulher e mulher,conforme uma perspectiva homo ou heterossexual.
A proteção do Estado conferida à entidade familiar abrange diversos aspectos podendo-se mencionar, exemplificativamente, a impenhorabilidade do Direito de Família (Lei 8009), a proteção da locação residencial familiar (Lei 8245), direito fundamental à moradia da família: usucapião especial – arts. 183 e 191 da Constituição da República.
Conclui-se, portanto, que segundo os melhores critérios de interpretação constitucional, existe uma cláusula de inclusão para implicitamente abranger como entidades familiares uniões afetivas outras que não somente as advindas do casamento, união estável entre homem e mulher e entidade monoparental.
A norma de proteção à entidade familiar tem como foco a personalidade de cada integrante (vide parágrafo 8 do art. 226 da Constituição da República); o valor é a pessoa e a família, enquanto locus de AFETIVIDADE, realiza e dá consistência ao PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA.
Sobre o tema, prestigia-se os princípios de IGUALDADE (entre as entidades familiares), LIBERDADE de escolha das pessoas em relação à opção de constituição da entidade familiar que melhor se adapta a sua integridade psicológica e AFETIVIDADE.
Trata-se de concretização dos PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS e defesa da efetividade dos Direitos Fundamentais contemplados na Lei Maior: LIBERDADE, IGUALDADE, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
3.3 - UMA RÁPIDA ABORDAGEM DE DIREITO COMPARADO.
Inicialmente, importante fazer alusão à Resolução do Parlamento Europeu, datada de 8 de fevereiro de 1994, sobre a paridade de direitos para os homossexuais da Comunidade Comum Européia . Nela, entre outras considerações, afirma-se que “a Comunidade Européia tem o dever, em todas as normas jurídicas já adotadas e nas que serão adotadas no futuro, de dar realização ao princípio de igualdade de tratamento das pessoas, independentemente de suas tendências sexuais”. Ademais, solicita que a Comissão Européia apresente proposta de Recomendação aos Estados-Membros sobre a igualdade de direitos para os homossexuais, inclusive acesso a produção de efeitos jurídicos em decorrência da união (alimentos, direito sucessório e previdenciário e, inclusive, possibilidade de adoção).
Diversos países europeus garantem hoje proteção jurídica às relações homossexuais. A Dinamarca, desde 1989, a Noruega e a Suécia desde 1995, a Islândia desde 1996, através da chamada "parceria" ou "convivência registrada" reconhecem direitos e obrigações mútuas, de assistência moral e material, entre pessoas do mesmo sexo, maiores e plenamente capazes.
Na Holanda existe a parceria registrada e, a essa disciplina jurídica dirige-se não somente aos homossexuais ou mas para todos os que não querem ou não podem se casar. Há também a possibilidade do "contrato coabitação" tendo validade inter partes. É possível, inclusive, a guarda conjunta de filho de um só dos conviventes.
Na França, em outubro de 1999, foi aprovado na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 207 sobre “Pacte Civil de Solidarité”, conhecido como PaCS que atribui a casais não unidos pelo matrimônio, sejam heterossexuais ou homossexuais, um conjunto abrangente de direitos e deveres recíprocos.
A legislação catalã é, até o momento, a mais avançada no que diz respeito à paridade de direitos entre casais heterossexuais e homossexuais. Em junho de 1998, o parlamento catalão aprovou lei única a regular as uniões estáveis, tanto heterossexuais quanto homossexuais. Há uma espécie de paridade entre a união hetero e a homo no que se refere à proteção jurídica.
Os diversos ordenamentos assumem posições que vão da ilicitude à indiferença, passando pela atribuição de efeitos jurídicos mais ou menos completos, embora de menor amplitude em comparação com a relação heterossexual.
4. SERIA POSSÍVEL COGITAR A INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA DO ARTIGO 226 §3º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL?
Dispõe o art. 226 §3º da Constituição da República Federativa do Brasil ipsis literis:
“Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
A norma, ao exigir a dualidade de sexo, não estaria por encobrir uma discriminação à orientação sexual e, por via de conseqüência, violando o postulado de igualdade, de liberdade de escolha, de proteção à personalidade e de respeito à dignidade humana, princípios constitucionais evidentes?
Parece paradoxal a Constituição violar-se a si mesma. Como fundamento de validade das normas hierarquicamente inferiores, situa-se no vértice da pirâmide normativa.
Nada obstante, para os que defendem a possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais , suscita-se a invalidade de uma norma constitucional em virtude de contradição com outra norma constitucional de grau superior. Sob esse enfoque, o constituinte derivado ao editar uma certa disposição constitucional, coloca-se em contradição com disposições do constituinte originário (no que se refere a normas de raiz ou principiológicas) ensejando a apontada incompatibilidade .
Esta concepção rejeita a suposição de que toda e cada uma das disposições da carta constitucional é da mesma índole e do mesmo grau que qualquer outra disposição desta mesma Carta Constitucional, assim como em toda e qualquer lei podem existir preceitos de importância maior ou menor ou que se chocam entre si.
Numa outra visão, mencionam os autores a possibilidade de ocorrência da chamada MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL, casos em que determinadas normas constitucionais ficariam automaticamente obsoletas por uma não adequação à nova realidade fática subjacente. Assim, os preceitos constitucionais reclamariam interpretação adequada à exigência da realidade. Esta interação com a realidade permite considerar a Constituição como uma ordem aberta .
Mas, reitera-se: entender que o disposto no §3º do art. 226 da CR afasta as denominadas uniões homoafetivas da proteção às entidades familiares não violaria postulados fundamentais inseridos na própria Constituição?
Inicialmente, deve-se reconhecer uma mudança de paradigma no que se refere a interpretação finalística das normas que consignam direitos fundamentais: estas é que condicionam e adequam a ordem jurídica e não, o contrário. Nestes termos, há uma vinculação do Executivo, Legislativo e Judiciário aos direitos fundamentais, eis que não se postam mais como limites de atuação do Poder Público, mas consistem em tarefas a cumprir e exigem do Estado muito mais do que o dever de abstenção - exigem uma atividade prospectiva .
Ressalte-se que o sistema jurídico pátrio (princípio da UNIDADE HIERÁRQUICO-NORMATIVO da CR) não admite a declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais, exceto no caso de emendas ou de revisão constitucional, sujeitas ao controle de constitucionalidade, bem como de normas e de princípios da Constituição Estadual que violem a Constituição Federal.
Pelo princípio da unidade, a Constituição deve ser interpretada de forma a evitar confrontos entre as suas normas, as chamadas antinomias. A Constituição deve ser interpretada na sua globalidade, procurando o intérprete harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais. Cada norma constitucional não é considerada isolada ou dispersa, mas como um preceito integrado num sistema interno unitário de normas e princípios .
Há, pois, uma coerência no discurso narrativo do sistema jurídico .
A conclusão a que se chega no presente trabalho quanto ao assunto de aparente inconstitucionalidade de norma constitucional é semelhante a da Mestranda em Direito Civil na Universidade Estadual de Maringá (PR) Érika Harumi Fugie para quem " (...) a tese (da inconstitucionalidadade) não é recepcionada pelo direito pátrio. E também não se tenciona, a pretexto de invocar a mutabilidade constitucional, apontar a necessidade de mudança brusca de sentido da norma do artigo 226, §3º, da Constituição Federal, a ponto de invocar uma crise de inversão da ordem jurídica até então estabelecida. Postula-se, não a expulsão da norma contradita, mas a leitura de outros preceitos inseridos na própria Constituição que permitem ampliar a sua eficácia. Assim, o postulado da dignidade da pessoa humana tem força suficiente para não retirar a eficácia que a norma do artigo 226, §3º, da Constituição Federal, à primeira vista, parece excluir. Não se declara sua nulidade, eis que o ordenamento constitucional só a permite em duas situações.(...)". - in "Inconstitucionalidade do Artigo 226 § 3º da Constituição Federal?".
De fato, no caso em comento, deve-se buscar uma interpretação sistêmica da Constituição da República Federativa do Brasil. Não é possível a leitura do §3º do art. 226 da CR de forma isolada. Se é verdade que para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher, também é pertinente a afirmação de que ninguém poderá ser discriminado em razão de sua respectiva orientação sexual tendo em vista que a livre manifestação da sexualidade é componente integrante da personalidade do ser humano e como tal deve ser protegido por se tratar de direito fundamental.
A realização da pessoa humana e valorização de sua dignidade é preceito postulado pela Constituição, cuja força normativa está evidenciada no preâmbulo e no artigo 1º, inciso III , princípio da liberdade e no princípio da igualdade humana, consagrado nos artigos 3º, inciso IV , e 7º, inciso XXX .
O disposto no §3º do art. 226 da CR não exclui o reconhecimento de uniões homoafetivas como entidade familiar (desde que presentes requisitos configuradores de união estável) e como tal, passível de produção de efeitos à nível de alimentos, partilha de bens, usufruto vidual, habitação, direito sucessório, direito previdenciário, indenização por dano moral etc.
Portanto, através de interpretação harmônica de seus preceitos, verifica-se que a CR do Brasil, em seu §3º do art. 226 disse menos do que deveria comportando, ipso facto, interpretação extensiva para alcançar a proteção de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Somente desta forma consegue-se dar EFETIVIDADE ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana .
5. SOLUÇÃO APRESENTADA PELO PRESENTE TRABALHO: INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DO DIREITO.
Muitos operadores do Direito pátrio, em verdade, a maioria, inspirados por razões conservadoras e por padrões de normalidade ditados pela cultura dominante, ou, ainda, por valores impregnados por conceitos religiosos e moralmente predominante limitam-se a invocar uma interpretação gramatical do §3º do art. 226 da Constituição da República Federativa do Brasil para entender como inconstitucional qualquer tentativa de juridicizar as uniões homoafetivas.
Isto porque o supramencionado dispositivo constitucional refere-se exclusivamente à união estável entre um homem e uma mulher.
Neste sentido, a pretensão de reconhecimento de união estável entre casais homossexuais é tida como pedido juridicamente impossível à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Invoca-se, pois, a par da acima aludida inconstitucionalidade, a inexistência de uma legislação específica que tutele o caso concreto.
Neste limitado trabalho, pretende-se apresentar a problemática da proliferação de casos práticos configuradores de uma realidade familiar homoafetiva e oferecer uma solução que venha a disciplinar juridicamente tais ocorrências.
Invoca-se, pois, a interpretação sistemática, os princípios de interpretação da constituição e os métodos de integração do Direito para tutela dos homossexuais.
Inicialmente, mister invocar a melhor Hermenêutica Jurídica para fixar os princípios que regem a Interpretação do Direito.
Segundo CARLOS MAXIMILIANO: “Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar”.
O sistema de hermenêutica e aplicação do Direito que melhor se coaduna com a busca do espírito da lei é o método sistemático ou sintético.
O jurisconsulto serve-se do conjunto das disposições no sentido de construir, com materiais esparsos em centenas de artigos, um todo orgânico, metódico.
Observe-se que nossa Constituição da República, conforme se infere da leitura dos dispositivos citados no capítulo anterior, demanda uma interpretação harmônica que conjugue as normas existentes em todo texto constitucional de forma a manter-se a idéia de sistema coerentemente concatenado.
Não é possível pretender interpretar, exemplo gratia, isoladamente, algum dispositivo contido na Constituição. Nesse sentido, a interpretação gramatical de uma única norma, dissociada do contexto legal na qual está inserida revela-se perniciosa.
Desta forma, deve-se buscar analisar o sentido da norma consignada no §3º do art. 226 da Constituição da República Federativa do Brasil em cotejo com os demais preceitos e princípios constitucionais.
O ordenamento jurídico é um todo harmônico! Imaginar-se o contrário levar-nos-ia à incoerente conclusão no sentido da existência de contradições insuperáveis.
Defende-se, pois, o método sistemático de interpretação.
Consiste o Processo Sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto. Por umas normas se conhece o espírito das outras. Procura-se conciliar as palavras antecedentes com as conseqüentes, e do exame das regras em conjunto deduzir o sentido de cada uma.
Deveras, é inquestionável a excelência do processo sistemático de interpretação.
Há uma idéia de sistema, uma coerência interna no texto constitucional onde predomina a JUSTIÇA e extirpa todas as tendências discriminatórias.
Nesta harmonia constitucional torna-se intolerável a existência de preconceitos ou interpretações excludentes baseados em questões de orientação sexual. Ao revés, a sexualidade humana é melhor assimilada como manifestação da personalidade e parte integrante da saúde psíquica e emocional do indivíduo. Adquire foro constitucional a questão da garantia de liberdade de expressão (incluindo-se, neste particular, a livre escolha da orientação sexual intimamente relacionada com a saúde mental).
A escolha da forma de manifestação do amor e expressão de afetividade integra a parte da vida íntima e privada do ser humano e é merecedor de amparo estatal sob pena de vulnerar-se os mais lídimos reclamos da JUSTIÇA.
Ademais, torna-se inquestionável que o prestígio às desigualdades consubstancia tratamento desumano e degradante, o que, por certo, é peremptoriamente rechaçado pelas normas constitucionais.
O texto constitucional é claro. Não se tratam de meras normas programáticas desprovidas de força cogente. Qualquer aplicação do Direito que consagre preconceitos é inconstitucional por violar expressa disposição da Carta Magna!
Os princípios constitucionais (tais como, a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa humana) são o conjunto de normas que espelham a ideologia da constituição, seus postulados básicos e seus fins ou, em outras palavras, são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui.
Em clássica passagem, escreveu Celso Antônio Bandeira de Mello:
“ Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais (...)”.
Ressalte-se que o constitucionalista LUÍS ROBERTO BARROSO menciona como Princípios de Interpretação Constitucional os da Supremacia da Constituição, da Presunção de Constitucionalidade das Leis e dos Atos do Poder Público, da Interpretação Conforme a Constituição, da Unidade da Constituição, da Razoabilidade e da Proporcionalidade e o da Efetividade.
Integra as básicas noções jurídicas a idéia de que não é possível alegar lacuna da lei para deixar de disciplinar determinado caso concreto que bate às portas do Judiciário. Inexistindo norma específica que discipline determinados casos concretos, recorre-se à analogia, os costumes e aos princípios gerais de direito, na ordem ora mencionada.
O objeto do presente trabalho aborda a questão atinente à configuração de união estável estabelecida entre pessoas do mesmo sexo (e todas as conseqüências daí advindas: patrimoniais, previdenciárias, sucessórias etc.) sob o tema de Direitos Humanos e Orientação Sexual: A Efetividade do Princípio da Dignidade.
De fato, inexiste no Direito Brasileiro legislação específica que tutele hipóteses que tais.
No entanto, a lacuna da lei não serve de justificativa para deixar de oferecer tutela aos casos concretos que batem à porta do Judiciário demandando pela aplicação de justiça.
Mister fazer-se uma atividade de Integração do Direito.
Sugere o presente trabalho o recurso à analogia para aplicar aos casos de uniões homoafetivas a legislação infra constitucional editada para tutela de uniões estáveis entre homem e mulher.
A analogia consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante.
Ora, a analogia baseia-se na presunção de que duas coisas que têm entre si um certo número de pontos de semelhança possam consequentemente receber o mesmo tratamento jurídico. As figuras jurídicas da união estável entre pessoas de sexo distinto e entre pessoas do mesmo sexo têm vários pontos de semelhança, em especial, os fundamentais para configuração do instituto da união estável como entidade familiar, quais sejam: estabilidade, fidelidade, união de esforços, aparência familiar e afetividade.
Os fatos de igual natureza devem ser regulados de modo idêntico: Ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio; “onde se depare razão igual à da lei, ali prevalece a disposição correspondente, da norma referida” – era o conceito básico da analogia em Roma.
Funda-se a analogia no princípio de verdadeira justiça, de igualdade jurídica, o qual exige que as espécies semelhantes sejam reguladas por normas semelhantes.
Partindo-se da idéia de que é CONSTITUCIONAL e, portanto, juridicamente possível o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo (inclusive em atenção aos Princípios de Interpretação da Constituição e efetividade de seus comandos e valores, notadamente, Direito à LIBERDADE, IGUALDADE, DIGNIDADE), propõe o presente trabalho o recurso à analogia para aplicação às uniões homoafetivas a legislação infra constitucional que disciplina união estável entre homem e mulher, vale dizer, Leis 8.971/94 e 9.278/96 bem como as disposições consignadas no Título III (arts. 1.723 a 1727) da Lei nº 10.406/02 - novel Código Civil .
6. CONCLUSÃO.
O presente trabalho buscou instigar uma reflexão sobre as repercussões do estado sexual no âmbito do Direito de Família, a relação entre os Direitos Humanos e a Liberdade de orientação sexual, interpretação constitucional que melhor se coaduna com a efetividade do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e apresentar algumas soluções.
A sexualidade comporta variantes e a sociedade exige uma resposta nos moldes dos padrões estabelecidos segundo variáveis conceitos culturais. Ao se fugir destes padrões, emerge o embate. Nestes casos há a necessidade de uma disciplina jurídica que autorize a efetiva tutela desses direitos ditos "anormais".
Neste limiar do milênio, deve-se levar em conta todas as profundas transformações ocorridas nos valores sociais bem como os obstáculos transpostos pelo Direito de Família.
Com a Constituição da República de 1988, destacou-se outras formas de constituição familiar (a par da oriunda do sacramentalizado matrimônio) tais como a união estável e as famílias monoparentais. Contempla-se, pois, a espontaneidade na união de pessoas determinadas a alcançar uma objetivo familiar (affectio familiar). A tônica assenta-se no AFETO e na realização da pessoa humana. Esse o sentido das normas de caráter principiológico que informam a Constituição da República: valorização do ser humano e busca da efetivação de sua respectiva dignidade. Entende-se o art. 226 da Carta Magna como uma cláusula geral de inclusão a comportar um rol exemplificativo de entidades familiares. Nesse contexto, presentes os requisitos legais para configuração de família extra matrimonial (estabilidade, publicidade, afetividade, continuidade e intenção familiar) deve-se assegurar a produção de efeitos tanto a nível patrimonial (alimentos, partilha de bens, direitos sucessórios, previdenciários etc) como pessoal. Nesse último caso, inclui-se as relações homoafetivas tendo em vista que as entidades familiares devem receber tratamento igualitário.
Há uma mudança de ótica. Da idolatria aos direitos patrimoniais (de propriedade, relações contratuais etc) passa a ordem jurídica, notadamente a constitucional, a enfocar a realização da pessoa humana, a disciplina da proteção integral ao ser humana e efetividade dos Direitos Fundamentais. A ênfase do sistema jurídico pátrio está na personalidade, ou seja, a orientação da Constituição brasileira trata de promover a dignidade humana. Neste sentido, em sede de Direito de Família, a preocupação está dirigida à proteção dos filhos, garantir a efetividade dos direitos da personalidade dos integrantes da entidade familiar, independentemente do ato solene do matrimônio.
A família não é tão somente a sede de realizações econômicas e o centro legitimado de reprodução e sim, fundamentalmente, a instituição do amor, a união das pessoas com base no afeto. A idéia central é a realização do ser humano como tal e não como um receptáculo dos preconceitos da sociedade.
Deve-se levar em consideração que as estruturas escritas (ordenamento jurídico positivo), nem sempre correspondem ou são eficazes para atender as novas demandas que surgem, é dizer, as especificidades dos casos concretos. Esta realidade é nitidamente detectável nas relações interpessoais nas quais se incluem as diferentes manifestações da sexualidade.
O grau de repulsa, tolerância ou receptividade das diferentes manifestações de orientação sexual variam em consonância com o desenvolvimento cultural da sociedade. Às vezes, a convivência de pessoas do mesmo sexo é considerada repugnante, desmerecedora de atenção, constituída à margem das instituições juridicamente reconhecidas. Em princípio, a homossexualidade foi considerada uma enfermidade psicopatológica, algo reprimida pela moralidade e pela religião cristã; gradativamente alcançou espaço enfrentando a intolerância.
Apesar de a realidade homossexual seja cada vez mais aparente, no campo jurídico há uma certa resistência à reflexão sobre a matéria. Nada obstante, é inegável que as relações afetivas de pessoas do mesmo sexo afloram, saem da clandestinidade requerendo um tratamento social e jurídico digno.
O contexto da sexualidade sofre uma mudança de ótica comparado ao itinerário valorativo do divórcio. Antes, por influências religiosas, havia uma grande oposição à dissolução do matrimônio e depois, gradativamente, a idéia de divórcio foi incorporada à mentalidade da sociedade e, por via de conseqüência , a legislação teve que acompanhar o progresso cultural. Neste sentido, é possível afirmar que pouco a pouco as manifestações da sexualidade divergentes dos antigos modelos de normalidade são mais facilmente aceitáveis como emanação da personalidade. Há, portanto, uma melhor compreensão das questões de orientação sexual como vertente dos direitos humanos cuja livre manifestação merece proteção e reconhecimento por parte do Estado.
Não há propriamente uma restrição inconstitucional consignada no §3º do art. 226 da Constituição da República (reconhecimento da união estável entre homem e mulher e o objetivo do Estado de facilitar sua conversão em casamento) tendo em vista que é possível fazer uma interpretação sistemática dos diversos dispositivos constitucionais que tratam da matéria para fins de amparar a união entre pessoas do mesmo sexo. Harmonizando-se todos os preceitos que consagram a valorização da pessoa humana mediante a previsão constitucionalmente positivada dos Princípios da Dignidade e seus corolários (igualdade, liberdade etc) conclui-se que não há inconstitucionalidade da norma constitucional mas apenas uma omissão perfeitamente suprível pela atividade integradora dos aplicadores e fiscalizadores do Direito. É possível mencionar, na idéia de sistema, os comandos incluídos pelo constituinte originário no art. 1º inc. I, art. 3º e IV, art. 5º caput incs. I, II e III e parágrafo 2º, art. 7º inc. XXX, art. 226 §§2º e 3º entre outros da Constituição da República Federativa do Brasil e seu respectivo preâmbulo.
Na lacuna da lei cabe a atividade de integração do direito conforme os recursos legais previstos no art. 4º da LICC.
A união estável entre homem e mulher ou entre pessoas do mesmo sexo alcançam o mesmo pressuposto, um denominador comum, qual seja, o afeto, requerendo, portanto, tratamento jurídico igualitário. Por inspiração de um princípio de igualdade ante a lei e de equidade, as mesmas situações necessitam do mesmo tratamento jurídico (analogia).
Verifica-se que o propósito de ambas uniões (heterossexuais e homossexuais) é o mesmo: vida em comum, construção de patrimônio comum, empreendimento de esforços, reciprocidade nos projetos, afetividade, propósito familiar e desejo de prole, seja esta natural ou social. Por um princípio de hermenêutica jurídica, em uma atividade de integração do Direito, para tutelar situações semelhantes em relação às quais não há uma disciplina específica, recorre-se à analogia. Assim, para disciplinar as uniões homoafetivas, sugere este trabalho a aplicação da legislação pertinente à união estável entre homem e mulher.
A exemplo do que ocorreu com as uniões estáveis de pessoas de sexo distinto, as uniões homoafetivas, quando reconhecida a sua existência, ainda são relegadas ao Direito das Obrigações por se vislumbrar uma mera sociedade de fato.
Nesse contexto, tenho por certo que, seguindo a mesma evolução jurídica no que se refere ao regulamento das uniões estáveis entre heterossexuais, devem as ações que pretendem o reconhecimento de união estável entre homossexuais ser processadas nas Varas de FAMÍLIA e não, nas varas cíveis.
Ressalte-se que o presente trabalho não pretende amparar os desejos sexuais homoeróticos levados às últimas conseqüências mas tem por objetivo enfocar a questão da livre manifestação da sexualidade como emanação da personalidade, a possibilidade de constituição de uniões afetivas marcadas pela assistência e respeito mútuos e pelos amor.
O trabalho se propõe a desmistificar os preconceitos existentes e apresentar soluções compatíveis com a efetividade dos Direitos Humanos. Aliás, a este propósito, é fundamental a conscientização dos operadores do Direito em geral e a atuação destemida e imparcial (inclusive a nível axiológico) do MINISTÉRIO PÚBLICO em especial.
De fato, "O Preconceito está ainda mais longe da verdade do que a ignorância." (Diderat, Carta sobre os Surdos-Mudos).
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