Artigos
O divórcio unilateral ou impositivo
O divórcio unilateral ou impositivo[1]
Flávio Tartuce[2]
A Emenda do Divórcio (EC 66/2010) trouxe como principal impacto prático a facilitação do divórcio, não havendo mais menção, no art. 226, § 6º, da Constituição Federal, ao prazo mínimo para o seu requerimento, muito menos à prévia separação judicial. Apesar de a questão estar pendente de resolução no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu repercussão geral sobre o tema neste mês de junho de 2019, quando da análise do Recurso Extraordinário n. 1.167.478, sigo o entendimento segundo o qual a separação de direito – a incluir as modalidades judicial e extrajudicial –, não subsiste mais no sistema jurídico nacional.
A par dessa facilitação – e também diante de uma sadia tendência de desburocratização e de extrajudicialização –, a Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco editou norma administrativa, elaborada pelo Desembargador Jones Figueirêdo Alves, no sentido de permitir o divórcio diretamente no Cartório de Registro Civil, no que se denomina divórcio unilateral ou impositivo (Provimento n. 06/2019). A medida acabou por ser reproduzida pela Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Entretanto, em decisão prolatada em pedido de providências instaurado de ofício, no final de maio deste ano de 2019, o Corregedor-Geral do Conselho Nacional de Justiça decidiu suspender as medidas administrativas, recomendando que os Tribunais Estaduais não editem normas no mesmo sentido. Segundo o Ministro Humberto Martins, existiriam dois óbices jurídicos no provimento do Estado de Pernambuco (CNJ, Pedido de Providências n. 0003491-78.2019.2.00.0000).
O primeiro teria natureza formal, uma vez que o divórcio unilateral ou impositivo implicaria a inexistência de consenso entre os cônjuges, presente uma forma de divórcio litigioso. Sobre essa modalidade, segundo o julgador, não há amparo legal para que seja efetivada extrajudicialmente, mas apenas por meio de uma sentença judicial, nos termos do que consta dos arts. 693 a 699 do vigente Código de Processo Civil. O Ministro Humberto Martins acrescentou que por haver matéria atinente ao Direito Civil e ao Processual Civil há competência exclusiva da União para tratar do seu conteúdo e por meio de lei federal, nos termos do art. 22, incisos I e XXV, da Constituição da República. Sendo assim, não seria possível tratar do tema por meio de uma norma de cunho administrativo no âmbito da Corregedoria Geral de Justiça de uma Corte Estadual.
Do ponto de vista material, o Corregedor-Geral de Justiça do CNJ pontuou que o Provimento n. 06/2019 do TJPE não observou o princípio da isonomia, “uma vez que estabelece uma forma específica de divórcio no Estado de Pernambuco, criando disparidade entre esse e os demais Estados que não tenham provimento de semelhante teor”. Nesse contexto, caso mantida a sua vigência, haveria uma “consequência gravíssima para a higidez do direito ordinário federal, cuja uniformidade é um pressuposto da Federação e da igualdade entre os brasileiros. A Constituição de 1988 optou pela centralização legislativa nos mencionados campos do Direito. Ao assim proceder, o constituinte objetivou que o mesmo artigo do Código Civil ou do Código de Processo Civil fosse aplicado aos nacionais no Acre, em Goiás, em Natal, em São Paulo, no Rio Grande do Sul e nos demais Estados. Quando houver aplicação divergente dessas normas, entrará a função uniformizadora do Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal da Cidadania, por meio do recurso especial. Aceitar que um tribunal local legisle, embora não se utilize essa terminologia no texto do Provimento n. 06/2019, é o mesmo que negar a existência do Superior Tribunal de Justiça e suas funções constitucionais”.
Por fim, está destacado no decisum que o único meio de se buscar o divórcio extrajudicial no atual sistema jurídico é pela via consensual, mediante escritura pública lavrada de comum acordo pelos cônjuges perante o Tabelionato de Notas, nos termos do que consta do atual art. 733 do Código de Processo Civil de 2015. E arremata o Ministro Corregedor Humberto Martins: “desse modo, o ‘divórcio impositivo’, trazido pelo Provimento n. 06/2019, ao dispor que uma das partes poderá comparecer ao registro civil para requerer o divórcio, desconsidera o fato de que não existe consenso por parte do outro cônjuge (hipótese em que o divórcio deverá ser realizado judicialmente)”.
Pois bem, diante desses argumentos, que são bem plausíveis e fortes juridicamente, notadamente do ponto de vista formal, resolvemos propor ao Senador Rodrigo Pacheco, de Minas Gerais, projeto de lei tratando do divórcio unilateral ou impositivo (PLS 3.457/2019). O texto foi claramente inspirado pela norma administrativa do Tribunal de Pernambuco, tendo sido revista por mim e pelos Professores Mario Luiz Delgado e José Fernando Simão, além do próprio Desembargador Jones Figueirêdo Alves. De todo modo, destaco que prefiro falar doutrinariamente em divórcio unilateral, havendo certa correspondência à resilição unilateral prevista para os contratos em geral e tratada pelo art. 473, caput, do Código Civil.
A ideia é incluir um art. 733-A no vigente Código de Processo Civil, o que afasta todos os óbices – formal e material – apontados pelo Ministro Humberto Martins em sua decisão no âmbito do Conselho Nacional de Justiça. Conforme o texto proposto, na falta de anuência do outro cônjuge para a lavratura da escritura, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os demais requisitos legais, qualquer um dos cônjuges poderá requerer, diretamente no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais em que lançado o assento do seu casamento, a averbação do divórcio, à margem do respectivo assento.
Esse pedido de divórcio unilateral será subscrito pelo interessado e também por advogado ou Defensor Público, constando a qualificação e a assinatura do cônjuge do pedido e da averbação levada a efeito. Sucessivamente, o cônjuge não anuente será notificado pessoalmente, para fins de prévio conhecimento da averbação pretendida. Na hipótese de não ser encontrado o cônjuge notificando, ocorrerá a sua notificação por edital, após insuficientes as buscas de endereços constantes das bases de dados disponibilizadas ao sistema do Poder Judiciário.
Também está previsto na proposta legislativa que, depois de efetivada a notificação pessoal ou por edital, o Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais procederá, em cinco dias, à averbação do divórcio unilateral. Se for o caso, em havendo no pedido de averbação do divórcio cláusula relativa à alteração do nome do cônjuge requerente, com a retomada do uso do seu nome de solteiro, o Oficial de Registro Civil que averbar o ato no assento de casamento também anotará a alteração no respectivo assento de nascimento, se de sua unidade, ou, se de outra, comunicará ao Oficial competente para a necessária anotação.
Além dessa possibilidade de alteração do nome, nenhuma outra pretensão poderá ser cumulada ao pedido de divórcio unilateral, especialmente as relativas aos alimentos familiares, ao arrolamento e à partilha de bens, ou mesmo relacionadas a medidas protetivas, que serão tratados pelo juízo competente, ou seja, somente no âmbito do Poder Judiciário. Concretiza-se, assim, a ideia doutrinária segundo a qual o pedido único e isolado de divórcio passou a ser um direito potestativo do cônjuge, notadamente se não estiver cumulado com outros pleitos de natureza subjetiva. Em havendo direito potestativo, não há como haver resistência da outra parte, que se encontra em estado de sujeição.
Muitas são as situações concretas em que essa modalidade de divórcio unilateral traz vantagens práticas. Primeiro, cite-se a hipótese em que o outro cônjuge não quer conceder o fim do vínculo conjugal por mera “implicância pessoal”, mantendo-se inerte quanto à lavratura da escritura de divórcio consensual e negando-se também a comparar em juízo. Segundo, podem ser mencionados os casos em que um dos cônjuges encontra-se em local incerto e não sabido, ou mesmo desaparecido há anos, não podendo o outro divorciar-se para se casar novamente. Por fim, destaquem-se as situações de violência doméstica, em que o diálogo entre as partes é impossível e deve ser evitado, sendo urgente e imperiosa e decretação do divórcio do casal. Em todos esses casos, decreta-se o divórcio do casal, deixando o debate de outras questões para posterior momento.
Como últimas palavras para este breve texto, como bem pontuado pelo Professor e Registrador Gustavo Canheu, além dessa mudança no Código de Processo Civil, é preciso alterar a Lei n. 8.935/1994 (Lei dos Cartórios) e a Lei n. 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), para que seja introduzida expressamente a competência dos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais para o registro dessa nova modalidade de divórcio unilateral.
Espera-se que o projeto de lei siga adiante, e com especial atenção do Congresso Nacional quanto à sua imperiosa agilidade e pertinência, diminuindo formalidades que ainda persistem no sistema jurídico brasileiro e facilitando a vida das pessoas. Eventuais alterações no texto do projeto serão feitas no âmbito do processo legislativo, inclusive quanto a novas sugestões de alteração do texto que possam surgir e sejam apresentadas a nós, idealizadores dessa iniciativa.
[1] Coluna do Migalhas de junho de 2019.
[2] Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito Civil USP, cursando estágio pós-doutoral em Direito Civil na mesma Faculdade. Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP - Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Coordenador e Professor dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD – Escola Paulista de Direito. Diretor nacional e estadual do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado, parecerista e consultor jurídico em São Paulo.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM