A EC 66/2010, ao alterar a norma contida no artigo 226, parágrafo 6º, da Carta Magna, deu nova roupagem jurídica ao instituto do divórcio, ao caracterizá-lo como direito potestativo, livre de quaisquer amarras de prazo ou condição.
Se dúvidas havia, espancadas foram. Com a inovação constitucional, sacramentou-se que ninguém está obrigado a permanecer unido a outrem se não for da sua vontade.
A natureza jurídica do casamento sempre foi objeto de muitas e intermináveis controvérsias, desde a sua caracterização como instituto de direito público ou privado, até a sua natureza contratual ou institucional, como bem discorre Orlando Gomes[1].
O certo é que no casamento encontramos distintos núcleos irradiadores de direitos e obrigações, de distintas naturezas. Vislumbram-se núcleos de feição de negócio bilateral (por exemplo, a escolha do regime jurídico dos bens), núcleos de feição de negócio jurídico unilateral (como o ato de vontade de constituir o casamento) e núcleos institucionais (caso dos deveres para com a prole).
A distinção desses núcleos irradiadores de direitos e obrigações nunca ficou tão clara como depois do advento da EC 66/2010.
Não por outra razão, a Lei 11.441/2007, acrescendo o artigo 1.124-A ao Código de Processo Civil então vigente, viabilizou o fim da sociedade conjugal por meio de escritura pública, sem o controle jurisdicional, desde que não havendo filhos menores e incapazes. Desse modo, ausente o núcleo irradiador de direitos e obrigações de natureza institucional (existência de filhos menores ou incapazes), o casal, livremente, pode contratualmente, mediante escritura pública, distratar o casamento.
A exigência da escritura pública decorre do fato de que sendo objeto do ato jurídico o núcleo de caráter de negócio jurídico bilateral, somente por negócio bilateral poderá ele ser desconstituído (artigo 472 do Código Civil).
O Provimento 6/2019, da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de Pernambuco, tem por objeto o segundo núcleo de irradiação de direitos e obrigações enfeixado no casamento, o negócio jurídico unilateral, manifestado no ato potestativo de vontade consistente na declaração de casamento.
Vale aqui a remissão a Orlando Gomes[2]: “Quanto à formação do ato, a participação da autoridade pública não é o elemento essencial, mas o consentimento dos nubentes. O pronunciamento do juiz tem cunho declaratório, limitado na sua função a completar o ato de vontade dos nubentes; não lhe retirando a natureza de ato de direito privado”.
Vê-se, assim, que a constituição da sociedade conjugal se dá pela simples manifestação de vontade, sendo meramente declarada pelo agente do Estado. Há exercício de um direito potestativo, pela manifestação expressa de vontade.
Precisa é a lição de Carvalho Santos[3]: “A doutrina dominante, porém, é no sentido de que a declaração do juiz celebrante não é um dos elementos essenciais à conclusão do casamento; este será realizado desde o momento em que o nubente, que por último se pronunciou, deu o seu consentimento ou, para usar os termos do Código, fez a afirmação de que persiste no propósito de casar (...) Nem se argumente que a vontade do juiz não pode ser apenas o de constatar a vontade dos nubentes, pois é ele quem os declara casados em nome da lei. Por isso que importaria em esquecer que a declaração pressupõe necessariamente o ato consumado, vale dizer: não é a declaração que ultima o casamento, já consumado anteriormente. A declaração apenas constata, dá corpo, repercussão, na frase de CLÓVIS, ao que resolveram ao declarar os nubentes”.
Evidencia-se, nessa manifestação de vontade, o ato potestativo. Flávio Pimentel de Lemos Filho[4] aponta os caracteres fundamentais dos direitos potestativos: “a) poder jurídico conferido ao titular; b) declaração unilateral de vontade, realizável per se ou através de decisão judicial; c) estado de sujeição da contraparte; d) influência em situação jurídica preexistente; e e) produção de efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos”.
O ato normativo em questão tem seu espectro de incidência reduzido ao campo potestativo do casamento, não incidindo em seu aspecto negocial bilateral, tampouco no seu campo institucional.
Ponto a destacar é que essa manifestação potestativa de vontade não demanda, em si, forma solene.
Voltando às lições de Carvalho Santos[5], vemos:
“A afirmação de que persistem no propósito de casar geralmente é feita sob a forma de uma resposta afirmativa à pergunta que lhes dirige, a um e após ao outro, o juiz celebrante. Mas nada obsta que essa afirmação das partes seja manifestada por uma outra maneira, por escrito, ou por meio de sinais, se um dos contratantes é surdo (AUBRY et RAU, vol. 5, § 451 bis; DEMOLOMBE, cit., vol. 3, n.24).
Se o contraente ignora a língua portuguesa, poderá fazer a afirmação na língua que fala, servindo-se de um interprete (Cfr. CURTI FORRER, obr. cit., nota ao artigo 117; ESPÍNOLA, obr. cit., pag. 240).
(...)
É preciso que se esclareça ainda que o Código exige apena a afirmação dos nubentes, mas não diz em que termos deve ela ser feita. De onde a conclusão de que não há termos sacramentais.
Em regra, poder-se-á exigir que os nubentes respondam expressa e formalmente se servindo do vocábulo 'sim'. Poderá, entretanto, o juiz se contentar com qualquer outra manifestação de vontade, desde que lhe dê a certeza de uma resposta afirmativa (inclinação da cabeça, emprego das palavras: com alegria, certamente, naturalmente) (CURTI FORRER, obr. cit., nota ao art. 117)”.
Assim, como por um ato potestativo de vontade, o nubente, através de declaração sem forma solene, por palavra ou gesto qualquer, manifestou a sua adesão à sociedade conjugal, também por declaração potestativa de vontade, por simples palavra declarada ao registrador civil, poderá retirar da sociedade conjugal (CC, artigo 472), deixando que os aspectos contratuais, atinentes a outro núcleo irradiador de direitos e obrigações, sejam dirimidos através dos meios próprios e observadas as formalidades prescritas em lei.
Desnecessária a exigência de lei para formalização do divórcio impositivo previsto no ato normativo em análise.
Considerando que o artigo 472 do Código Civil exige para a desconstituição do negócio jurídico a forma exigida para a sua constituição e, como para a constituição do núcleo potestativo do casamento a declaração de vontade, como acima visto, não exige o ordenamento qualquer forma solene, igualmente, nenhuma forma solene é exigida para que o interessado manifeste a sua vontade de se retirar da sociedade conjugal.
Tenha-se, ainda, que a norma contida no artigo 104 do Código Civil assegura a vigência, em nosso ordenamento, do princípio da liberdade de forma para os atos jurídicos, sendo regra a forma livre.
Conjugando essas normas, a conclusão é que as normas vigentes são suficientes para servirem de fundamento de validade do Provimento 6/2019, da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Evidencia-se, por tudo que se expôs, que o ato normativo nada criou, apenas expôs aquilo que se escondia nas entranhas do ordenamento jurídico vigente, regulamentando o seu exercício.
[1] Gomes, Orlando. Direito de Família. Rio de Janeiro : Forense, 7ª ed., 2ª tiragem, pp. 46 a 51.
[2] Obr. cit., pag. 47.
[3] CARVALHO SANTOS, J. M. Rio de Janeiro : Livraria Freitas Bastos, 1961, 7ª ed., Vol IV, pp., 98-99.
[4] Lemos Filho, Flávio Pimentel de. Direito Potestativo. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2017, p. 33.
[5] CARVALHO SANTOS, J.M., obr. cit., pp.97-98.