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A admissibilidade das provas ilícitas nos processos de direito de família
A admissibilidade das provas ilícitas nos processos de direito de família
Fernando Baldez de Souza. Advogado. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter). E-mail: contato@fernandobaldez.adv.br
RESUMO: O presente artigo visa estudar a possibilidade de admissão das provas ilícitas nos processos de Direito de Família. Para tanto, serão apresentadas as noções gerais acerca da prova, perpassando entre a diferenciação de provas típicas e atípicas, o conceito de prova ilícita e o que diz a Constituição Federal sobre a temática. Por fim, verificar-se-á a possível utilização das provas produzidas ou obtidas por meio ilícito nos processos familiaristas como meio de convencimento, valendo-se do critério da proporcionalidade tendo em vista que não se pode ignorar a dificuldade que é a produção de prova em matéria de Direito de Família uma vez que os fatos normalmente ocorrem no interior do lar, entre quatro paredes.
PALAVRAS-CHAVES: Provas. Ilícitas. Direito de Família. Possibilidade. Excepcionalidade.
ABSTRACT: This article aims to study the possibility of admission of illegal evidence in Family Law cases. For this, the general notions about the evidence will be presented, ranging from the difference of typical and atypical evidence, the concept of illicit evidence and what the Federal Constitution says about the subject. Finally, it will be verified the possible use of the evidence produced or obtained by means of illicit in familiar processes as a means of convincing, using the criterion of proportionality in view that one can not ignore the difficulty that is the production of evidence in Family Law matters since the facts usually occur within the home, between four walls.
KEYWORDS: Evidence. Illicit. Family Rights. Possibility. Exceptionality.
- INTRODUÇÃO
Cada área do direito tem as suas características próprias e suas particularidades, isto é fato. Entretanto, na área do Direito de Família, observa-se a necessidade dos operadores que lidam nessa área de uma maior sensibilidade, notadamente por veicular temas de direito indisponível e personalíssimo.
Assim, cada causa de família deverá ser tratada na sua singularidade, casuisticamente, sob pena de fazer-se periclitar os interesses daqueles a quem a Lei garantiu especial e absoluta proteção.
Na busca de se comprovar os fatos alegados, quando do ajuizamento de uma ação judicial, temos o instrumento da prova. Não basta alegar e não provar, é necessário que se prove (ou pelo menos tente) aquilo que se está alegando, afirmando.
Nessa toada, muitas das vezes, dada a particularidade que muitas das demandas de família tem sua origem no âmbito da privacidade do lar, os jurisdicionados dão-se de frente com a dificuldade que é a captação e a própria produção da prova.
A promulgação da Constituição Federal em 1988, trouxe o que chamamos de direito fundamental à prova, que se extrai da interpretação do artigo 5º, incisos XXXV e LV, que positivam a garantia ao acesso à Justiça e, ainda, o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Ao outro lado, no mesmo artigo 5º, inciso LVI, a Carta Cidadã traz a inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito. O fundamento desta proibição encontra-se na proteção da intimidade, privacidade.
Na instrução dos processos de família, haverá situações onde se buscará comprovar fatos ocorridos na intimidade do lar (atos de alienação parental, abuso sexual, agressões, p. ex.) ou ainda o acesso a dados omitidos intencionalmente por parte do seu detentor.
Destarte, na intenção de comprovar tais fatos, as partes poderão se valer de escutas telefônicas, instalação de câmeras espiãs, acesso a e-mails, WhatsApp, SMS – sem o consentimento do titular das contas, bem como a quebra do sigilo bancário (para verificar a capacidade econômica do devedor de alimentos, p. ex.).
Em todos os exemplos anteriormente citados estaremos diante de um dilema: até que ponto as provas podem ser utilizadas nas demandas familiares? De um lado estará a proibição de utilização das provas obtidas por meio ilícito – enquanto regra – e, de outro, além do direito à prova, a depender do caso concreto, outros valores poderão estar em jogo que, de igual forma, necessitam de proteção.
Por meio do presente artigo busca-se analisar se em determinadas situações, tendo em vista as particularidades dos processos de família, da dificuldade que muitas vezes se apresenta a produção de provas, poderá, excepcionalmente, admitir-se a utilização das provas ilícitas nas demandas familiares.
- NOÇÕES GERAIS ACERCA DA PROVA
Segundo a definição de “Prova” no dicionário Houaiss (2008): “o que demonstra que uma afirmação ou fato são verdadeiros, evidência”. Do latim probatio, que significa prova, exame, verificação, inspeção, confirmação e que deriva do verbo probare, significando provar, ensaiar, verificar, demonstrar, persuadir alguém de alguma coisa etc.
Temos portanto, que o conceito de prova não é encontrado somente no campo do direito, exclusivamente. Mas, trata-se de noção encontrada em todos os ramos da ciência, como validação dos processos empíricos (MARINONI; ARENHART, 2011, p. 57). No âmbito dos processos jurisdicionais, fruímos que o principal objetivo é a efetivação de um determinado resultado prático favorável àquele que melhor provar a sua versão sobre o que aconteceu, de forma a convencer o julgador (DIDIER JR; OLIVEIRA, 2016, p. 43-44).
Nesse seguimento, temos que prova, em direito processual, é “todo meio retórico, regulado pela lei, e dirigido, dentro dos parâmetros fixados pelo direito e de critérios racionais, a convencer o Estado-juiz da validade das proposições, objeto de impugnação, feitas no processo” (DIDIER JR; OLIVEIRA, 2016, p. 59).
Há um brocardo latino Allegare nihil et allegatum non probare paria sunt que significa em tradução livre: “Nada alegar e não provar são coisas iguais”. Constata-se que a prova é um ônus, um encargo às partes, acaso objetivam um provimento jurisdicional favorável, conforme já visto, podendo aquele que não provar o quanto alegado ter o seu pedido julgado improcedente, ainda que de fato tenha razão.
O direito à prova encontra-se dentro dos princípios constitucionais da garantia de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF[1]), direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LV, CF[2]), uma vez que esse direito trata-se de elemento indissociável ao processo justo, que constitui toda a estrutura do direito processual civil (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 260).
Realmente, não há como sustentar que o acesso à Justiça – garantia constitucional – restringe-se ao direito de alegar os fatos ocorridos sem que haja o direito de provar essas alegações pelos meios necessários. Ora, se a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, garantindo aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, então também está garantido o direito fundamental à prova.
Acerca do conteúdo do direito à prova, entende a moderna doutrina:
O direito fundamental à prova tem conteúdo complexo.
Ele compõe das seguintes situações jurídicas: a) o direito à adequada oportunidade de requerer provas; b) o direito de produzir provas; c) o direito de participar da produção da prova; d) o direito de manifestar-se sobre a prova produzida; e) o direito ao exame, pelo órgão julgador, da prova produzida. (DIDIER JR; OLIVEIRA, 2016, p. 47)
A força de decisão do juiz está nas provas que a sustentam, uma vez que sua convicção está embasada na confirmação dos fatos trazidos aos autos de acordo com o art. 371 do CPC[3].
Ainda, caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito, podendo, indeferir, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias. (art. 370, caput e parágrafo único, CPC).
O art. 369, CPC, traz que as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.
Assinala-se que o artigo 369, menciona a “verdade” como o objetivo da prova. (DIDIER JR; OLIVEIRA, 2016, p. 54).
Necessário que se diga que essa verdade a que se refere o artigo 369, CPC, trata-se da busca não da verdade em si mas da sua convicção. O que se quer dizer é que, nas palavras de Fredie Didier Jr. “no processo, discutem-se as afirmações que são feitas acerca dos fatos – ou seja, as valorações, as impressões que as pessoas têm deles” (DIDIER JR; OLIVEIRA, 2016, p. 52). Dificilmente a prova conseguirá reconstruir fielmente um fato ocorrido no passado, o que se buscará é a formação no magistrado de um juízo de valor sobre os fatos demonstrados, um convencimento sobre as situações relatadas do que propriamente uma reconstrução dos mesmos (FARIAS, 2013, p. 104).
Sobre as consequências dessa diferenciação, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2011, p. 86):
A convicção da verdade é relacionada com a limitação da própria possibilidade de buscar a verdade e, especialmente, com a correlação entre essa limitação e a necessidade de definição dos litígios. Ou seja, o juiz chega à convicção da verdade a partir da consciência da impossibilidade da descoberta da sua essência, uma vez que é essa essência que demonstra a falibilidade do processo para tanto. Dessa tomada de consciência, para a conclusão de que o processo, apesar de tudo isso, não pode impedir a eliminação dos conflitos, é um passo.
Em resumo: o juiz, para pôr fim ao conflito, deve estar convicto, dentro das suas limitações, a respeito da verdade, uma vez que sua essência é impenetrável.
Outra lição que se extrai do art. 369, CPC, é que, ao passo que há o direito fundamental à prova, há também, limites ao seu exercício. O artigo retromencionado veda a utilização das provas ilícitas – em regra – e, também, das provas obtidas por meios moralmente ilegítimos.
Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça (2004, p. 5-6) é categórica ao afirmar que:
Inserido no âmbito do devido processo legal, o direito à prova deverá ser regularmente exercido, sob pena de violar a garantia do efetivo acesso à justiça. Entretanto, há limites ao exercício deste direito, balizando a atividade persecutória do Estado. O direito à prova não está só. Ao lado dele, existem outros direitos igualmente resguardados pela ordem constitucional.
Nesse sentido, temos o direito à privacidade, à honra, à intimidade, à imagem das pessoas, entre outros, que constituem limites à atuação do Estado no exercício de sua atividade persecutória e probatória (art. 5º, X, XI, XII, CF).
Sabe-se que o princípio de maior relevância em nosso ordenamento jurídico é o da dignidade humana, sendo, inclusive, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, o que nos faz concluir que, será possível admitir a utilização de provas ilícitas – notadamente nos processos de Direito de Família – quando houver de um lado o risco a supremacia dos direitos da pessoa humana, sua dignidade, etc., e do outro, os direitos elencados no parágrafo anterior em rota de colisão, utilizando-se do princípio da proporcionalidade que veremos oportunamente.
3 DAS PROVAS TÍPICAS E ATÍPICAS
Prova típica é toda aquela prevista em lei, como por exemplo a prova pericial, documental, testemunhal, confissão, prova emprestada, inspeção judicial e o depoimento pessoal.
Prova atípica é aquela, ao contrário da anterior, não encontrada no CPC, ou seja, podendo estar prevista em qualquer outra lei ou ainda, não ter previsão em lei alguma, sendo necessário, nesse caso, em conformidade com o art. 369, CPC, que seja lícita (regra) e moralmente legítima.
Essa exigência de compatibilidade da prova com a lei justifica a distinção entre provas ilícitas (violação de regras de direito material) e provas ilegítimas (violação de regras de direito processual), de modo a evitar que uma prova vedada (ilícita ou ilegítima) seja artificialmente qualificada de atípica como forma de viabilizar a sua admissão no processo. (AMARAL, 2017, p. 229)
Do mesmo modo, como forma de evitar a aplicação da prova atípica de forma abusiva, nas palavras de Daniel Amorim Assumpção Neves, não se deve “aceitar como prova atípica as provas típicas consideradas nulas ou inadmissíveis por não respeitarem as regras que disciplinam sua formação ou expressamente excluídas por normas de direito material ou processual”. (NEVES, 2016, p. 645)
4 DAS PROVAS ILÍCITAS
A doutrina costuma fazer uma diferenciação da natureza jurídica da norma violada, dividindo-a entre prova ilícita e prova ilegítima.
Prova ilícita seria aquela que violaria alguma(s) regra(s) de direito material, enquanto a prova ilegítima é aquela obtida com violação de alguma(s) regra(s) de direito processual (DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2016, p. 99-100). Poder-se-ia dizer que prova ilícita e prova ilegítima são espécies da qual é gênero a ilegalidade. (MENDONÇA, 2004, p. 33)
Todavia, independente da natureza jurídica da norma violada, tal prova, em regra, será proibida no processo, sendo, portanto, tal classificação, inútil ao nosso sentir.
A Constituição Federal traz em seu artigo 5º, inciso LVI que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Tal previsão trata-se de um direito fundamental do jurisdicionado de não ter contra si a produção de uma prova ilícita ou obtida ilicitamente.
Assim, temos como exemplo do que venha a ser prova ilícita a confissão obtida sob tortura, o depoimento da testemunha sob coação, a interceptação telefônica clandestina, a obtenção de prova documental mediante furto ou a obtenção de prova mediante invasão de domicílio, igualmente aquelas provas colhidas sem a observância do contraditório, ou aquelas provas obtidas com a violação de alguma regra de direito material e/ou processual, conforme já visto. (MENDONÇA, 2004, p. 33)
O referido art. 5º, inciso LVI, CF, não nega o direito fundamental à prova, mas visa limitar a atuação do Estado na busca da verdade e regular a sua atividade. Houve uma opção pelo direito material em detrimento do direito à descoberta da verdade. (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 327)
Lourival Serejo (2014, p. 29) ao abordar o tema das provas ilícitas, apresenta as seguintes correntes existentes sobre a sua admissão:
- Obstativa: considera-se inadmissível a prova obtida por meio ilícito, em qualquer hipótese e sob qualquer argumento, não cedendo mesmo quando o direito em debate mostra elevada relevância. Também conhecida como “teoria do fruto da árvore envenenada”, considera que o ilícito na obtenção da prova contamina o resultado havido;
- Permissiva: aceita a prova assim obtida, por entender que o ilícito se refere ao meio de obtenção da prova, e não a seu conteúdo;
- Intermediária: admite a prova ilícita, dependendo dos valores jurídicos e morais em jogo.
Apresentadas as correntes doutrinárias acerca da admissão ou não das provas ilícitas em processos judiciais, nos filiamos à corrente intermediária por entendermos ser a mais correta.
Esta corrente nega ser o princípio constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita absoluto – como nenhum o é –, defendendo que, dependendo das circunstâncias do caso concreto, em aplicação ao princípio da proporcionalidade, será possível a sua utilização (prova ilícita).
Quando se está diante de um conflito de normas jusfundamentais (direito à prova versus vedação da prova ilícita), a solução deve ser dada sempre casuisticamente, à luz da ponderação concreta dos interesses em jogo. (DIDIER JR.; OLIVEIRA, 2016, p. 102)
Ademais, apesar de defendermos a aplicação da corrente intermediária que resguarda a admissão das provas ilícitas a depender das circunstâncias do caso concreto, portamos do posicionamento de que, dita admissibilidade, deve ser vista como algo excepcional, sendo necessário que sejam atendidos alguns critérios que serão tratados no próximo tópico.
5 DA ADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS NOS PROCESSOS DE DIREITO DE FAMÍLIA E O CRITÉRIO DA PROPORCIONALIDADE
As provas, em geral, têm aplicação peculiar no Direito de Família, dada a natureza das ações que envolvem. Em muitas demandas familiares, verifica-se, que diversas situações controvertidas ocorrem na privacidade do âmbito familiar em que estão presentes, naturalmente, parentes e amigos íntimos (TARTUCE, 2017, p. 139). Temos, pois, a admissão de depoimentos de parentes, empregadas domésticas e, até, filhos, tudo no afã de encontrar uma solução justa para a lide (SEREJO, 2014, p. 32).
O problema da admissão da prova ilícita torna-se visivelmente mais delicado quando se refere a esse ramo do Direito, posto que repousam nas relações familiares a individualidade de cada um, sua dignidade e intimidade, no qual a importância do sigilo é objeto de previsão legal (art. 189, II, CPC[4]).
Quanto a problemática, Cristiano Chaves de Farias (2013, p. 109) menciona que:
A melhor solução da questão exige não olvidar que se estão, de um lado, tuteladas em sede constitucional, a privacidade e a intimidade, também mereceram proteção da Lex Fundamentallis, além do direito de provar o que é alegado em juízo visando ao convencimento do magistrado, outros tantos valores que podem, em situações reais, concretas, ganhar dimensão e contornos mais elevados do que o direito de não ter contra si prova ilícita produzida, como, exemplificativamente, o direito à vida, à perfilhação, entre outros.
Necessário lembrar, como dito alhures, que não há princípios absolutos no Estado Democrático de Direito, tendo importância a utilização da proporcionalidade, entendendo-se que as normas e princípios constitucionais encontram-se organizados dentro de um sistema, onde, em um eventual conflito entre elas, um valor poderá ser sacrificado em respeito a outro (por ser o bem jurídico a ser protegido mais relevante do que a privacidade), buscando garantir a efetividade da norma que estiver em melhor sintonia com a afirmação da dignidade humana. (FARIAS, 2013, p. 109)
O princípio da proporcionalidade no âmbito probatório teve sua origem pelos tribunais alemães ao admitirem em caráter excepcional, a prova obtida em flagrante violação ao mandamento constitucional, desde que fosse a única prova possível e que tivesse como propósito proteger outros valores mais relevantes e urgentes na visão dos julgadores (MADALENO, 2015, p. 309).
Conforme mencionado no tópico anterior, adotando-se o posicionamento de admitir as provas ilícitas, tal deverá ser visto como algo excepcionalíssimo, sendo exigidas algumas condições para que sejam utilizadas de forma a contribuir na formação do convencimento do juiz. São elas: (a) gravidade do caso; (b) espécie da relação jurídica controvertida; (c) dificuldade de demonstrar a veracidade de forma lícita; (d) prevalência do direito protegido com a utilização da prova ilícita comparado com o direito violado; (e) imprescindibilidade da prova na formação do convencimento judicial (NEVES, 2016, p. 675).
Feita essa avaliação, preenchidas as condições, o juiz estará autorizado a admiti-las como meio de convencimento.
Por vezes, deverá o juiz valorar o conteúdo da prova independentemente do modo pelo qual foi obtida, ainda que com violação a determinados preceitos (Lei e Constituição), desde que o modo de obtenção seja necessário, tendo por fim evitar uma sentença injusta, considerando-se válido e eficaz o meio, ainda que ilegal em sua essência (MENDONÇA, 2004, p. 69).
O principal objetivo em se admitir, em determinados casos, a prova ilícita como meio de convencimento é de “prevenir eventuais injustiças causadas pela aplicação irrestrita e cega da lei, quando em confronto com casos de especial gravidade” (MENDONÇA, 2004, p. 66).
Patricia Azevedo da Silveira ao tratar da matéria aponta que:
[...] a questão de fundo da admissão dos meios de prova ilícitos paira sobre “a questão de proporcionalidade entre a infringência da norma e os valores que a produção da prova pode proteger, por meio do processo” e, de outro, a violação da norma e os valores igualmente protegidos sob o pálio constitucional, tais como o direito à intimidade, o princípio do contraditório e da igualdade, tanto sob aspecto formal como substancial (art. 5º, caput). (SILVEIRA, 1999, p. 195).
Interessante anotar que no projeto originário do Novo Código de Processo Civil (PLS N. 166/2010) havia a previsão do parágrafo único do artigo 257 que trazia “A inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito será apreciada pelo juiz à luz da ponderação dos princípios e dos direitos fundamentais envolvidos”. Todavia, quando da versão final, restou-se suprimida tal previsão, restando o caput do artigo 257, que hoje corresponde ao artigo 369, CPC, já visto.
Apesar da supressão da referida norma, a admissão de provas ilícitas é tema a ser apreciado pelo juiz uma vez que há a previsão do artigo 489, § 2º, CPC, onde no caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
Restringindo-se esta excepcional possibilidade de utilização das provas ilícitas às demandas familiares, importa trazer alguns exemplos. Eduardo Cambi, ao tratar do tema traz a exumação de cadáver, para a realização de exame de DNA em ação investigatória de paternidade post mortem onde “o direito à identidade pessoal deve prevalecer em detrimento do direito à preservação do cadáver exumado” e ainda a quebra do sigilo bancário, para apurar a capacidade econômico-financeira do devedor de alimentos (CAMBI, 2014, p. 100).
Nos referidos exemplos, o bem jurídico a ser protegido é mais relevante do que o bem jurídico que se admite sacrificar, justificando sua utilização (FARIAS, 2013, p. 111). Importa lembrar, ainda, que o postulado da proporcionalidade de forma a se permitir o uso das provas ilícitas como meio de convencimento se dará sempre quando não houver outro meio mais idôneo e menos restritivo aos direitos do “investigado”.
É necessário que haja uma maior sensibilidade por parte dos operadores do direito que lidam com a matéria familiarista para que compreendam o quão difícil é a captação e a própria produção da prova, tendo em vista que as questões controvertidas no âmbito do Direito de Família geralmente ocorrem no âmago da família, entre quatro paredes (FARIAS, 2013, p. 111).
Basta imaginar, como não admitir, na ponderação de valores em entrechoque, a coleta clandestina de gravações de vídeo ou de voz, de cenas de maus-tratos físicos ou psicológicos à criança, ou de abusos sexuais, para, no melhor interesse da criança, embasar a troca da modalidade de guarda, base de residência ou até mesmo a perda do poder familiar (MADALENO, 2015, p. 310). Em todas essas hipóteses, os graves efeitos que podem decorrer da inadmissibilidade da prova ilicitamente obtida justificam sua flexibilização.
Perfeita a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sob relatoria, à época, da eminente jurista Maria Berenice Dias, utilizando-se da ponderação de valores no âmbito do Direito de Família:
EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA DO DEVEDOR DE ALIMENTOS. CABIMENTO. Tentada a localização do executado de todas as formas, residindo este em outro Estado e arrastando-se a execução por quase dois anos, mostra-se cabível a interceptação telefônica do devedor de alimentos. Se por um lado a Carta Magna protege o direto à intimadade, também abarcaou o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes. Assim, ponderand0-se os dois princípios sobrepõe-se o direito à vida dos alimentados. A própria possibilidade da prisão civil no caso de dívida alimentar evidencia tal assertiva. Tal medida dispõe inclusive de cunho pedagógico para que outros devedores de alimentos não mais se utilizem se subterfúgios para safarem-se da obrigação. Agravo provido. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Agravo de Instrumento Nº 70018683508, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 28/03/2007) [grifo nosso]
Por certo, como tratado à exaustão, nem todas as demandas familiares farão jus a utilização da ponderação de interesses. Assim, naquelas que se discutem interesses existenciais de crianças e adolescentes ou de idosos, justificável será seu uso em caráter excepcional da prova obtida ilicitamente como forma de ver resguardado o interesse em jogo.
De outra banda, questões relacionadas ao divórcio, dissolução de união estável, bem como o inventário, onde, a discussão central paira sobre questões patrimoniais, mesma sorte não terá, visto que o interesse em jogo (meramente econômico) não sobrepuja o interesse à privacidade, sendo protegido pela proibição de uso da prova ilícita (FARIAS, 2013, p. 113). Nesses casos, a prova juntada deverá ser desentranhada dos autos do processo.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Verifica-se que no âmbito de estudo da prova, não vale tudo, é necessário que se cumpra determinados requisitos como por exemplo, a prova ser obtida por meio lícito e ainda, legítimo. Todavia, na prática, haverá situações que será dificílima a produção de prova. Nesse ínterim, se destaca a singularidade dos fatos, nas demandas familiares, ocorrerem, normalmente, entre quatro paredes, na intimidade do lar.
Deve-se ter em mente, que não há no direito, conceitos absolutos. Desse modo, a previsão do artigo 5º, inciso LVI, CF, que veda a obtenção da prova por meio ilícito, quando, em entrechoque com outros valores, poderá ser relativizado, através da utilização do critério/princípio da proporcionalidade.
Salienta-se que essa flexibilização será sempre em caráter excepcional, quando não for possível obter a prova de outro meio e, ainda, quando estes determinados valores, supere a tutela jurídica da privacidade, fundamento da proibição das provas ilícitas.
Sendo o objetivo da produção da prova auxiliar no convencimento do magistrado e não na busca da verdade em si, dada a sua dificuldade, busca-se chegar, através dela, o mais próximo possível dos fatos ocorridos.
Desse modo, quando se estiver diante de situações que visem resguardar direitos existenciais de crianças e/ou idosos e houver grande dificuldade de se comprovar o alegado por meio lícito, a saída poderá ser a obtenção de provas por meio ilícito. Sendo tais provas, ainda, imprescindíveis ao convencimento do magistrado, sua inadmissibilidade pelo simples fato da Constituição Federal vedar a sua utilização, poderá causar graves danos ao jurisdicionado. Assim, dado que determinados valores se sobrepõe ao direito da privacidade, excepcionalmente, há de ser admitidas as provas ilícitas, através do critério da proporcionalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Art. 5º, XXXV, CF - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[2] Art. 5º, LV, CF - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[3] Art. 371, CPC. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
[4] Art. 189, CPC. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: [...] II - que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes;
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