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Por um Estado laico: misturar Direito e religião sempre gerou injustiças
Morro de medo dos defensores da moral e dos bons costumes. Em nome de resgatar e preservar tais valores, já se matou, ilegitimou e excluiu muitas pessoas do laço social. Muitos já foram torturados (embora no Brasil há quem negue, ou não queira ver isso). Em nome dessa moral e bons costumes, até a Constituição da República de 1988, os filhos havidos fora do casamento eram ilegítimos e tinham que ficar invisíveis, como se eles não existissem. Sua visibilidade apontaria os nossos desejos tortuosos. Negar a existência do sujeito de direitos como sujeito de desejos é desumanizar pessoas, criar um sistema jurídico em cima de dogmas religiosos e de uma moral excludente.
Embora desde a primeira Constituição da República (segunda do Brasil), em 1891, o Estado brasileiro seja, oficialmente, laico, pois não há mais uma religião oficial, a laicidade ainda não é uma realidade, e neste momento dá sinais sérios de retrocesso. E isso significa uma grande ameaça de retrocesso também para o Direito das Famílias.
As religiões são muito importantes, pois têm sido uma enorme força civilizadora e funcionam como vastos sistemas simbólicos que contêm verdades profundas acerca da existência humana (Camille Paglia inVerdades Cintilantes). Assim como o Direito, as religiões também funcionam como um sistema de freios e ajudam a colocar limites instalando sentimentos de culpa, de pecado, ou seja, leis morais, cuja sanção máxima pode ser o fogo do inferno. É assim que elas operam como um grande sistema de sentido das coisas, como criação do mundo, vida além da morte etc. No Direito, cuja função civilizatória é também colocar limites externos em quem não o tem internamente, a sanção jurídica pode ser por atos reparatórios e restrições da liberdade de ir e vir, por exemplo. É o “não” necessário para que o sujeito respeite o direito alheio. O problema está em se estabelecer uma única religião como verdade. E pior ainda é querer impô-la aos outros. Este é o grande pecado do Estado contaminado por verdades e dogmas religiosos, que pretende se instalar no Brasil.
Os dogmas são verdades que não se deve questionar, mas tão somente aceitá-los, são uma grande ameaça ao Direito. Eles se sustentam, em última análise, para manutenção das relações de poder. É tudo em nome do bem e de Deus. Somente quando o Estado respeita todas as religiões, e também quem não tem religião, mantendo-se neutro em relação a elas para suas políticas públicas, é que os grupos minoritários podem estar seguros de que não terão ameaçados os seus direitos já conquistados. Um Estado, cujas políticas públicas forem guiadas por preceitos e dogmas religiosos, certamente excluirá direitos das minorias.
O Direito de Família até pouco tempo atrás era regido pelos dogmas do Direito Canônico. Muitas expressões advieram do código canônico e ainda hoje há quem use a palavra matrimônio em vez de casamento. Misturar Direito e religião sempre provocou e gerou injustiças e sofrimento. Por exemplo, pelos dogmas católicos, não se pode dissolver um casamento. O que Deus uniu, o homem não separa. Até hoje ainda se ouve isso nas celebrações de casamentos. E assim, até 1977, ano da introdução do divórcio no Brasil, mesmo se o casamento fosse um inferno ele tinha que ser mantido. E eram mantidos às custas da resignação histórica das mulheres. E o divórcio no Brasil só foi introduzido sob a promessa de se manter o purgatório. Em outras palavras, católico que é católico não se divorcia. Casamento é apenas uma vez, e pode-se no máximo desquitar (passou a se chamar separação judicial), ou seja, acaba o casamento, mas as pessoas ficariam neste “limbo” (purgatório) antes de ir para o divórcio (os que desrespeitarem as normas religiosas). Somente em 2010, com a Emenda Constitucional 66, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) conseguiu acabar com esse esdrúxulo instituto da separação judicial. Mesmo assim, ainda há quem insista nisso, e até mesmo o recente CPC, inadvertidamente, usou essa expressão.
Outro exemplo perverso da interferência negativa da religião no Direito está na adoção de filhos. Muitos profissionais envolvidos no sistema de adoção no Brasil, principalmente contaminados por suas convicções religiosas, passam anos e anos procurando a família biológica (família extensa) da criança em vez de conceder a adoção para quem realmente deseja adotar. Enquanto isso, milhares e milhares de crianças continuam à espera de uma família que nunca chega. Quanta maldade e perversidade! E tudo em nome de Deus!
Os exemplos de exclusão social em nome de uma moral sexual religiosa são inúmeros. A moral e os bons costumes vêm travestidos de se preservar a família, de resgatar valores. Esta é, inclusive a ideia e o espírito do PL 867/2015, que pretende instalar a “Escola sem partido”, ou melhor, quer que os alunos não tenham uma posição reflexiva e não conheçam os vários lados da história. Esse PL baseia-se em princípios familiares e religiosos, confronta o conceito de laicidade do ensino público e censura assuntos como sexualidade e gênero, negando toda a evolução do pensamento científico e dos avanços sociais. Tudo em nome do se fazer o bem, mas em total desrespeito e desconsideração do sujeito de direitos como sujeito de desejos.
É aterrorizante pensar que grande parte dos avanços sociais, que repercutiram positivamente no Direito das Famílias, estão neste momento ameaçados pelo retrocesso do Estado laico, que aceita apenas a família tradicional. Em um Estado laico, são os princípios constitucionais que deveriam determinar a vida do cidadão. Mas a nação religiosa que começa a dominar os Poderes da República quer que sejamos regidos pelos princípios bíblicos, que em Levítico 20:13 manda matar o homem que se deitar com outro homem, por exemplo. Ou seja, um texto homofóbico, que não tem mais lugar em uma sociedade que se pretende cristã, tolerante e plural.
Em um Estado de predominância religiosa, não há espaço para reflexão e compreensão de que o gênero é uma construção social e que pode ir muito além do binarismo homem/mulher que acreditam os pastores de almas. Essa incompreensão, associada à ignorância e ao preconceito, apoiada em dogmas religiosos, já provocou e incentivou a morte de milhares de pessoas trans. Eles são os pervertidos, os sem-vergonha que ameaçam os padrões de uma suposta e pretensa normalidade sexual. Então é melhor continuar excluindo-os e ilegitimando-os. Eles são muito perigosos: podem desvelar nossos desejos mais íntimos, ocultos e inconfessáveis.
Em razão da incompreensão, jurídica, médica e social, associada aos fantasmas da sexualidade, muitas pessoas que nasciam com uma variação cromossômica que faz os indivíduos serem intersexuais (antes denominados hermafroditas) eram mutiladas, para transformá-las em meninos ou meninas. Essas pessoas, embora sejam em torno de 1,7% da população mundial, ainda estão condenadas à invisibilidade. Elas não se enquadram nem na categoria masculina nem na feminina. Será que a “Escola sem partido” vai proibir que se fale dessas e outras pessoas invisíveis, cujo gênero está além do tradicional masculino/feminino? A palavra gênero, caso o PL seja aprovado, ficará proibida. Portanto essas e outras categorias continuarão na invisibilidade. Não seria pecado excluir essas pessoas?
Os pastores de alma que pretendem que sua religião sobreponha aos princípios constitucionais do Estado laico são contraditórios ao desrespeitarem a tolerância, a diversidade sexual e a família plural. O Estado laico é a garantia da liberdade das pessoas de pensarem e viverem sem preconceito. E a maior liberdade que se pode ter é a de pensar sem dogmas. E somente assim poderemos todos viver sem preconceitos e na diversidade para que possamos verdadeiramente seguir o princípio cristão máximo: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Tolerância mútua e aceitação do outro é o mínimo que se pretende em um Estado Democrático de Direito, para que, afinal, todas as famílias possam receber proteção do Estado.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
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