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Adultério virtual / Infidelidade virtual
“O que se gostaria de conservar da família, no terceiro milênio, são seus aspectos positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e o amor. Belo sonho.”
Michele Perrot * *
1. DENOMINAÇÃO. 2. MOTIVAÇÃO. 3. COMUNICAÇÃO VIRTUAL, CONTEXTO SÓCIO-CULTURAL. 4. CONTEXTO SÓCIO-AFETIVO. 5. INFIDELIDADE VIRTUAL, CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS (RUPTURA - CULPA – DANO MORAL). 5. PROVA. 6. CONCLUSÃO.
1. DENOMINAÇÃO
O indivíduo casado ou unido estavelmente e que, ao mesmo tempo, mantenha um relacionamento erótico-afetivo virtual está praticando infidelidade virtual. Esta somente se transformará em adultério se houver a materialização do relacionamento. Portanto, tecnicamente, a expressão correta é infidelidade virtual.
2. MOTIVAÇÃO
Este estudo decorre da prática profissional determinada pelo atendimento de diversos casos de relacionamentos iniciados pela Internet. A partir desta mostragem foram entrevistadas outras pessoas cujas experiências enriqueceram este trabalho.
O caso mais representativo é o de uma professora de 45 anos de idade, extremamente discreta e de educação refinada, casada há 25 anos com um profissional liberal de 50 anos, com dois filhos adolescentes. Comunicava-se pela Internet com pessoas de diversos países e apaixonou-se por um homem também casado e residente no exterior. Meses depois de iniciado o relacionamento virtual encontraram-se e perfectibilizou-se o adultério. Apesar do uso de senha, o marido ingressou no correio eletrônico e descobriu o relacionamento. O casal separou-se e hoje ela vive no exterior com uma terceira pessoa que também conheceu através da Internet.
3. COMUNICAÇÃO VIRTUAL - CONTEXTO SÓCIO-CULTURAL
Antes de analisar os relacionamentos virtuais sob o enfoque jurídico, cabe proceder a uma análise do contexto sócio-cultural em que tais relacionamentos acontecem.
No descortinar do novo século, vive-se um momento de profunda mutação antropológica e sociológica decorrente dos constantes avanços da tecnologia, em especial pela revolução operada na comunicação. Assim como no passado aconteceram descobertas marítimas, ao navegar pelo espaço cibernético, o homem está descortinando um mundo novo, sem fronteiras. A mundialização do planeta aproximou povos distantes, miscigenou raças e culturas, os interesses econômicos superaram nações e sistemas jurídicos, provocando uma verdadeira revolução de paradigmas.
Analisando a história da humanidade observa-se que no início da civilização, na era paleontológica, todos viviam em uma única sociedade. A primeira ruptura deste modelo aconteceu quando a humanidade separou-se e passou a habitar todos os continentes.
A segunda ruptura aconteceu com a revolução neolítica (na Mesopotâmia, Egito, China e nas civilizações Inca e Maia), período de grandes mutações técnicas, sociais, culturais e políticas que, em decorrência da fixação do homem no espaço, resultou na criação das cidades e na invenção do Estado, no desenvolvimento da agricultura e na invenção da escrita.
A terceira ruptura da história da humanidade aconteceu no fim do século XV, na Idade Média, quando as descobertas marítimas levaram o homem a navegar por mares impensados, aportando em novos mundos.
Neste início de milênio presencia-se outra fase de ruptura com o modelo social vigente, provocada pela comunicação que criou outra vez uma sociedade sem fronteiras. A era tecnológica apequenou o mundo e o homem está outra vez navegando, não mais pelo mar, mas sim pelo espaço cibernético ou espaço virtual que está disponível para todos. Neste espaço não se estabelecem hierarquias, a estratificação social a partir de agora acontecerá entre os que estão na rede e os que optarem por estar fora dela, num redimensionamento também do uso do poder.
Presencia-se o esgotamento do modelo social vigente, o que provoca também uma ruptura com o modelo jurídico. Não uma ruptura nefasta, catastrófica, e sim a ruptura de um modelo que não serve mais à sociedade que este direito regulamenta. Na mesma proporção que a tecnologia avança de forma surpreendentemente rápida, que a comunicação estreita distâncias e o homem vence o tempo e o espaço, o direito não acompanha este ritmo e nem deve fazê-lo. Apesar da imperiosa necessidade de redefinição de conceitos e adaptação da ciência jurídica aos novos paradigmas, a normatização jurídica deve ser lenta e cautelosa pois, como leciona Canaris, o direito “coloca-se numa área de estabilidade marcada”, uma vez que “as mudanças verdadeiras são lentas; a sua detecção depende de uma certa distanciação histórica”.
Não se pode, em nome do avanço social e tecnológico, negar o que a humanidade já construiu. Deve-se estabelecer uma ponte entre a experiência acumulada e as novas exigências sociais, com fundamento nos princípios norteadores do sistema jurídico posto, redimensionando conceitos. O importante é não perder o referencial ético de que o homem, a sua dignidade, a sua proteção, devem constituir a finalidade primeira e última de qualquer norma.
Neste final de milênio o homem também vive um momento de profundo individualismo, provocado pela ideologia liberal. Ele trabalha mais, a violência urbana o mantém preso em casa, sofre bombardeio diário de informações que não consegue assimilar e, paradoxalmente, apesar de ter mais opções de lazer, lhe falta tempo para desfrutar a vida.
Neste contexto, uma forma de comunicação ágil, barata e relativamente segura, como é a comunicação virtual, torna-se um convite a uma nova forma de socialização. Basta um computador e uma linha telefônica para estabelecer a comunicação, não importa a nacionalidade, a idade, o sexo, a raça, a condição social do interlocutor. Para os que estão na rede abre-se um mundo relacional completamente inusitado. Segundo Pierre Lévy, os atuais fóruns eletrônicos constituem “paisagem movediça das competências e das paixões” que permitem atingir outras pessoas a partir de um mapa semântico ou subjetivo dos centros de interesse.”
Os dados colocados na Internet ficam disponíveis a qualquer um e passam a ser significantes apenas quando despertam o interesse dos indivíduos, estabelecendo uma interação entre eles. Nas relações comerciais esta interação propicia negócios e nas relações afetivas favorece o envolvimento com a subjetividade do outro, estabelecendo uma nova forma de atração, na qual a aproximação física é substituída pela descoberta de afinidades e acontece a amizade ou o namoro virtual.
4. CONTEXTO SÓCIO-AFETIVO
Muitas são as causas que motivam os relacionamentos virtuais. Uns navegam na Internet para atender a uma necessidade natural de conhecer pessoas, para brincar, para fazer descobertas, repetindo o que acontecia antigamente nos relacionamentos por carta , que iniciavam por uma amizade sem compromisso. Outros usam os relacionamentos virtuais para vencer a solidão, para vencer o tédio do cotidiano, para preencher carências afetivas. Enquanto uns buscam os relacionamentos virtuais para fugir da relação pouco gratificante que vivem na realidade, outros também usam a sedução exercida no espaço virtual para melhorar a relação com seus parceiros reais.
Na verdade, a rotina deteriora os relacionamentos, sejam eles formados pelo casamento ou pela união estável. Muitos casais transformam-se “em estranhos íntimos” e mantém o casamento apenas como uma rede de apoio mútuo, sem intimidade, sem cumplicidade. Os problemas do dia-a-dia desatam o laço erótico. As pessoas acabam vivendo sob o mesmo teto sem se perceberem como homem e mulher. Olham-se e não se vêem, estão próximas fisicamente e ao mesmo tempo sentem uma solidão insuportável. A relação é tão pouco gratificante que o envolvimento com terceiro se torna uma decorrência deste estado de carência afetiva. O espaço virtual se presta como nenhum outro à fuga da realidade frustrante.
Neste sentido é a lição da psicóloga Ana Maria Nicolai da Costa, que nos remete a uma reflexão sobre o mundo do “CÁ” (a realidade) e o mundo do “LÁ” (o mundo mental, a fantasia), afirmando que é da natureza humana, principalmente quando se enfrenta situações desagradáveis, refugiar-se no mundo do “LÁ”, a partir de um “mero clique no botão da nossa imaginação.”
Até bem pouco tempo, a fuga inconsciente para o mundo imaginário ficava apenas no terreno da fantasia, no mundo do sonho, único espaço onde se pode ser verdadeiramente livre, onde se pode ser infiel sem que ninguém descubra, onde a infidelidade fantasiosa jamais é confessada a alguém. Agora existe a Internet e o espaço virtual permite “estar junto” com outra pessoa, permite revelar sonhos e desejos, realizar fantasias, sem riscos aparentes.
Na Internet, a figura idealizada do outro não enfrenta o desgaste da convivência. O que se idealiza sempre é melhor do que o que se tem. No espaço virtual todos são pessoas especiais que construímos em nossas mentes, a partir dos nossos desejos. O espaço mágico virtual permite que o indivíduo construa um mundo também mágico, como se estivesse escrevendo o roteiro de um romance.
O internauta pode fraudar dados pessoais como estado civil, raça, profissão, idade, tipo físico. Quanto à personalidade, pode demonstrar no espaço virtual características diferentes do seu comportamento social real. No entanto, a simulação da personalidade nada mais é do que o exercício de um papel que o internauta desejaria desempenhar na vida real, mas não consegue. Esta nova realidade tem levado os especialistas a reverem os conceitos sobre personalidade múltipla.
Na comunicação virtual acontece a construção de “uma realidade de segunda ordem” , uma realidade de simulação, que nos reporta a um “mundo imaginal”, que é um mundo simbólico, imaterial, uma forma inusitada de estabelecer um vínculo social . Neste mundo, a pessoa pode “fugir” do cotidiano, comunicando-se com um “outro” sem rosto, sem identidade, que não exige compromisso, bastando clicar um botão para interromper a comunicação. Este relacionamento pode manter-se no plano imaginal, ou derivar para uma aproximação física.
5. INFIDELIDADE VIRTUAL E ADULTÉRIO – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS
A infidelidade virtual é um relacionamento erótico-afetivo mantido através da Internet. Se este relacionamento levar a relações sexuais, consuma-se o adultério. Qualquer uma das hipóteses interessa ao direito porque pode causar a dissolução do casamento ou da união estável.
A civilização impõe ao homem um paradoxo: enquanto reconhece que o instinto de liberdade integra a sua natureza (no qual está incluído o desejo de troca de parceiros), estabelece limites a esta liberdade através de normas que inibem o exercício deste instinto, objetivando evitar a desorganização social. Como conseqüência, a maioria dos sistemas jurídicos modernos optou pela monogamia como forma de constituição e proteção da célula familiar. Desta opção decorrem deveres de interesse público, moral e eticamente determinados pelo princípio da solidariedade, pelo princípio da proteção à dignidade humana, pelo princípio da proteção à família, como o dever de fidelidade recíproca para o casamento e o dever de respeito e consideração mútuos para a união estável.
Portanto, fidelidade e respeito mútuo constituem um juízo de valor emanado do social, que autoriza a imposição de norma limitadora ao instinto de liberdade. Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama, a fidelidade “envolve o dever de lealdade entre os partícipes, sob os aspectos físico e moral, no sentido de abster-se de manter relações sexuais com terceira pessoa, e mesmo de praticar condutas que indiquem esse propósito ainda que não consume a traição. Envolve, portanto, tanto a infidelidade material quanto a moral.”
A distinção entre infidelidade material e moral importa para caracterizar a infidelidade virtual, que é uma forma de infidelidade moral. Na relação virtual estabelece-se um laço erótico-afetivo platônico, mantido à distância através de um computador. A pessoa sai do seu espaço imaginário para relacionar-se com uma pessoa invisível, mas que está lá e que corresponde. O enamoramento virtual pode criar um laço erótico-afetivo muito mais forte do que o relacionamento real que a pessoa vive, desgastado pela convivência diária, pois é alimentado pela fantasia. Acontece um quase adultério, uma infidelidade moral. A cumplicidade, a intimidade, a paixão estabelecidas no espaço virtual muitas vezes levam o casal ao contato físico, com relações sexuais, quando então acontece a infidelidade material ou adultério. Portanto, não existe adultério virtual e sim infidelidade virtual que pode levar ao adultério propriamente dito.
Através da lei do divórcio, o sistema jurídico vigente, autoriza o pedido unilateral de separação ao cônjuge que foi vítima de infidelidade material ou moral, como é a infidelidade virtual, porque acontece o descumprimento de um dever legal, o que é considerado injúria grave. Fundamentada no princípio da investigação da culpa, a lei também estabelece sanções quanto à guarda dos filhos , ao uso do nome do marido e quanto aos alimentos. A jurisprudência superou o dispositivo legal no tocante à guarda dos filhos e, priorizando o interesse do menor, autoriza-o a permanecer com quem se revelar melhor cuidador. Quanto ao uso do nome do marido, desde 1992 o legislador excepcionou os casos em que a mulher poderá mantê-lo, mesmo se considerada culpada. Quanto aos alimentos, a lei determina que o cônjuge responsável pela separação os prestará ao outro, se ele necessitar. Porém, sendo o alimentado culpado, a leitura do dispositivo tem sido feita a contrario senso e a doutrina e a jurisprudência dominantes interpretam que o responsável pela separação não será pensionado, mesmo que necessite dos alimentos. Paradoxalmente, a lei que regulamenta a união estável não determina expressamente a investigação da culpa para concessão do benefício.
Apesar dos dispositivos legais vigorantes, a doutrina divide-se em duas grandes correntes antagônicas no que tange às causas autorizadoras de pedido de separação e seus efeitos. A mais antiga e conforme ao ordenamento jurídico recomenda a manutenção da investigação da culpa com sanções ao culpado. A corrente mais atual recomenda uma revisão legislativa para que o princípio da culpa seja substituído pelo princípio da ruptura e o desamor aceito como causa justificadora e autorizadora da dissolução do vínculo, sem outros efeitos.
Dentre os doutrinadores que defendem a manutenção do princípio da culpa com aplicação de sanções, está Yussef Said Cahali para quem a sentença da separação ou divórcio “concluirá necessariamente pela condenação do demandado como cônjuge culpado” . Também o professor Caio Mário da Silva Pereira afirma que o divórcio-sanção objetiva “ aplicar ao cônjuge culpado a dissolução do matrimônio, como penalidade em face de seu comportamento infiel” .
Desta corrente doutrinária emerge a tese que defende o direito a indenização por danos morais ou materiais. Neste sentido, o mestre Yussef Said Cahali entende que “parece não haver a mínima dúvida de que o mesmo ato ilícito que configurou infração dos deveres conjugais posto como fundamento para a separação judicial contenciosa com causa culposa, presta-se igualmente para legitimar uma ação de indenização de direito comum por eventuais prejuízos que tenham resultado diretamente do ilícito para o cônjuge afrontado” . Também José de Castro Bigi adverte que o cônjuge culpado praticou um ato antijurídico “se infringiu um dano injusto ao outro cônjuge” e que isto não se apaga com a separação e a pensão.
Entre os defensores desta tese também está Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos que recomenda: “ A prática de ato ilícito pelo cônjuge, que descumpre dever conjugal e acarreta dano ao consorte, ensejando a dissolução culposa da sociedade conjugal, gera a responsabilidade civil e impõe a reparação dos prejuízos, com o caráter ressarcitório ou compensatório, consoante o dano seja de ordem material ou moral.” A mesma doutrinadora entende que a união estável tem natureza contratual e recomenda “a aplicação das regras da responsabilidade civil contratual à sua dissolução” .
Embora a tese que admite indenização por dano moral e material na separação e no divórcio estivesse manifesta na doutrina tradicional, poucos foram até agora os pedidos que aportaram aos Tribunais.
Dentre os doutrinadores que defendem a substituição do princípio da culpa pelo princípio da ruptura está Rodrigo da Cunha Pereira ao recomendar que se repense e se redirecione este princípio estigmatizante “para que nos aproximemos do ideal de Justiça, de liberdade e libertação dos sujeitos, acertando o passo com a contemporaneidade.” Na mesma esteira, Renan Lotufo lembra que tudo o que se refere à dissolução do casamento, como a investigação da culpa, decorre da antiga idéia de que o casamento não podia ser desfeito.
Em minudente análise dos dispositivos constitucionais e materiais relativos à família, o professor Gustavo Tepedino também conclui que “se a unidade da família, à luz da Constituição, não mais se identifica com a unidade do casamento, não há como associar a aplicação de sanções atinentes a efeitos jurídicos existenciais - alimentos, guarda de filhos, sobrenome da mulher - e mesmo patrimoniais - divisão dos bens - à culpa pela ruptura do vínculo matrimonial.”
Também em posição contrária à investigação do princípio da culpa está Maria Berenice Dias ao advertir que para a cessação da união basta o exaurimento do elo amoroso e que o pedido de separação “é uma decisão pessoal, na qual descabe a intervenção do Estado exigindo a identificação de um responsável para puni-lo de forma exemplar” No mesmo sentido, a opinião de Rolf Madaleno, para quem a pesquisa da razão culposa na separação serve “aos interesses mesquinhos da parte que quiser se utilizar do processo como instrumento de vingança de seus ressentimentos, ou de suas frustrações como esposo.” Também repudiando a investigação da culpa Antônio Cezar Peluso adverte que a esta concepção alimenta-se “das tendências mais primitivas e perversas do ser humano, que são as pulsões de vingança, de satisfação da represália e do castigo, como resposta mínima à ofensa pessoal”, que aplicadas pelo judiciário oferecem o conforto aparente de que quem pune é o juiz .
As duas correntes trazem argumentos consideráveis e são integradas por importantes doutrinadores. Portanto, tormentosa é a questão que está a exigir uma revisão de conceitos, que passa pela definição da natureza jurídica do casamento e redimensionamento do conceito de culpa.
Neste sentido, importante é a lição de Luiz Felipe Brasil Santos ao advertir que: “a conceituação jurídica de culpa é bem diversa da conceituação psicológica. No campo do direito a culpa é sempre do outro, caracterizando-se pela infração a algum dos deveres conjugais ou por conduta desonrosa,... enquanto na seara psicológica culpa é algo que diz respeito ao próprio sujeito.”
Quanto aos aspectos subjetivos da infidelidade, a psicologia informa que sua prática pode ser motivada por diversas causas, umas patológicas e outras não. Dentre as causas patológicas, geralmente originadas por algum problema mal resolvido na infância, está a falta de aprendizado do princípio ético da lealdade. Outra manifestação de profunda desordem psicológica se traduz no desejo consciente ou inconsciente de ferir alguém. Já em outras pessoas a neurose também pode manifestar-se por uma dificuldade de estabelecer laços afetivos profundos, o que as leva a uma busca compulsiva de sensações e de aventuras.
Além das causas patológicas, a infidelidade, também pode acontecer como fuga da vida real, quando falta coragem para promover a separação formal. Nesta causa podem enquadrar-se a maioria dos relacionamentos virtuais, que se apresentam como uma fuga da relação pouco gratificante que as pessoas vivem.
A psicóloga Ana Cristina Silveira Guimarães esclarece que “ a realidade das relações virtuais abrange um amplo espectro de possibilidades de relações que vai desde a normalidade à patologia, dependendo do uso que cada indivíduo faça desta relação, seja um uso narcísico (que pode ser apenas um prolongamento de seu mundo interno), seja um uso perverso ou uma forma de se evadir da realidade externa ou interna, conforme a subjetividade inerente a cada ser humano”. Portanto, a simples comunicação através da Internet, mantida muitas vezes através de pseudônimo, não implica necessariamente em infidelidade, pois pode representar apenas uma fuga da realidade que ajuda a suportar o mundo real.
Por outro lado, o insucesso de um relacionamento não acontece de uma hora para outra. É um processo longo para o qual muitas vezes contribuem os dois parceiros com suas dificuldades pessoais. A verdadeira causa da culpa, psicologicamente falando, é subjetiva e se constrói, quase sempre, com a participação de ambos. Portanto, seria temerário atribuir dogmaticamente ao causante aparente a culpa por um comportamento que pode ser o reflexo da atitude do outro ou a projeção de um problema do outro. Neste sentido, Pontes de Miranda já advertia que a regra da infidelidade sofre limitações e que o adultério perde sua importância como causa bastante para a dissolução da sociedade conjugal “se o autor houver concorrido para que o réu o cometesse.” No mesmo sentido, Antônio Cezar Peluso afirma que a responsabilidade pelo pacto, pela aliança conjugal é de ambos.
As relações erótivo-afetivas constituem um pacto psico-sócio-jurídico muito mais amplo do que um mero contrato e o operador do direito não pode ignorar a subjetividade que permeia tais relações. Conforme leciona Marcos Antônio Colares, é preciso ter consciência de que se está “trilhando no solo da emoção”. Enquanto vigorarem dispositivos legais baseados no princípio da culpa, a investigação desta deverá ser feita considerando não só os aspectos jurídicos como os aspectos psicológicos, éticos e sociais objetivando descobrir se a causa aparente da culpa é a verdadeira. Esta recomendação se impõe, principalmente, quanto a concessão de alimentos e indenização por danos morais.
No atual momento sócio econômico brasileiro muitos têm sido os processos pleiteando indenização por dano moral na esfera cível. Contudo, na esfera familiar tais pedidos reclamam uma profunda reflexão e investigação das verdadeiras motivações do autor. Um pedido de indenização somente não será imoral se houver um dano realmente grave e a reivindicação não tiver por objeto apenas o lucro fácil. Neste sentido Sérgio Gischkow Pereira adverte que “a prosperar este exagero, praticamente toda a ação de separação judicial ensejaria pedido cumulado de perdas e danos morais, em deplorável e perniciosa monetarização das relações erótico-afetivas.”
As relações familiares são diferentes das relações contratuais comuns. As relações virtuais também revelam novos comportamentos e a identificação de todas as variáveis que envolvem os conflitos amorosos não é trabalho fácil. Pela subjetividade das relações humanas, é difícil perquirir a culpa em um relacionamento quando não se pode ter a certeza do que se passa na intimidade do casal. Haveria um único culpado ou haveria uma concorrência de culpas? A infidelidade seria uma causa ou uma conseqüência? Diante do atual panorama legal e doutrinário, a solução mais acertada é a casuística e faz-se necessário buscar a luz da interdisciplinariedade para chegar mais perto da verdade e da justiça. O operador do direito deve estar aberto à reflexão e, consoante a lição de Luiz Edson Fachin “ reconhecer que consciência social e mudança integram a formação jurídica” .
6. PROVA LÍCITA, PRIVACIDADE, SIGILO
No espaço virtual as pessoas pensam que estão protegidas, porém este espaço é muito pouco discreto e garante uma privacidade apenas relativa ao internauta. Mesmo que ele se identifique por apelidos (nicks), a correspondência trocada fica armazenada na memória do computador e no provedor de acesso à rede. Este funciona como uma espécie de banco onde ficam armazenadas todas as comunicações virtuais que poderão ser judicialmente requisitadas ou até mesmo invadidas ilegalmente por técnicos. Mesmo que se use senha para bloquear o acesso ao correio eletrônico, especialistas (hackers e crackers) têm condições de descobri-la. Podem ingressar no provedor e, chegando até o arquivo mestre, copiar a senha. A comunicação pela Internet pode ocorrer de várias maneiras: por e-mail , por CHATS , por MIRC ou por ICQ. Todas estas modalidades permitem que especialistas acessem as correspondências e dados pessoais, pois ainda não existem meios idôneos que garantam plena segurança às comunicações virtuais.
Os direitos à privacidade e à intimidade são garantidos pela Constituição Federal no capítulo dos direitos fundamentais, que também veda a utilização de provas obtidas por meios ilícitos. Além das possibilidades de prova indicadas no Código Civil e no Código de Processo Civil , desde 1996 vigora no Brasil a lei 9.296, que regulamenta o art. 5º, § XII da Constituição Federal e estabelece normas e sanções protetoras dos dados constantes das comunicações via Internet, inclusive. Também tramita no Congresso Nacional o projeto de lei nº 1.713/96, que dispõe sobre crimes praticados no espaço virtual.
Na hipótese de o cônjuge infiel manter a comunicação virtual através de computador de uso familiar, sem uso de senha, a obtenção desta prova através da entrada no correio eletrônico não pode ser considerada invasão de privacidade ou violação ao direito de sigilo, pois o usuário não tomou as devidas cautelas para preservar sua intimidade. Porém, se o internauta usar senha de acesso e a prova for obtida sem o seu consentimento, ela será considerada ilícita. Consoante a lição de Sônia Rabello Doxey “ A geração da prova do adultério há de ser lícita, não se podendo admitir prova obtida por meios criminosos ou fraudulentos.” Para produzir a prova desejada e não transgredir o direito fundamental à privacidade e ao sigilo das comunicações pessoais, o ofendido deve recorrer ao judiciário.
7. CONCLUSÃO
As relações virtuais constituem uma nova forma de relacionamento que partem da descoberta de afinidades, ao contrário do enamoramento tradicional que parte do olhar e do contato físico. Este relacionamento pode representar apenas uma fuga da realidade sem maiores conseqüências. Porém, muitas vezes, a intimidade e a cumplicidade nascidas no espaço virtual estabelecem um laço erótico-afetivo importante que pode ser causa da dissolução do casamento ou da união estável. O relacionamento virtual pode evoluir e conduzir à prática de adultério.
Quando acontece o relacionamento erótico-afetivo virtual, o pedido de dissolução do vínculo por parte de quem foi traído pode ser conseqüência natural da revolta causada pela falta de lealdade. De qualquer forma, rompendo-se o afeto ou a confiança, não há como obrigar a subsistência do vínculo formal e o Estado deve favorecer o desfazimento do casamento ou da união estável, uma vez que não lhe cabe determinar sentimentos. A aceitação pura e simples do desamor como causa subjetiva do rompimento do vínculo favorece a composição dos conflitos ( cada vez mais buscados através da mediação) e também poupa as partes a uma exposição pública de seus problemas pessoais.
O princípio da culpa em direito de família deve ser revisto, respeitada a subjetividade existente no pacto psico-sócio-jurídico que uma relação erótico-afetiva encerra, seja ele formado pelo casamento ou pela união estável. A nova configuração da família – inclusive os relacionamentos virtuais – reclama por uma modernização de conceitos jurídicos sob a luz da interdisciplinariedade.
* Advogada
marig@terra.com.br
Michele Perrot * *
1. DENOMINAÇÃO. 2. MOTIVAÇÃO. 3. COMUNICAÇÃO VIRTUAL, CONTEXTO SÓCIO-CULTURAL. 4. CONTEXTO SÓCIO-AFETIVO. 5. INFIDELIDADE VIRTUAL, CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS (RUPTURA - CULPA – DANO MORAL). 5. PROVA. 6. CONCLUSÃO.
1. DENOMINAÇÃO
O indivíduo casado ou unido estavelmente e que, ao mesmo tempo, mantenha um relacionamento erótico-afetivo virtual está praticando infidelidade virtual. Esta somente se transformará em adultério se houver a materialização do relacionamento. Portanto, tecnicamente, a expressão correta é infidelidade virtual.
2. MOTIVAÇÃO
Este estudo decorre da prática profissional determinada pelo atendimento de diversos casos de relacionamentos iniciados pela Internet. A partir desta mostragem foram entrevistadas outras pessoas cujas experiências enriqueceram este trabalho.
O caso mais representativo é o de uma professora de 45 anos de idade, extremamente discreta e de educação refinada, casada há 25 anos com um profissional liberal de 50 anos, com dois filhos adolescentes. Comunicava-se pela Internet com pessoas de diversos países e apaixonou-se por um homem também casado e residente no exterior. Meses depois de iniciado o relacionamento virtual encontraram-se e perfectibilizou-se o adultério. Apesar do uso de senha, o marido ingressou no correio eletrônico e descobriu o relacionamento. O casal separou-se e hoje ela vive no exterior com uma terceira pessoa que também conheceu através da Internet.
3. COMUNICAÇÃO VIRTUAL - CONTEXTO SÓCIO-CULTURAL
Antes de analisar os relacionamentos virtuais sob o enfoque jurídico, cabe proceder a uma análise do contexto sócio-cultural em que tais relacionamentos acontecem.
No descortinar do novo século, vive-se um momento de profunda mutação antropológica e sociológica decorrente dos constantes avanços da tecnologia, em especial pela revolução operada na comunicação. Assim como no passado aconteceram descobertas marítimas, ao navegar pelo espaço cibernético, o homem está descortinando um mundo novo, sem fronteiras. A mundialização do planeta aproximou povos distantes, miscigenou raças e culturas, os interesses econômicos superaram nações e sistemas jurídicos, provocando uma verdadeira revolução de paradigmas.
Analisando a história da humanidade observa-se que no início da civilização, na era paleontológica, todos viviam em uma única sociedade. A primeira ruptura deste modelo aconteceu quando a humanidade separou-se e passou a habitar todos os continentes.
A segunda ruptura aconteceu com a revolução neolítica (na Mesopotâmia, Egito, China e nas civilizações Inca e Maia), período de grandes mutações técnicas, sociais, culturais e políticas que, em decorrência da fixação do homem no espaço, resultou na criação das cidades e na invenção do Estado, no desenvolvimento da agricultura e na invenção da escrita.
A terceira ruptura da história da humanidade aconteceu no fim do século XV, na Idade Média, quando as descobertas marítimas levaram o homem a navegar por mares impensados, aportando em novos mundos.
Neste início de milênio presencia-se outra fase de ruptura com o modelo social vigente, provocada pela comunicação que criou outra vez uma sociedade sem fronteiras. A era tecnológica apequenou o mundo e o homem está outra vez navegando, não mais pelo mar, mas sim pelo espaço cibernético ou espaço virtual que está disponível para todos. Neste espaço não se estabelecem hierarquias, a estratificação social a partir de agora acontecerá entre os que estão na rede e os que optarem por estar fora dela, num redimensionamento também do uso do poder.
Presencia-se o esgotamento do modelo social vigente, o que provoca também uma ruptura com o modelo jurídico. Não uma ruptura nefasta, catastrófica, e sim a ruptura de um modelo que não serve mais à sociedade que este direito regulamenta. Na mesma proporção que a tecnologia avança de forma surpreendentemente rápida, que a comunicação estreita distâncias e o homem vence o tempo e o espaço, o direito não acompanha este ritmo e nem deve fazê-lo. Apesar da imperiosa necessidade de redefinição de conceitos e adaptação da ciência jurídica aos novos paradigmas, a normatização jurídica deve ser lenta e cautelosa pois, como leciona Canaris, o direito “coloca-se numa área de estabilidade marcada”, uma vez que “as mudanças verdadeiras são lentas; a sua detecção depende de uma certa distanciação histórica”.
Não se pode, em nome do avanço social e tecnológico, negar o que a humanidade já construiu. Deve-se estabelecer uma ponte entre a experiência acumulada e as novas exigências sociais, com fundamento nos princípios norteadores do sistema jurídico posto, redimensionando conceitos. O importante é não perder o referencial ético de que o homem, a sua dignidade, a sua proteção, devem constituir a finalidade primeira e última de qualquer norma.
Neste final de milênio o homem também vive um momento de profundo individualismo, provocado pela ideologia liberal. Ele trabalha mais, a violência urbana o mantém preso em casa, sofre bombardeio diário de informações que não consegue assimilar e, paradoxalmente, apesar de ter mais opções de lazer, lhe falta tempo para desfrutar a vida.
Neste contexto, uma forma de comunicação ágil, barata e relativamente segura, como é a comunicação virtual, torna-se um convite a uma nova forma de socialização. Basta um computador e uma linha telefônica para estabelecer a comunicação, não importa a nacionalidade, a idade, o sexo, a raça, a condição social do interlocutor. Para os que estão na rede abre-se um mundo relacional completamente inusitado. Segundo Pierre Lévy, os atuais fóruns eletrônicos constituem “paisagem movediça das competências e das paixões” que permitem atingir outras pessoas a partir de um mapa semântico ou subjetivo dos centros de interesse.”
Os dados colocados na Internet ficam disponíveis a qualquer um e passam a ser significantes apenas quando despertam o interesse dos indivíduos, estabelecendo uma interação entre eles. Nas relações comerciais esta interação propicia negócios e nas relações afetivas favorece o envolvimento com a subjetividade do outro, estabelecendo uma nova forma de atração, na qual a aproximação física é substituída pela descoberta de afinidades e acontece a amizade ou o namoro virtual.
4. CONTEXTO SÓCIO-AFETIVO
Muitas são as causas que motivam os relacionamentos virtuais. Uns navegam na Internet para atender a uma necessidade natural de conhecer pessoas, para brincar, para fazer descobertas, repetindo o que acontecia antigamente nos relacionamentos por carta , que iniciavam por uma amizade sem compromisso. Outros usam os relacionamentos virtuais para vencer a solidão, para vencer o tédio do cotidiano, para preencher carências afetivas. Enquanto uns buscam os relacionamentos virtuais para fugir da relação pouco gratificante que vivem na realidade, outros também usam a sedução exercida no espaço virtual para melhorar a relação com seus parceiros reais.
Na verdade, a rotina deteriora os relacionamentos, sejam eles formados pelo casamento ou pela união estável. Muitos casais transformam-se “em estranhos íntimos” e mantém o casamento apenas como uma rede de apoio mútuo, sem intimidade, sem cumplicidade. Os problemas do dia-a-dia desatam o laço erótico. As pessoas acabam vivendo sob o mesmo teto sem se perceberem como homem e mulher. Olham-se e não se vêem, estão próximas fisicamente e ao mesmo tempo sentem uma solidão insuportável. A relação é tão pouco gratificante que o envolvimento com terceiro se torna uma decorrência deste estado de carência afetiva. O espaço virtual se presta como nenhum outro à fuga da realidade frustrante.
Neste sentido é a lição da psicóloga Ana Maria Nicolai da Costa, que nos remete a uma reflexão sobre o mundo do “CÁ” (a realidade) e o mundo do “LÁ” (o mundo mental, a fantasia), afirmando que é da natureza humana, principalmente quando se enfrenta situações desagradáveis, refugiar-se no mundo do “LÁ”, a partir de um “mero clique no botão da nossa imaginação.”
Até bem pouco tempo, a fuga inconsciente para o mundo imaginário ficava apenas no terreno da fantasia, no mundo do sonho, único espaço onde se pode ser verdadeiramente livre, onde se pode ser infiel sem que ninguém descubra, onde a infidelidade fantasiosa jamais é confessada a alguém. Agora existe a Internet e o espaço virtual permite “estar junto” com outra pessoa, permite revelar sonhos e desejos, realizar fantasias, sem riscos aparentes.
Na Internet, a figura idealizada do outro não enfrenta o desgaste da convivência. O que se idealiza sempre é melhor do que o que se tem. No espaço virtual todos são pessoas especiais que construímos em nossas mentes, a partir dos nossos desejos. O espaço mágico virtual permite que o indivíduo construa um mundo também mágico, como se estivesse escrevendo o roteiro de um romance.
O internauta pode fraudar dados pessoais como estado civil, raça, profissão, idade, tipo físico. Quanto à personalidade, pode demonstrar no espaço virtual características diferentes do seu comportamento social real. No entanto, a simulação da personalidade nada mais é do que o exercício de um papel que o internauta desejaria desempenhar na vida real, mas não consegue. Esta nova realidade tem levado os especialistas a reverem os conceitos sobre personalidade múltipla.
Na comunicação virtual acontece a construção de “uma realidade de segunda ordem” , uma realidade de simulação, que nos reporta a um “mundo imaginal”, que é um mundo simbólico, imaterial, uma forma inusitada de estabelecer um vínculo social . Neste mundo, a pessoa pode “fugir” do cotidiano, comunicando-se com um “outro” sem rosto, sem identidade, que não exige compromisso, bastando clicar um botão para interromper a comunicação. Este relacionamento pode manter-se no plano imaginal, ou derivar para uma aproximação física.
5. INFIDELIDADE VIRTUAL E ADULTÉRIO – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS
A infidelidade virtual é um relacionamento erótico-afetivo mantido através da Internet. Se este relacionamento levar a relações sexuais, consuma-se o adultério. Qualquer uma das hipóteses interessa ao direito porque pode causar a dissolução do casamento ou da união estável.
A civilização impõe ao homem um paradoxo: enquanto reconhece que o instinto de liberdade integra a sua natureza (no qual está incluído o desejo de troca de parceiros), estabelece limites a esta liberdade através de normas que inibem o exercício deste instinto, objetivando evitar a desorganização social. Como conseqüência, a maioria dos sistemas jurídicos modernos optou pela monogamia como forma de constituição e proteção da célula familiar. Desta opção decorrem deveres de interesse público, moral e eticamente determinados pelo princípio da solidariedade, pelo princípio da proteção à dignidade humana, pelo princípio da proteção à família, como o dever de fidelidade recíproca para o casamento e o dever de respeito e consideração mútuos para a união estável.
Portanto, fidelidade e respeito mútuo constituem um juízo de valor emanado do social, que autoriza a imposição de norma limitadora ao instinto de liberdade. Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama, a fidelidade “envolve o dever de lealdade entre os partícipes, sob os aspectos físico e moral, no sentido de abster-se de manter relações sexuais com terceira pessoa, e mesmo de praticar condutas que indiquem esse propósito ainda que não consume a traição. Envolve, portanto, tanto a infidelidade material quanto a moral.”
A distinção entre infidelidade material e moral importa para caracterizar a infidelidade virtual, que é uma forma de infidelidade moral. Na relação virtual estabelece-se um laço erótico-afetivo platônico, mantido à distância através de um computador. A pessoa sai do seu espaço imaginário para relacionar-se com uma pessoa invisível, mas que está lá e que corresponde. O enamoramento virtual pode criar um laço erótico-afetivo muito mais forte do que o relacionamento real que a pessoa vive, desgastado pela convivência diária, pois é alimentado pela fantasia. Acontece um quase adultério, uma infidelidade moral. A cumplicidade, a intimidade, a paixão estabelecidas no espaço virtual muitas vezes levam o casal ao contato físico, com relações sexuais, quando então acontece a infidelidade material ou adultério. Portanto, não existe adultério virtual e sim infidelidade virtual que pode levar ao adultério propriamente dito.
Através da lei do divórcio, o sistema jurídico vigente, autoriza o pedido unilateral de separação ao cônjuge que foi vítima de infidelidade material ou moral, como é a infidelidade virtual, porque acontece o descumprimento de um dever legal, o que é considerado injúria grave. Fundamentada no princípio da investigação da culpa, a lei também estabelece sanções quanto à guarda dos filhos , ao uso do nome do marido e quanto aos alimentos. A jurisprudência superou o dispositivo legal no tocante à guarda dos filhos e, priorizando o interesse do menor, autoriza-o a permanecer com quem se revelar melhor cuidador. Quanto ao uso do nome do marido, desde 1992 o legislador excepcionou os casos em que a mulher poderá mantê-lo, mesmo se considerada culpada. Quanto aos alimentos, a lei determina que o cônjuge responsável pela separação os prestará ao outro, se ele necessitar. Porém, sendo o alimentado culpado, a leitura do dispositivo tem sido feita a contrario senso e a doutrina e a jurisprudência dominantes interpretam que o responsável pela separação não será pensionado, mesmo que necessite dos alimentos. Paradoxalmente, a lei que regulamenta a união estável não determina expressamente a investigação da culpa para concessão do benefício.
Apesar dos dispositivos legais vigorantes, a doutrina divide-se em duas grandes correntes antagônicas no que tange às causas autorizadoras de pedido de separação e seus efeitos. A mais antiga e conforme ao ordenamento jurídico recomenda a manutenção da investigação da culpa com sanções ao culpado. A corrente mais atual recomenda uma revisão legislativa para que o princípio da culpa seja substituído pelo princípio da ruptura e o desamor aceito como causa justificadora e autorizadora da dissolução do vínculo, sem outros efeitos.
Dentre os doutrinadores que defendem a manutenção do princípio da culpa com aplicação de sanções, está Yussef Said Cahali para quem a sentença da separação ou divórcio “concluirá necessariamente pela condenação do demandado como cônjuge culpado” . Também o professor Caio Mário da Silva Pereira afirma que o divórcio-sanção objetiva “ aplicar ao cônjuge culpado a dissolução do matrimônio, como penalidade em face de seu comportamento infiel” .
Desta corrente doutrinária emerge a tese que defende o direito a indenização por danos morais ou materiais. Neste sentido, o mestre Yussef Said Cahali entende que “parece não haver a mínima dúvida de que o mesmo ato ilícito que configurou infração dos deveres conjugais posto como fundamento para a separação judicial contenciosa com causa culposa, presta-se igualmente para legitimar uma ação de indenização de direito comum por eventuais prejuízos que tenham resultado diretamente do ilícito para o cônjuge afrontado” . Também José de Castro Bigi adverte que o cônjuge culpado praticou um ato antijurídico “se infringiu um dano injusto ao outro cônjuge” e que isto não se apaga com a separação e a pensão.
Entre os defensores desta tese também está Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos que recomenda: “ A prática de ato ilícito pelo cônjuge, que descumpre dever conjugal e acarreta dano ao consorte, ensejando a dissolução culposa da sociedade conjugal, gera a responsabilidade civil e impõe a reparação dos prejuízos, com o caráter ressarcitório ou compensatório, consoante o dano seja de ordem material ou moral.” A mesma doutrinadora entende que a união estável tem natureza contratual e recomenda “a aplicação das regras da responsabilidade civil contratual à sua dissolução” .
Embora a tese que admite indenização por dano moral e material na separação e no divórcio estivesse manifesta na doutrina tradicional, poucos foram até agora os pedidos que aportaram aos Tribunais.
Dentre os doutrinadores que defendem a substituição do princípio da culpa pelo princípio da ruptura está Rodrigo da Cunha Pereira ao recomendar que se repense e se redirecione este princípio estigmatizante “para que nos aproximemos do ideal de Justiça, de liberdade e libertação dos sujeitos, acertando o passo com a contemporaneidade.” Na mesma esteira, Renan Lotufo lembra que tudo o que se refere à dissolução do casamento, como a investigação da culpa, decorre da antiga idéia de que o casamento não podia ser desfeito.
Em minudente análise dos dispositivos constitucionais e materiais relativos à família, o professor Gustavo Tepedino também conclui que “se a unidade da família, à luz da Constituição, não mais se identifica com a unidade do casamento, não há como associar a aplicação de sanções atinentes a efeitos jurídicos existenciais - alimentos, guarda de filhos, sobrenome da mulher - e mesmo patrimoniais - divisão dos bens - à culpa pela ruptura do vínculo matrimonial.”
Também em posição contrária à investigação do princípio da culpa está Maria Berenice Dias ao advertir que para a cessação da união basta o exaurimento do elo amoroso e que o pedido de separação “é uma decisão pessoal, na qual descabe a intervenção do Estado exigindo a identificação de um responsável para puni-lo de forma exemplar” No mesmo sentido, a opinião de Rolf Madaleno, para quem a pesquisa da razão culposa na separação serve “aos interesses mesquinhos da parte que quiser se utilizar do processo como instrumento de vingança de seus ressentimentos, ou de suas frustrações como esposo.” Também repudiando a investigação da culpa Antônio Cezar Peluso adverte que a esta concepção alimenta-se “das tendências mais primitivas e perversas do ser humano, que são as pulsões de vingança, de satisfação da represália e do castigo, como resposta mínima à ofensa pessoal”, que aplicadas pelo judiciário oferecem o conforto aparente de que quem pune é o juiz .
As duas correntes trazem argumentos consideráveis e são integradas por importantes doutrinadores. Portanto, tormentosa é a questão que está a exigir uma revisão de conceitos, que passa pela definição da natureza jurídica do casamento e redimensionamento do conceito de culpa.
Neste sentido, importante é a lição de Luiz Felipe Brasil Santos ao advertir que: “a conceituação jurídica de culpa é bem diversa da conceituação psicológica. No campo do direito a culpa é sempre do outro, caracterizando-se pela infração a algum dos deveres conjugais ou por conduta desonrosa,... enquanto na seara psicológica culpa é algo que diz respeito ao próprio sujeito.”
Quanto aos aspectos subjetivos da infidelidade, a psicologia informa que sua prática pode ser motivada por diversas causas, umas patológicas e outras não. Dentre as causas patológicas, geralmente originadas por algum problema mal resolvido na infância, está a falta de aprendizado do princípio ético da lealdade. Outra manifestação de profunda desordem psicológica se traduz no desejo consciente ou inconsciente de ferir alguém. Já em outras pessoas a neurose também pode manifestar-se por uma dificuldade de estabelecer laços afetivos profundos, o que as leva a uma busca compulsiva de sensações e de aventuras.
Além das causas patológicas, a infidelidade, também pode acontecer como fuga da vida real, quando falta coragem para promover a separação formal. Nesta causa podem enquadrar-se a maioria dos relacionamentos virtuais, que se apresentam como uma fuga da relação pouco gratificante que as pessoas vivem.
A psicóloga Ana Cristina Silveira Guimarães esclarece que “ a realidade das relações virtuais abrange um amplo espectro de possibilidades de relações que vai desde a normalidade à patologia, dependendo do uso que cada indivíduo faça desta relação, seja um uso narcísico (que pode ser apenas um prolongamento de seu mundo interno), seja um uso perverso ou uma forma de se evadir da realidade externa ou interna, conforme a subjetividade inerente a cada ser humano”. Portanto, a simples comunicação através da Internet, mantida muitas vezes através de pseudônimo, não implica necessariamente em infidelidade, pois pode representar apenas uma fuga da realidade que ajuda a suportar o mundo real.
Por outro lado, o insucesso de um relacionamento não acontece de uma hora para outra. É um processo longo para o qual muitas vezes contribuem os dois parceiros com suas dificuldades pessoais. A verdadeira causa da culpa, psicologicamente falando, é subjetiva e se constrói, quase sempre, com a participação de ambos. Portanto, seria temerário atribuir dogmaticamente ao causante aparente a culpa por um comportamento que pode ser o reflexo da atitude do outro ou a projeção de um problema do outro. Neste sentido, Pontes de Miranda já advertia que a regra da infidelidade sofre limitações e que o adultério perde sua importância como causa bastante para a dissolução da sociedade conjugal “se o autor houver concorrido para que o réu o cometesse.” No mesmo sentido, Antônio Cezar Peluso afirma que a responsabilidade pelo pacto, pela aliança conjugal é de ambos.
As relações erótivo-afetivas constituem um pacto psico-sócio-jurídico muito mais amplo do que um mero contrato e o operador do direito não pode ignorar a subjetividade que permeia tais relações. Conforme leciona Marcos Antônio Colares, é preciso ter consciência de que se está “trilhando no solo da emoção”. Enquanto vigorarem dispositivos legais baseados no princípio da culpa, a investigação desta deverá ser feita considerando não só os aspectos jurídicos como os aspectos psicológicos, éticos e sociais objetivando descobrir se a causa aparente da culpa é a verdadeira. Esta recomendação se impõe, principalmente, quanto a concessão de alimentos e indenização por danos morais.
No atual momento sócio econômico brasileiro muitos têm sido os processos pleiteando indenização por dano moral na esfera cível. Contudo, na esfera familiar tais pedidos reclamam uma profunda reflexão e investigação das verdadeiras motivações do autor. Um pedido de indenização somente não será imoral se houver um dano realmente grave e a reivindicação não tiver por objeto apenas o lucro fácil. Neste sentido Sérgio Gischkow Pereira adverte que “a prosperar este exagero, praticamente toda a ação de separação judicial ensejaria pedido cumulado de perdas e danos morais, em deplorável e perniciosa monetarização das relações erótico-afetivas.”
As relações familiares são diferentes das relações contratuais comuns. As relações virtuais também revelam novos comportamentos e a identificação de todas as variáveis que envolvem os conflitos amorosos não é trabalho fácil. Pela subjetividade das relações humanas, é difícil perquirir a culpa em um relacionamento quando não se pode ter a certeza do que se passa na intimidade do casal. Haveria um único culpado ou haveria uma concorrência de culpas? A infidelidade seria uma causa ou uma conseqüência? Diante do atual panorama legal e doutrinário, a solução mais acertada é a casuística e faz-se necessário buscar a luz da interdisciplinariedade para chegar mais perto da verdade e da justiça. O operador do direito deve estar aberto à reflexão e, consoante a lição de Luiz Edson Fachin “ reconhecer que consciência social e mudança integram a formação jurídica” .
6. PROVA LÍCITA, PRIVACIDADE, SIGILO
No espaço virtual as pessoas pensam que estão protegidas, porém este espaço é muito pouco discreto e garante uma privacidade apenas relativa ao internauta. Mesmo que ele se identifique por apelidos (nicks), a correspondência trocada fica armazenada na memória do computador e no provedor de acesso à rede. Este funciona como uma espécie de banco onde ficam armazenadas todas as comunicações virtuais que poderão ser judicialmente requisitadas ou até mesmo invadidas ilegalmente por técnicos. Mesmo que se use senha para bloquear o acesso ao correio eletrônico, especialistas (hackers e crackers) têm condições de descobri-la. Podem ingressar no provedor e, chegando até o arquivo mestre, copiar a senha. A comunicação pela Internet pode ocorrer de várias maneiras: por e-mail , por CHATS , por MIRC ou por ICQ. Todas estas modalidades permitem que especialistas acessem as correspondências e dados pessoais, pois ainda não existem meios idôneos que garantam plena segurança às comunicações virtuais.
Os direitos à privacidade e à intimidade são garantidos pela Constituição Federal no capítulo dos direitos fundamentais, que também veda a utilização de provas obtidas por meios ilícitos. Além das possibilidades de prova indicadas no Código Civil e no Código de Processo Civil , desde 1996 vigora no Brasil a lei 9.296, que regulamenta o art. 5º, § XII da Constituição Federal e estabelece normas e sanções protetoras dos dados constantes das comunicações via Internet, inclusive. Também tramita no Congresso Nacional o projeto de lei nº 1.713/96, que dispõe sobre crimes praticados no espaço virtual.
Na hipótese de o cônjuge infiel manter a comunicação virtual através de computador de uso familiar, sem uso de senha, a obtenção desta prova através da entrada no correio eletrônico não pode ser considerada invasão de privacidade ou violação ao direito de sigilo, pois o usuário não tomou as devidas cautelas para preservar sua intimidade. Porém, se o internauta usar senha de acesso e a prova for obtida sem o seu consentimento, ela será considerada ilícita. Consoante a lição de Sônia Rabello Doxey “ A geração da prova do adultério há de ser lícita, não se podendo admitir prova obtida por meios criminosos ou fraudulentos.” Para produzir a prova desejada e não transgredir o direito fundamental à privacidade e ao sigilo das comunicações pessoais, o ofendido deve recorrer ao judiciário.
7. CONCLUSÃO
As relações virtuais constituem uma nova forma de relacionamento que partem da descoberta de afinidades, ao contrário do enamoramento tradicional que parte do olhar e do contato físico. Este relacionamento pode representar apenas uma fuga da realidade sem maiores conseqüências. Porém, muitas vezes, a intimidade e a cumplicidade nascidas no espaço virtual estabelecem um laço erótico-afetivo importante que pode ser causa da dissolução do casamento ou da união estável. O relacionamento virtual pode evoluir e conduzir à prática de adultério.
Quando acontece o relacionamento erótico-afetivo virtual, o pedido de dissolução do vínculo por parte de quem foi traído pode ser conseqüência natural da revolta causada pela falta de lealdade. De qualquer forma, rompendo-se o afeto ou a confiança, não há como obrigar a subsistência do vínculo formal e o Estado deve favorecer o desfazimento do casamento ou da união estável, uma vez que não lhe cabe determinar sentimentos. A aceitação pura e simples do desamor como causa subjetiva do rompimento do vínculo favorece a composição dos conflitos ( cada vez mais buscados através da mediação) e também poupa as partes a uma exposição pública de seus problemas pessoais.
O princípio da culpa em direito de família deve ser revisto, respeitada a subjetividade existente no pacto psico-sócio-jurídico que uma relação erótico-afetiva encerra, seja ele formado pelo casamento ou pela união estável. A nova configuração da família – inclusive os relacionamentos virtuais – reclama por uma modernização de conceitos jurídicos sob a luz da interdisciplinariedade.
* Advogada
marig@terra.com.br
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