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Quando a vítima é mulher
Maria Berenice Dias[1]
Como o Código Penal data do ano de 1940, periodicamente precisa ser atualizado. Principalmente quanto aos crimes que dizem com a dignidade e a liberdade sexual da mulher. Ela sempre foi – e ainda é – a maior vítima entre todos os crimes que são cometidos no país. Segundo o Datafolha, 503 mulheres sofrem violência física por hora. A cada dia, 12 são mortas e 135 são estupradas.
Os números são estarrecedores!
Não há dia que a imprensa não noticie o que fazem os homens pelo simples fato de não aceitarem a frase: não te quero mais!
As causas parecem que são muitas, mas, de fato, é uma só.
A cultura machista que reina em uma sociedade ainda conservadora, em que o homem acredita ser o dono da mulher. Um objeto que é seu e que não aceita que possa perder. Não aceita ser abandonado.
Simples assim.
Claro que a solução está na educação.
Mas o assustador é que, em nome da conservação da família, está se impedindo que nas escolas se discutam as questões de gênero.
Propositadamente políticos baralham sexualidade com incentivo à homossexualidade, com o único propósito de impedir que as mulheres ocupem o lugar pelo qual vêm lutando há décadas.
E, enquanto se tenta convencer a sociedade de que não existe igualdade de gênero, vai continuar esta absurda carnificina.
As mulheres estão virando mártires do preconceito que tenta se instalar no poder.
Claro que a criação de novos tipos penais e o aumento das penas, não faz com que os crimes deixem de acontecer. No entanto, dispõe de caráter pedagógico e desestimula sua prática.
Historicamente, a condenação nos chamados “crimes contra os costumes”, era rara. O desencadeamento da ação penal dependia de representação da vítima, a evidenciar que não existia qualquer interesse do Estado em coibi-los. Por serem crimes que, de um modo geral, acontecem em ambientes privados, a prova era quase impossível. A palavra da mulher, sempre foi desacreditada. Na maior parte das vezes, restava ela responsabilizada pelo acontecido e o réu, absolvido.
Não era só. Havendo um vínculo de conjugalidade entre a vítima e seu assassino, a alegação da infidelidade da mulher, levava à absolvição do marido. Quer matasse ele a esposa ou o seu amante, era reconhecido que havia agido em legítima defesa da honra, excludente da punibilidade que sequer existia na lei.
Muitos foram os ganhos na tentativa de coibir a escalada de violência em que as mulheres são vítimas, pelo simples fato de pertencerem ao sexo feminino. Apesar dos muitos avanços, ainda se vive em uma sociedade conservadora, machista, que confere ao homem o direito ao livre exercício da sexualidade. Com quem quiser, a qualquer hora, seja no lugar que for. A virilidade masculina é medida pela coragem de impor o sua vontade, sem qualquer preocupação com o querer da mulher ou a conveniência da ocasião.
Quando do ingresso da mulher no mercado de trabalho – fruto da árdua luta feminista – sua liberdade sexual continuou desrespeitada. Passou a ser perseguida pelos chefes e colegas, os quais nutriam, também com relação a elas, igual sentimento de propriedade do seu corpo e do seu desejo. Foi necessária uma lei que reconhecesse o assédio sexual como crime (CP, art. 216-A).
A Lei Maria da Penha foi um grande marco, ao escancarar uma realidade que nunca ninguém quis ver: a prática contumaz de delitos domésticos contra as mulheres.
A previsão de uma forma qualificado do delito de homicídio, com o nome de feminicídio (CP, art. 121, § 2º, VI), escancarou uma realidade ainda chocante. O perigo a que estão expostas as mulheres pelo simples fato de desejarem sair de um relacionamento. Pelo jeito, a jura feita no altar: “até que a morte os separe”, é levada à risca pelo homem. Afinal, ele considera que a mulher é uma propriedade sua. Não tem direito de desobedecê-lo, de o abandonar.
Aguarda a sanção presidencial o PLS 618/2015, que altera dispositivos do Código Penal, incorporando o que a Justiça já proclamava de há muito. Nos delitos praticados contra a liberdade sexual e nos crimes sexuais contra vulneráveis (CP, art. 225), a ação é pública incondicionada. Ou seja, o Ministério Público passa a ter legitimidade para o oferecimento da denúncia, independentemente de representação da vítima.
Também são tipificados como crime a importunação sexual (CP, art. 215-A) e o induzimento, instigação, incitação ou apologia a crime contra a dignidade sexual (CP, art. 128-D e par. único). Estão previstos os crimes de estupro coletivo e corretivo, com a pena aumentada (CP, art. 126, IV, a e b). E resta esclarecido que ocorre estupro de vulnerável, mesmo quando há consentimento da vítima ou tenham ocorrido relações sexuais anteriores (CP, art. 127-A).
Do mesmo modo, mereceu inclusão no Código Penal a divulgação de cena de estupro, de estupro de vulnerável, de sexo ou pornografia (CP, art. 128-C). Existindo relação íntima de afeto, ou quando o crime é praticado com fim de vingança ou humilhação, a pena é aumentada (CP, art. 128-C, § 1º).
Todos estes crimes, quando perpetrados à noite, em lugar ermo ou em local público, aberto ao público, em grandes aglomerações ou em transportes públicos, têm a pena aumentada em um terço (CP, art. 226, I). A pena é elevada à metade quando o agente tem vínculo de conjugal idade ou parentesco com a vítima, é seu empregador ou tem autoridade sobre ela (CP, art. 226, II).
Bem, o legislador fez sua parte.
As autoridades judiciais e policiais fazem o que podem. Tanto o Ministério Público, como a Defensoria e os advogados. do mesmo modo
Os meios de comunicação são grandes aliados nesta verdadeira saga na tentativa se reverter os números horríveis que envergonham o país.
No entanto, como a violência tem origem no âmbito familiar, cabe à escola ensinar que as diferenças da ordem da sexualidade não autorizam posturas de gênero hierarquizadas. O sentimento de superioridade e dominação do homem não pode gerar a crença de que ele é dono da mulher, dispondo de um poder correcional sobre ela.
Esta é a única forma de se promover a indispensável e tão necessária mudança de paradigmas, para se poder proclamar que se vive em um Estado democrático e de Direito, onde homens e mulheres são iguais.
[1] Foi a primeira mulher a ingressar na magistratura do Rio Grande do Sul e a primeira Desembargadora do Estado.
É advogada com especialização em Direito homoafetivo, família e sucessões.
Pós-graduada e Mestre em Processo Civil pela PUCRS.
Ocupa cátedra da Academia Literária Feminina do RS.
Integra a Academia Brasileira de Direito.
Diretora das Relações de Gênero da Bienal do Mercosul.
Presidente da Comissão Especial de Diversidade Sexual e Gênero da OAB.
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM.
Presidente da Comissão Nacional de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM.
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