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A ampliação da desjudicialização no direito sucessório brasileiro
A ampliação da desjudicialização no direito sucessório brasileiro
Cristian Fetter Mold – Advogado, Professor, membro do IBDFAM
Flávio Grucci Silva - Advogado, Professor, membro do IBDFAM
Os anos de 2018 e 2019 podem ficar marcados no Brasil como aqueles em que o Direito Sucessório terá sofrido importantes avanços no plano da desjudicialização, tornando a solução de inventários e a homologação de testamentos mais ágeis, com a ampliação da atuação dos Cartórios de Notas.
Como se sabe, apesar de a Lei nº 11.441/07 ter alterado a redação do artigo 982 do Código de Processo Civil de 1973, para criar a possibilidade de lavratura de Escrituras Públicas de Inventário e Partilha, estas não seriam possíveis em uma destas quatro situações: (1) havendo herdeiro menor de idade, (2) havendo herdeiro maior incapaz, (3) havendo litígio entre as partes ou, ainda (4), na hipótese de ter o falecido deixado Testamento.
Quanto aos efeitos oriundos do fato de a pessoa ter deixado um Codicilo (art. 1881 e seguintes do Código Civil brasileiro), pouco ou nada se fala a respeito, havendo interessante dispositivo, todavia, no art. 652, § 4º, do Provimento nº 11/2013 da Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Maranhão: "A existência de codicilo não impede a lavratura de escritura pública de inventário e partilha".
Editado o novo Código de Processo Civil brasileiro (novo CPC), manteve-se a regra, conforme se depreende do art. 610: Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. Ficou claramente mantido o requisito da “ausência de litígio”, consoante a leitura do parágrafo primeiro do mesmo artigo: Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
Embora não seja o objetivo deste artigo fazer um levantamento neste sentido, é sabido que boa parte da doutrina brasileira, dedicada ao estudo destes institutos, vinha historicamente se posicionando a favor de simplificar o procedimento dos Inventários, defendendo o uso da Escritura Pública, mesmo havendo Testamento, sobretudo nas hipóteses em que este já houvesse sido definitivamente julgado, fosse caduco ou tivesse sido revogado.
Após a edição do Novo CPC, na ausência de solução ope legis, outros caminhos foram buscados, sendo conhecido o texto de Cristiano Chaves de Faria, propondo que, em se tratando de partes capazes, sem qualquer divergência, seria lícita a celebração de acordo de procedimento (negócio jurídico processual atípico), com vistas a simplificar o inventário, admitindo uma fase prévia de chancela e cumprimento de testamento pelo magistrado, sem a necessidade de utilização de uma duplicidade de procedimentos, aplicando, portanto, o artigo 190 do novo álbum processual. (In. Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, ano 50, Brasília, nº 106 (2) p. 322-331, Jan/Jun 2015 – disponível em https://www.tjdft.jus.br/institucional/jurisprudencia/revistas/doutrina-e-jurisprudencia/revista-v-106-n-2, último acesso em 05 de março de 2019)
No Distrito Federal, por exemplo, (seguindo a linha do que já ocorrera nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraíba), no fim de outubro de 2018, o Desembargador Corregedor do Tribunal de Justiça do Distrito Federal expediu o Provimento 29, incluindo o artigo 57-A e cinco parágrafos no Provimento-Geral da Corregedoria Aplicado aos Serviços Notariais e de Registro, alterando a sistemática dos inventários pela via extrajudicial.
Os dispositivos seguem adiante transcritos, com comentários considerados pertinentes pelos autores.
Art. 57-A. Havendo testamento, o inventário e a partilha, ou a adjudicação, poderão ser feitos por escritura pública, desde que haja expressa autorização do juízo sucessório nos autos de apresentação e de cumprimento de testamento e os interessados sejam capazes e concordes.
Primeiramente, chama a atenção no novel dispositivo a inexistência de qualquer menção ao Codicilo, o que ocorre talvez por sua pouca aplicação prática.
A seguir, resta claro que o juízo sucessório precisa autorizar o expediente nos autos de apresentação do testamento, sendo os interessados capazes e concordes.
A toda evidência parece-nos que o inventário não poderá ser feito extrajudicialmente enquanto houver qualquer tipo de contestação ao testamento, seja no seu conteúdo, na forma ou na capacidade do testador ou mesmo no que toque a alguma circunstância relacionada aos beneficiários (exclusão, o fato de ser interposta pessoa, etc.).
Curiosamente, podemos imaginar situação em que os herdeiros concordem com o trâmite do inventário em Cartório, mesmo pendendo discussão sobre o Testamento. Basta imaginar, por exemplo, que o Testamento esteja destinando um valor em dinheiro em favor de uma pessoa externa ao círculo familiar, acusada de ter cometido crime contra a honra ou contra a vida do Testador e autor da herança.
Neste caso poderia não haver qualquer tipo de litígio entre os filhos do falecido, mas sim entre estes e o legatário, em tese, autor de crime contra o testador.
Assim, não vemos problema, diante da nova orientação, que o juízo autorize o inventário cartorial e a partilha dos bens do morto entre os filhos, mantendo o valor em dinheiro destinado ao legatário acusado depositado em conta judicial até que seja julgado em definitivo o suposto crime cometido contra o autor da herança.
Importante frisar que há recente construção jurisprudencial, advinda do Eg. Tribunal de Justiça do Distrito Federal, no sentido de que as ações anulatórias de Testamento não estão inseridas no rol das ações indicadas para processamento e julgamento no juízo sucessório. Além disso, por visarem a desconstituição de um ato jurídico e demandarem exames de prova, deveriam ser consideradas demandas de maior complexidade, devendo tramitar perante o Juízo Cível (Acórdão n.1122774, 07048782820188070000, Relator: ROBERTO FREITAS 1ª Câmara Cível, Data de Julgamento: 11/09/2018, Publicado no DJE: 20/09/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada).
Após a promulgação de tal decisão, os autores vêm observando casos curiosos em que há, concomitantemente, uma ação homologatória de testamento tramitando perante o juízo sucessório e, uma ação anulatória, correndo em vara cível. Assim, recomenda-se que os Magistrados, antes de autorizarem a feitura do inventário em Cartório extrajudicial, verifiquem se há mesmo anuência de todos os herdeiros e/ou seus representantes e/ou se existe ação de cunho anulatório em andamento.
Dando seguimento aos breves comentários ao novo artigo 57-A do Provimento-Geral da Corregedoria Aplicado aos Serviços Notariais e de Registro, seguem-se os parágrafos adjuntos.
§ 1º No caso de testamento revogado, caduco ou se houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando-o inválido, o inventário e a partilha, ou a adjudicação, poderão também ser feitos por escritura pública, contanto que sejam observadas a capacidade e a concordância dos herdeiros.
O dispositivo acima é um complemento lógico ao art. 57-A. Relevante apenas verificarmos se as figuras “revogação”, “caducidade” ou “invalidade” maculam o documento em sua inteireza. Defende-se, também, a obtenção de certidão negativa sobre a existência de outra cédula testamentária feita pela mesma pessoa, ou pesquisas exaustivas em Cartórios não abrangidos pela Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados (CENSEC).
§ 2º Na hipótese prevista no parágrafo anterior, o notário solicitará a certidão do testamento; caso constatada a existência de disposição referente a reconhecimento de filiação ou de qualquer outra declaração com caráter de irrevogabilidade, será vedada a lavratura de escritura pública de inventário e partilha, ou adjudicação, e o inventário processar-se-á na via judicial.
Corretamente, o reconhecimento de filiação biológica ou socioafetiva, o reconhecimento de união estável, a aceitação ou renúncia a direitos hereditários, dentre outras declarações com caráter de irrevogabilidade, deverão impedir a lavratura da escritura pública de inventário.
A seguir, o parágrafo terceiro apresenta fórmula (talvez demasiado) resumida das regras contidas no art. 610, §1º do Código de Processo Civil e no art. 3º da Resolução 35/07 do Conselho Nacional de Justiça, este último de texto mais abrangente e adequado.
§ 3º A escritura pública de inventário e partilha, ou adjudicação, constituirá título hábil para o registro imobiliário.
E, por fim, os parágrafos quarto e quinto trazem regras sobre o processamento de eventuais dúvidas perante o juízo da Vara de Registros Públicos.
§ 4º O tabelião, a requerimento dos interessados que não se conformarem com as exigências feitas ou não puderem satisfazê-las, remeterá o título, com a declaração de dúvida, ao juízo da Vara de Registros Públicos para deliberação.
§ 5º Aplicar-se-ão às dúvidas suscitadas no processamento de inventário com testamento, no que couber, as disposições referentes às dúvidas de registro de imóveis contidas no Provimento-Geral da Corregedoria Aplicado aos Serviços de Notas e de Registro do DF.
Resolvemos acrescer ainda, a título de sugestão aos colegas advogados e aos jurisdicionados, que em caso de algum fato obstativo ou impeditivo da tomada de uma decisão pela via judicial ou extrajudicial, que se faça a abertura do inventário, de modo a evitar o transcurso do prazo legal de dois meses contido no art. 611 do Novo CPC, ensejador de multas em quase todos os Estados da Federação.
Tal abertura pode se dar na esfera extrajudicial, com a lavratura de um “Termo de Abertura” e/ou com um “Termo de Nomeação de Inventariante”, situação que, conforme vem entendendo o Tribunal de Justiça de São Paulo, deve afastar a incidência da multa supracitada (por exemplo na Apelação Cível 1030346-25.2018.8.26.0053, Rel. Marcos Pimentel Tamassia, julgado em 05 de fevereiro de 2019).
Também entendemos pela possibilidade de pedido de abertura do inventário na modalidade judicial, requerendo-se a suspensão do feito (e mesmo da cobrança de custas iniciais) até que se defina pela possibilidade de o procedimento ser extrajudicial ou não.
Sem dúvida, essa tendência de ampliação da viabilidade das escrituras públicas para fins de inventário e partilha, ainda que haja incapaz entre os herdeiros ou testamento deixado pelo autor da herança, traduz o anseio dos jurisdicionados de simplificar e tornar mais céleres os atos de transmissão da herança.
Nessa linha de evolução do Direito Sucessório no Brasil, tramita na Câmara dos Deputados o PL 9.496/2018, de autoria da Comissão Mista Temporária de Desburocratização, criada pelo Ato Conjunto dos Presidentes do Senado e da Câmara (ATN) nº 3, de 2016. O referido projeto tem por objetivo facilitar e ampliar a utilização da via extrajudicial e propõe: a revogação do art. 2.016 do Código Civil; nova redação ao art. 610 e a criação do art. 737-A, ambos do Código de Processo Civil, a seguir transcritos, respectivamente, “verbis”:
“Art. 1º A Lei 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil -, passa a vigorar com as seguintes disposições:
“Art. 610. Inexistindo acordo entre os herdeiros e os legatários, proceder-se-á ao inventário judicial.
§ 1º Se todos os herdeiros e os legatários forem concordes ou se houver um herdeiro, o inventário e a partilha ou, se for o caso, a adjudicação poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
(...)
§ 3º Se houver herdeiro incapaz ou se houver testamento, a eficácia da escritura pública dependerá de homologação do Ministério Público, a quem o tabelião de notas submeterá a escritura.
§ 4º Se o Ministério Público desaprovar a escritura, o tabelião de notas, por requerimento do interessado, submeterá a escritura para o juiz, que poderá suprir a homologação do Ministério Público por meio de sentença, em sede do presente procedimento de jurisdição voluntária.”
“Art. 737-A. Se todos os herdeiros e os legatários, capazes ou não, forem concordes, a abertura do testamento cerrado ou a apresentação dos testamentos público ou particular, bem como o registro e o cumprimento destes testamentos, além da nomeação do testamenteiro e da sua prestação de contas, podem ser feitos por escritura pública, cuja eficácia dependerá de homologação do Ministério Público.
§ 1º A abertura do testamento cerrado deverá ocorrer perante o tabelião de notas, que lavrará uma escritura pública específica atestando os fatos e indicando se há ou não vício externo que torne o testamento eivado de nulidade ou suspeito de falsidade.
§ 2º Na hipótese do § 1º deste artigo, a escritura pública de abertura do testamento cerrado deverá ser submetida à homologação do Ministério Público pelo tabelião de notas logo após a sua lavratura.
§ 3º Se o tabelião de notas identificar vício externo que torne o testamento cerrado eivado de nulidade ou de suspeito de falsidade, ele deverá submeter a escritura para homologação do Ministério Público.
§ 4º Se o Ministério Público dissentir do tabelião de notas, este, a requerimento dos interessados, submeterá a escritura para o juiz, que decidirá por meio de sentença em sede de procedimento de jurisdição voluntária.
§ 5º Em qualquer caso deste artigo, se o Ministério Público desaprovar a escritura, o tabelião de notas, por requerimento do interessado, submeterá a escritura para o juiz, que poderá suprir a homologação do Ministério Público por meio de sentença em sede do presente procedimento de jurisdição voluntária.
§ 6º É dispensada a publicação do testamento particular na hipótese deste artigo.”
“Art. 2º Revoga-se o art. 2.016 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.”
Com efeito, havendo consenso entre os herdeiros, a via judicial poderá ser preterida, sem que a opção pelo inventário extrajudicial implique risco aos incapazes que fizerem jus à herança, haja vista que a respectiva escritura pública somente surtirá efeitos após ser homologada pelo Ministério Público. Se esta não for aprovada, o interessado poderá requerer ao Tabelião que a encaminhe ao crivo do Juiz para suprir, por sentença, a homologação negada pelo “parquet”, por meio do simplificado procedimento de jurisdição voluntária.
Do mesmo modo, no tocante à abertura do Testamento Cerrado ou à apresentação dos Testamentos Público ou Particular, os herdeiros, capazes ou não, poderão optar pelo caminho extrajudicial, sendo que o Ministério Público também deverá ser acionado pelo Tabelião, a fim de resguardar as disposições de última vontade do autor da herança.
Atualmente, o Projeto de Lei em referência encontra-se em regime de tramitação especial e, desde 21.2.2018, aguarda pauta para ser apreciado pelo Plenário da Câmara. Se for aprovado, as perspectivas serão as melhores possíveis, pois a tutela dos incapazes e a lisura dos testamentos estarão garantidas ante a expertise e a fé pública do Tabelião na fase inicial, seguida da chancela do Ministério Público. Havendo dúvidas, o Judiciário será acionado para saná-las.
Entretanto, fica o alerta: para que reste justificada a opção pela via extrajudicial, é salutar garantir a celeridade na tramitação da escritura pública entre o Tabelião e o Ministério Público e, ainda, assegurar a modicidade dos custos relativos aos emolumentos cartorários. Afinal, a relação entre o custo e o benefício deve ser levada em consideração, sempre!
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