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Casamento em virtude de coação
I - Introdução
Em 1966 o eminente José Carlos Moreira Alves redigiu um precioso trabalho intitulado O Atual Projeto de Código Civil Brasileiro, no qual criticava o Anteprojeto do Professor Orlando Gomes, apresentado ao Legislativo um ano antes (reproduzido em "A Parte Geral do Código Civil Brasileiro", Saraiva, 1986).
Dentre os assuntos tratados neste trabalho, um é de alta importância para introduzir o presente estudo, qual seja a passagem em que o jurista citado defende a manutenção da Parte Geral do Código Civil, cuja extinção fora proposta pelo Anteprojeto.
Na ocasião, são apresentados argumentos com os quais pretendia-se fundamentar a extinção da Parte Geral, dentre estes, o de que na Parte Geral existiriam dispositivos que não dizem respeito às quatro seções em que se divide a Parte Especial.
Em sua crítica, Moreira Alves afirma, com extrema propriedade, que "se, na parte geral, há princípios que se aplicam mais freqüentemente a uma das quatro seções em que se divide a parte especial, é certo que, em todos eles, se verifica a existência de caráter de generalidade, tanto assim que nenhum deles poderia ser colocado em uma daquelas quatro seções por pertencer exclusivamente a ela" (op. cit. pág. 15).
Quase quatro décadas após estas considerações é editado o Novo Código Civil brasileiro (NCC) – Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – trazendo em seu bojo uma Parte Geral, capítulo inicial no qual "além de serem fixados os ângulos e parâmetros do sistema, se elegem os termos adequados às distintas configurações jurídicas", nas sábias palavras do professor Miguel Reale (Exposição de Motivos ao Ministro da Justiça Armando Falcão – 1975).
Entretanto, embora o instituto da "coação" venha conceituado na Parte Geral do Código (art. 151), outro conceito, e diferenciado, se apresenta no art. 1558, que trata do casamento contraído sob coação.
Tem o presente estudo, portanto, o escopo de comentar criticamente esta ocorrência, ousando apresentar sugestão de nova redação ao art. 1558, no intuito de aperfeiçoar a nova legislação civil.
II – Coação – Um instituto, dois conceitos.
A Parte Geral do NCC traz em seu Livro III (Dos Fatos Jurídicos), os chamados "Defeitos do Negócio Jurídico" (Capítulo IV) e, dentre estes, o instituto da "Coação", tratado em dispositivo eminentemente conceitual, qual seja o art. 151: "A coação, para viciar a declaração de vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens."
A seguir, no parágrafo único ao art. 151, o legislador prevê outra forma de coação, nestes termos: "Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação."
Desta forma, restou balizada a coação no novo texto civil. Podemos dizer que o legislador admitiu a possibilidade de o fundado temor de dano poder ser incutido ao paciente com relação à sua própria pessoa, aos seus bens, ou com relação à qualquer pessoa, familiar ou não. Caso a ameaça recaia sobre ente não familiar, o julgador deverá ater-se às circunstâncias do caso para determinar a ocorrência ou não da coação.
Avançou o legislador neste sentido. O texto do Código anterior (art. 98) somente admitia a ocorrência de coação, caso a ameaça de dano recaísse sobre o agente ou pessoa da família, enumeração taxativa que vinha sendo criticada há muito tempo por juristas de escol, tais como Orosimbo Nonato: "... parece incoerência reconhecer-se a escusativa de legítima defesa de terceiro e desadmitir possa a ameaça a terceiro influir na vontade do agente. É fugir à evidência desconhecer, em tese, essa possibilidade quando a ameaça se dirige a um protetor cumulado de benemerências e a quem se deva gratidão e afeto, a um verdadeiro amigo íntimo, a um irmão de criação, ao noivo ou noiva, etc." ("Da Coação Como Defeito do Ato Jurídico", Forense, 1957, pág. 196).
Todavia, o mesmo Código Civil, no Livro do Direito de Família, ao tratar da anulabilidade do casamento obtido mediante coação, conceitua novamente o instituto, limitando porém o alcance obtido na Parte Geral, senão vejamos: "Art. 1558. É anulável o casamento em virtude de coação, quando o consentimento de um ou de ambos os cônjuges houver sido captado mediante fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares".
Desta forma, o tratamento dado ao instituto da coação no Livro de Direito de Família em muito se assemelha aos ultrapassados conceitos do Código de 1.916, excluindo o legislador, dentre as possibilidades de sua configuração, o temor inculcado em um ou em ambos os cônjuges de danos aos seus bens ou à pessoa que, embora não seja da família, seja próxima o suficiente para merecer sua atenção.
Ou seja, pela simples leitura do artigo 1558, o casamento poderia ser obtido através de atos maléficos, tais como, ameaçar macular a honra de amigo íntimo ou demonstrar a intenção de danificar algum bem do agente passivo, sem que este (ou esta) pudesse alegar a ocorrência de coação.
E há mais. Como os noivos não possuem nenhum laço de parentesco, um noivo mentalmente afetado, ou simplesmente obcecado, poderia compelir sua noiva, digamos, em dúvida sobre o casamento, a contrair as núpcias, bastando ameaçar suicidar-se, caso esta não aceitasse; hipótese que igualmente não seria abarcada pelo texto do artigo supracitado.
Tal orientação, com o devido respeito às opiniões contrárias, não poderá prosperar. O legislador, ao tratar do casamento contraído com pessoa coacta, não precisava ter elaborado novo conceito de coação, uma vez que o assunto encontrava-se tratado na Parte Geral, mais precisamente no artigo 151, de redação atual, congruente com a construção doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, elaborada ao longo das últimas décadas.
III – Conclusão e Sugestão.
Ao ser editado com dois conceitos sobre um só instituto, o novo Código Civil afasta-se, neste pormenor, dos objetivos preconizados por seus idealizadores, dando azo a interpretações variadas e até mesmo aplicações injustas.
Nossa opinião, ao final deste estudo, é a de que o conceito de coação está bem posto na Parte Geral, artigo 151, sendo desnecessária a formulação de um novo conceito na Parte Especial, ainda mais sendo um conceito limitador que não atende a uma série de hipóteses, além dos exemplos contidos no corpo deste estudo, em que a presença do vício de vontade é inquestionável.
Por fim, ousando apresentar sugestão a todos aqueles que têm se debruçado sobre o texto do novo Código Civil, buscando seu aperfeiçoamento, opinamos no sentido de que seja suprimida toda a porção conceitual do art. 1558, podendo ficar o mesmo assim redigido: "É anulável o casamento em virtude de coação", para que o leitor seja remetido diretamente ao art. 151, que bem conceitua o instituto, tornando-o aplicável a qualquer hipótese em que um ato jurídico (inclusive o casamento) encontre-se viciado ou defeituoso.
Até que tal alteração se opere, sugerimos a aplicação combinada dos dois artigos, vez que o artigo 151 preenche as lacunas deixadas pela limitada redação do artigo 1558.
* Advogado no Distrito Federal, Professor de Direito Civil na Faculdade CESUBRA (Objetivo), membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM.
Em 1966 o eminente José Carlos Moreira Alves redigiu um precioso trabalho intitulado O Atual Projeto de Código Civil Brasileiro, no qual criticava o Anteprojeto do Professor Orlando Gomes, apresentado ao Legislativo um ano antes (reproduzido em "A Parte Geral do Código Civil Brasileiro", Saraiva, 1986).
Dentre os assuntos tratados neste trabalho, um é de alta importância para introduzir o presente estudo, qual seja a passagem em que o jurista citado defende a manutenção da Parte Geral do Código Civil, cuja extinção fora proposta pelo Anteprojeto.
Na ocasião, são apresentados argumentos com os quais pretendia-se fundamentar a extinção da Parte Geral, dentre estes, o de que na Parte Geral existiriam dispositivos que não dizem respeito às quatro seções em que se divide a Parte Especial.
Em sua crítica, Moreira Alves afirma, com extrema propriedade, que "se, na parte geral, há princípios que se aplicam mais freqüentemente a uma das quatro seções em que se divide a parte especial, é certo que, em todos eles, se verifica a existência de caráter de generalidade, tanto assim que nenhum deles poderia ser colocado em uma daquelas quatro seções por pertencer exclusivamente a ela" (op. cit. pág. 15).
Quase quatro décadas após estas considerações é editado o Novo Código Civil brasileiro (NCC) – Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – trazendo em seu bojo uma Parte Geral, capítulo inicial no qual "além de serem fixados os ângulos e parâmetros do sistema, se elegem os termos adequados às distintas configurações jurídicas", nas sábias palavras do professor Miguel Reale (Exposição de Motivos ao Ministro da Justiça Armando Falcão – 1975).
Entretanto, embora o instituto da "coação" venha conceituado na Parte Geral do Código (art. 151), outro conceito, e diferenciado, se apresenta no art. 1558, que trata do casamento contraído sob coação.
Tem o presente estudo, portanto, o escopo de comentar criticamente esta ocorrência, ousando apresentar sugestão de nova redação ao art. 1558, no intuito de aperfeiçoar a nova legislação civil.
II – Coação – Um instituto, dois conceitos.
A Parte Geral do NCC traz em seu Livro III (Dos Fatos Jurídicos), os chamados "Defeitos do Negócio Jurídico" (Capítulo IV) e, dentre estes, o instituto da "Coação", tratado em dispositivo eminentemente conceitual, qual seja o art. 151: "A coação, para viciar a declaração de vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens."
A seguir, no parágrafo único ao art. 151, o legislador prevê outra forma de coação, nestes termos: "Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação."
Desta forma, restou balizada a coação no novo texto civil. Podemos dizer que o legislador admitiu a possibilidade de o fundado temor de dano poder ser incutido ao paciente com relação à sua própria pessoa, aos seus bens, ou com relação à qualquer pessoa, familiar ou não. Caso a ameaça recaia sobre ente não familiar, o julgador deverá ater-se às circunstâncias do caso para determinar a ocorrência ou não da coação.
Avançou o legislador neste sentido. O texto do Código anterior (art. 98) somente admitia a ocorrência de coação, caso a ameaça de dano recaísse sobre o agente ou pessoa da família, enumeração taxativa que vinha sendo criticada há muito tempo por juristas de escol, tais como Orosimbo Nonato: "... parece incoerência reconhecer-se a escusativa de legítima defesa de terceiro e desadmitir possa a ameaça a terceiro influir na vontade do agente. É fugir à evidência desconhecer, em tese, essa possibilidade quando a ameaça se dirige a um protetor cumulado de benemerências e a quem se deva gratidão e afeto, a um verdadeiro amigo íntimo, a um irmão de criação, ao noivo ou noiva, etc." ("Da Coação Como Defeito do Ato Jurídico", Forense, 1957, pág. 196).
Todavia, o mesmo Código Civil, no Livro do Direito de Família, ao tratar da anulabilidade do casamento obtido mediante coação, conceitua novamente o instituto, limitando porém o alcance obtido na Parte Geral, senão vejamos: "Art. 1558. É anulável o casamento em virtude de coação, quando o consentimento de um ou de ambos os cônjuges houver sido captado mediante fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares".
Desta forma, o tratamento dado ao instituto da coação no Livro de Direito de Família em muito se assemelha aos ultrapassados conceitos do Código de 1.916, excluindo o legislador, dentre as possibilidades de sua configuração, o temor inculcado em um ou em ambos os cônjuges de danos aos seus bens ou à pessoa que, embora não seja da família, seja próxima o suficiente para merecer sua atenção.
Ou seja, pela simples leitura do artigo 1558, o casamento poderia ser obtido através de atos maléficos, tais como, ameaçar macular a honra de amigo íntimo ou demonstrar a intenção de danificar algum bem do agente passivo, sem que este (ou esta) pudesse alegar a ocorrência de coação.
E há mais. Como os noivos não possuem nenhum laço de parentesco, um noivo mentalmente afetado, ou simplesmente obcecado, poderia compelir sua noiva, digamos, em dúvida sobre o casamento, a contrair as núpcias, bastando ameaçar suicidar-se, caso esta não aceitasse; hipótese que igualmente não seria abarcada pelo texto do artigo supracitado.
Tal orientação, com o devido respeito às opiniões contrárias, não poderá prosperar. O legislador, ao tratar do casamento contraído com pessoa coacta, não precisava ter elaborado novo conceito de coação, uma vez que o assunto encontrava-se tratado na Parte Geral, mais precisamente no artigo 151, de redação atual, congruente com a construção doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, elaborada ao longo das últimas décadas.
III – Conclusão e Sugestão.
Ao ser editado com dois conceitos sobre um só instituto, o novo Código Civil afasta-se, neste pormenor, dos objetivos preconizados por seus idealizadores, dando azo a interpretações variadas e até mesmo aplicações injustas.
Nossa opinião, ao final deste estudo, é a de que o conceito de coação está bem posto na Parte Geral, artigo 151, sendo desnecessária a formulação de um novo conceito na Parte Especial, ainda mais sendo um conceito limitador que não atende a uma série de hipóteses, além dos exemplos contidos no corpo deste estudo, em que a presença do vício de vontade é inquestionável.
Por fim, ousando apresentar sugestão a todos aqueles que têm se debruçado sobre o texto do novo Código Civil, buscando seu aperfeiçoamento, opinamos no sentido de que seja suprimida toda a porção conceitual do art. 1558, podendo ficar o mesmo assim redigido: "É anulável o casamento em virtude de coação", para que o leitor seja remetido diretamente ao art. 151, que bem conceitua o instituto, tornando-o aplicável a qualquer hipótese em que um ato jurídico (inclusive o casamento) encontre-se viciado ou defeituoso.
Até que tal alteração se opere, sugerimos a aplicação combinada dos dois artigos, vez que o artigo 151 preenche as lacunas deixadas pela limitada redação do artigo 1558.
* Advogado no Distrito Federal, Professor de Direito Civil na Faculdade CESUBRA (Objetivo), membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM