Artigos
Responsabilidade civil nas relações familiares: o abandono afetivo inverso e o dever de indenizar
Luíza Souto Nogueira
Advogada. Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo estudar o chamado abandono afetivo inverso, explicando no que consiste essa ideia e quando será possível sua identificação, apta a gerar o dever de indenizar. Para tanto, foram abordados breves noções acerca do conceito de pessoa idosa, bem como seus direitos e quais são as responsabilidades dos filhos adultos quando seus pais atingem a idade de 60 anos. Ainda, foram analisados, de maneira suscinta, os princípios informadores das relações familares.Tomando por base a noção de abandono afetivo (dos pais em relação ao filho), realizou-se um paralelo com a situação de abandono dos pais na velhice, demonstrando que, se presentes os elementos caracterizadores da responsabilidade civil, haverá o dever de indenizar.
Palavras chave: idoso; abandono afetivo; responsabilidade civil.
ABSTRACT
The purpose of this article is to study the so-called reverse affective abandonment, explaining what this idea consists of and when it will be possible to identify it as capable of generating a duty to indemnify. In order to do so, brief notions about the concept of the elderly person, their rights and the responsibilities of the adult children when their parents reach the age of 60 were addressed. Based on the notion of affective abandonment (of the parents in relation to the child), a parallel was made with the situation of abandonment of the parents in old age, demonstrating that, if the elements that characterize civil liability are present, there will be a duty to indemnify.
Keywords: elderly; affective abandonment; civil liability
INTRODUÇÃO
O Direito Família é ramo do Direito Civil que se encontra em constante transformação, o que ocorre porque as relações jurídicas, aqui mais especificamente as formações familiares, não são estáticas.
Com a evolução da sociedade novas situações fáticas surgem e se tornam frequentes na sociedade, exigindo a adaptação das normas e dos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais de modo a abarcá-las dentro do ordenamento pátrio.
Assim, inevitavelmente, as normas de direito de família dialogam com o campo da responsabilidade civil, permitindo que, mesmo no âmbito das relações de afeto, seja possível pleitear-se indenização em razão de um dano sofrido.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 teve início o chamado processo de constitucionalização do Direito Civil, que se caracterizou pela interpretação dos institutos do Direito Privado à luz dos principios constitucionais.
A partir de então todo o ordenamento jurídico passou a objetivar a concretização do supraprincípio da dignidade da pessoa humana, o que, muitas vezes, exige que se observem os problemas sociais não somente do ponto de vista da legislação positivada, mas também dos princípios (expressos e implícitos) que informam as relações jurídicas.
No que tange ao Direito de Família, muitas teorias surgiram para acompanhar as constantes evoluções e alcançar a proteção almejada para algumas pessoas que, em razão de situação peculiar, encontram-se mais vulneráveis no seio familiar, como crianças, adolescentes e idosos.
Foi a partir da análise dos reais deveres dos pais em relação aos filhos, bem como do nível de dano que o descumprimento deles pode causar, que se passou a aceitar a possibilidade de se pleitear a indenização por abandono afetivo.
A despeito do vocábulo afetivo ter sido o escolhido, destaca-se que não se refere à falta de amor, posto que não se pode obrigar ninguém a nutrir esse sentimento por outrem, nem mesmo por um filho. O abandono que se pune é aquele relativo ao descumprimento do dever de cuidado.
Esse dever, como se verá, não está presente somente na relação paterno-filial, como também naquela que se verifica no sentido inverso, ou seja, quando os pais atingem a idade idosa.
Em razão da solidariedade que rege as relações familiares, do afeto e do dever de prezar pela realização da dignidade de seus membros, espera-se que os filhos zelem por seus pais quando estes atingirem a velhice. Trata-se, nada mais, do que um cuidado recíproco, uma devolução daquilo que foi recebido na infância.
Entretanto, como nem sempre o ideal é o que se verifica nas relações concretas, tanto a Constituição Federal quanto o Estatuto do Idoso impõem aos filhos adultos o dever de amparar seus pais a partir dos 60 anos.
E, assim como se dá com os pais, também os filhos poderão descumprir esse dever, dando causa ao que se entende por abandono afetivo inverso.
E, conforme restará demonstrado no presente trabalho, esse abandono, gerando dano aos pais idosos, poderá dar causa à responsabilização civil.
1. A pessoa idosa
O Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) estabelece, em seu artigo 1º, que tem ele por objetivo “regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos”.
Não traz, portanto, referido diploma legal, um conceito de pessoa idosa. Limita-se a prescrever que todo aquele que atingir a idade de 60 anos deverá ser considerado como tal e, consequentemente, estará sob o manto dessa tutela especial.
Percebe-se que o legislador, assim como o fez em relação às crianças e adolescentes, optou por um critério cronológico para definir quem será considerado idoso, evitando estabelecer parâmetros subjetivos que acabariam por dificultar a identificação de quem seria entendido como pessoa idosa diante do caso concreto. Sobre isso leciona Oswaldo Peregrina Rodrigues:
O critério etário, decerto, é o mais prudente, adequado e equânime para a qualificação da pessoa que atinge a etapa idosa em sua vida, pois é objetivo, sem maiores perquirições pessoais. Ao completar o sexagésimo ano de sua vida, toda e qualquer pessoa física, para todos os efeitos legais, é considerada idosa, independente de suas condições personalíssimas – físicas, psíquicas, emocionais, sociais, econômicas (RODRIGUES, 2016, p. 16).
Logo após determinar quem será objeto de sua proteção, referido Estatuto menciona que deverá ser assegurado à pessoa idosa a proteção integral de seus direitos. Nesse sentido continua Oswaldo Peregrina Rodrigues:
Por se encontrar em momento peculiar de sua vida, a pessoa idosa necessita de integral e especial proteção para a garantia do envelhecimento sadio e digno, fornecendo-lhes todas as formas de assistência (pessoal – física, psíquica, psicológica, emocional –, material, social etc.), para o transcurso condigno dessa fase (RODRIGUES, 2016, p. 19).
A obrigação de garantir à pessoa com idade igual ou superior a 60 anos a proteção de seus direitos recai, em razão de determinação legal (Estatuto do Idoso, art. 3º), sobre a família, a comunidade, a sociedade e o Poder Público.
Para o presente trabalho interessa o dever de proteção que foi atribuído à família, razão pela qual não serão abordados os demais responsáveis.
Dentre os deveres que foram incumbidos pelo ordenamento jurídico à família em relação aos membros idosos, está o deverer de amparo, estabelecido pela Constituição Federal, em seu art. 229, in verbis:
“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
Em razão de mandamento constitucional, verificando-se a situação de velhice, surge para os filhos o dever de amparar os pais. Ou seja, a família possui dever de assistir material e moralmente a pessoa idosa.
Trata-se, nada mais, do que uma reciprocidade em relação ao cuidado que os pais tiveram (ou, pelo menor, deveriam ter tido) em relação aos seus filhos enquanto pessoas em desenvolvimento.
Justamente por isso, o descumprimento dever, como se explicará a seguir, poderá dar azo à ocorrência de um dano em relação ao idoso e, consequentemente, ao dever de indenizar por parte daquele a que incumbia o amparo.
2. Os princípios da solidariedade, da afetividade e da dignidade da pessoa humana como norteadores das relações familiares
A solidariedade está prevista na Constituição Federal em seu artigo 3º, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil[1].
Entende-se por sociedade solidária aquela na qual todos se empenham para a realização do bem comum, havendo uma divisão entre seus membros da responsabilidade pelo bem de todos e pela minimização das desigualdades entre eles.
Esse apoio mútuo também tem de estar presente no seio das relações famíliares. Devem os integrantes do núcleo familiar se responsabilizar pelas necessidades afetivas e psicológicas uns dos outros, zelando para que todos estejam amparados em relação a todas as suas necessidades e para que, como grupo, a família seja apta a realizar os fins para os quais foi constituída. Nesse sentido é a lição de Rolf Madaleno:
A solidariedade é princípio e oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário (MADALENO, 2013, p. 93).
Outro princípio que assume especial relevância nas relações famíliares é o da afetividade, que, apesar de não estar expressamente previsto no ordenamento jurídico pátrio, tem sido cada vez mais importante no momento de se observar e interpretar as famílias atuais.
O sentimento de afeto é o que dá origem ao surgimento de uma nova família, pois é ele que leva duas pessoas a se unirem com o objetivo de formar uma relação familiar, seja por meio do casamento, da união estável ou da união homoafetiva. O ponto em comum entre as diversas espécies de união é o afeto.
Também é ele que liga os pais aos filhos. Uma vez que a consanguinidade não é capaz de fazer com quem uma pessoa ame a outra, somente o vínculo de afeto entre elas é que as leva a querer conviver e se apoiar mutuamente.
O afeto, ademais, atua como fator de reforço à solidariedade. Isso porque o carinho acaba levando, naturalmente, a uma relação de cuidado mútuo entre os membros da família.
Referidos princípios atuam de maneira interligada na busca da realização do supraprincípio da dignidade da pessoa humana. Nessa linha é o ensinamento de Maria Berenice Dias:
A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum –, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas (DIAS, 2016, p. 49).
A família, portanto, aparece como um instrumento de realização do ser humano. As pessoas buscam se unir para dar origem a uma relação familiar para nela se desenvolver, autodeterminar e encontrar suporte para concretização de seus ideais.
3. Responsabilidade civil nas relações familiares
O Código Civil, em seus artigos 186 e 927, estabelece as normas básicas acerca da responsabilidade civil. O dever de indenizar surge sempre que for causado um dano a outrem em decorrência de um ato ilícito. Este, por sua vez, estará presente quando, por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia, houver violação de direito e lesão a seu titular, que pode ser de cunho material ou moral.
A despeito de a responsabilidade civil ser instituto previsto dentro do Direito das Obrigações, tem aplicação estendida para outros ramos, inclusive para o Direito de Família. Isso porque nosso ordenamento jurídico deve ser interpretado sistematicamente, não sendo possível, atualmente, entender que os institutos civis devem ser aplicados de maneira estanque.
Destacam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald a possibilidade de incidência das normas da responsabilidade civil no âmbito das relações familiares:
Seguramente, a obrigação de reparar danos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes da prática de um ato ilícito também incide no Direito das Famílias. Por certo, não se pode negar que as regas da responsabilidade civil invadem todos os domínios da ciência jurídica, ramificando-se pelas mais diversas relações jurídicas, inclusive as familiaristas (FARIAS, 2013, p. 162).
Na seara da família a responsabilidade civil, destaque-se, é subjetiva. Desse modo, para se aferir se há que se falar em dever de indenizar, deverão estar presentes: ato ilícito, dano e nexo causal.
Ademais, exige-se que essa conduta apta a ensejar reparação civil decorra de um ato doloso ou culposo. Isso porque, conforme ensina Pablo Stolze, nas relações familiares, a priori, não se exerce atividade que coloca em risco a integridade de outrem (GAGLIANO, 2013, p. 738). Ou seja, dificilmente poder-se-á falar em responsabilidade em razão de risco da atividade.
Sendo assim, presentes os elementos caracterizadores da responsabilidade civil subjetiva no contexto de uma relação familiar, será possível exigir-se a indenização cabível.
4. Responsabilidade civil por abandono afetivo
No que tange aos filhos menores, o ordenamento pátrio impõe aos pais, dentre outras incumbências, os deveres de assistir-lhes em suas necessidades e de zelar pelo seu sustento e criação.
Enquanto infante, o ser humano é incapaz de atender a todas as suas necessidades e depende dos seus genitores para que possa se desenvolver adequadamente. É por isso que os pais tem o dever de cuidado em relação a seus filhos, conforme explica Ana Maria Iencarelli:
O ser humano nasce muito frágil e com várias necessidades de cuidado, que comprometem sua sobrevivência. É indispensável que alguém lhe forneça e zele pelo alimento, pela higiene do corpo, pelo sono, e pelo colo. O cuidado, portanto, se constitui no condutor que o levará deste estado de vulnerabilidade absoluta ao processo de aquisição de autonomia e, consequentemente, de humanização (IENCARELLI, 2009, p. 163).
Ocorre que o cuidado de que necessitam as crianças e os adolescentes não se limita ao atendimento de suas necessidades materiais. Demandam eles, para seu adequado desenvolvimento, afeto e carinho, consubstanciados na presença de seus pais ou responsáveis ao seu lado em todos os momentos da vida.
A ausência desses elementos pode causar danos à sua formação como ser humano, conforme pontua Ana Maria Iencarelli:
A deficiência e a privação de cuidado afetuoso obstruem a coesão e estruturação saudável da mente de uma criança ao longo do seu desenvolvimento, causando estado de vulnerabilidade (IENCARELLI, 2009, p. 168).
Justamente em razão dos danos causados às crianças e aos adolescentes pela ausência de cuidado e de afeto é que se consagrou, recentemente, na doutrina e na jurisprudência brasileiras o entendimento no sentido de que é possível pleitear indenização do pai, da mãe ou de ambos em razão do abandono afetivo do filho. Nesse sentido é a lição de Maria Berenice Dias:
A falta de convívio dos pais com os filhos, em face do rompimento do elo de afetividade, pode gerar severas sequelas psicológicas e comprometer o seu desenvolvimento saudável. [...] A omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação. Se lhe faltar essa referência, o filho estará sendo prejudicado, talvez de forma permanente, para o resto de sua vida. [...] Tal comprovação, facilitada pela interdisciplinaridade, tem levado ao reconhecimento da obrigação indenizatória por dano afetivo. Ainda que a falta de afetividade não seja indenizável, o reconhecimento da existência do dano psicológico deve servir, no mínimo, para gerar o comprometimento do pai com o pleno e sadio desenvolvimento do filho (DIAS, 2015, p. 97-98).
Destaca-se que a expressão “abandono afetivo” foi escolhida para fazer referência à situação na qual o pai e/ou a mãe deixam de atender ao dever de cuidado que têm em relação aos seus filhos menores (crianças ou adolescentes).
O entendimento no sentido de que havendo abandono afetivo, será possível pleitear a indenização frente ao pai/mãe por ele responsável, foi consagrado no Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso especial 2009/0193701-9, de relatoria da Ministra Fátima Nancy Andrighi[2].
Fundamenta-se a ideia nos seguintes pilares: é possível se falar em dano moral no âmbito das relações familiares; o cuidado é um dever legal; o descumprimento do dever de cuidado configura ato ilícito e implica o dever de indenizar.
Isso porque, em razão do já mencionado princípio da solidariedade, a família é responsável pela garantia da plena realização de seus membros. Nesse sentido explica Giselda Hironaka:
[...] o dever de indenizar decorrente do abandono afetivo deva encontrar os seus elementos de configuração na funcionalização das entidades familiares, uma vez que estas devem tender à realização da personalidade de seus membros, com especial destaque para a pessoa dos filhos (HIRONAKA, 2006).
Sobre a ocorrência de danos morais indenizáveis nos casos de abandono afetivo leciona Rui Stocco:
Em tese, e diante das circunstâncias do caso, o filho, em razão do desprezo, abandono, pouco caso de qualquer dos pais poderá ser atingido em seu direito de personalidade e sofrer dano moral. E, como não se desconhece, a Carta Magna contém cláusula geral – posto que proteção erigida à condução de princípio – afirmando e estabelecendo a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem de todas as pessoas, independentemente de sua condição econômica, social ou familiar, assegurando a indenização pelo dano material ou moral quando a violação não possa ser evitada (STOCCO, 2007, p. 946).
Assim, sempre que os pais (ou algum deles), descumprir o seu dever de cuidar de sua prole, estarão cometendo um ato ilícito. Quando desse ilícito decorrer um prejuízo ao filho (nexo causal), haverá o dever de indenizar, o que se fará por meio da reparação dos danos morais sofridos.
5. Abandono afetivo inverso e o dever de indenizar
Analisando ação que pleiteava indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo do pai em relação ao filho, a Ministra Fátima Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, proferiu a frase “Amar é faculdade, cuidar é dever” e, com isso, formalizou entendimento no sentido de que a conduta de abandonar afetivamente um filho é geradora do dever de indenizar.
Ocorre que o dever de cuidar não se limita aos pais em relação aos filhos menores, estando previsto expressamente na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 229, o dever que os filhos têm em relação aos pais na sua velhice.
Esse dever de cuidado, que não decorre somente do poder familiar, sendo exigido também no sentido inverso, ou seja, dos filhos adultos em relação aos pais na velhice, não se limita a uma assistência meramente material, sendo necessário zelar para que lhes seja dada atenção afetiva e psicológica. Sobre o tema leciona Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
Especialmente quanto às pessoas dos avós, o art. 229 da Constituição Federal, na parte final, assegura aos pais dos titulares da autoridade parental sobre os menores – portanto, os avós destes – a ajuda e o amparo na velhice, carência ou enfermidade, não se referindo tal preceito apenas à assistência material ou econômica, mas também às necessidades afetivas e psíquicas dos mais velhos (GAMA, 2006, p. 108).
Sendo assim, se o descumprimento do dever de cuidado dos pais em relação aos filhos menores caracteriza abandono afetivo, situação análoga se verificará sempre que os filhos adultos inadimplirem o mesmo dever em relação aos seus pais quando idosos ou enfermos.
Essa situação de abandono afetivo, quando analisada sob a ótica dos pais na velhice, passou a ser denominada de “abandono afetivo inverso”, justamente porque aqui se inverte o ponto de análise, passando o dever a ser dos filhos adultos e o direito dos pais idosos.
Jônes Figueiredo Alves, em entrevista ao IBDFAM em 2013, explicou no que consiste o chamado abandono afetivo inverso:
Diz-se abandono afetivo inverso a inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família. O vocábulo “inverso” da expressão do abandono corresponde a uma equação às avessas do binômio da relação paterno-filial, dado que ao dever de cuidado repercussivo da paternidade responsável, coincide valor jurídico idêntico atribuído aos deveres filiais, extraídos estes deveres do preceito constitucional do artigo 229 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “...os filhos maiores tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência e enfermidade (IBDFAM, 2013).
A aceitação doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo dos pais em relação aos filhos foi lenta e gradual.
Inicialmente recusava-se qualquer direito a indenização, tendo em vista que não haveria como obrigar os pais a amar seus filhos e, consequentemente, como falar em ato ilícito em decorrência da ausência de amor.
Somente com o julgamento do Recurso Especial nº 1159242/2009, de relatoria da Ministra Fátima Nancy Andrighi, fortaleceu-se o argumento no sentido de que, a despeito de não haver um dever de amar, há o de cuidar e, pela ausência deste, pode haver dano e, consequentemente, dever de reparação.
Raciocínio idêntico deve ser aplicado para os casos em que se verificar o denominado abandono afetivo inverso. Explica-se. Verificado o descumprimento do dever de cuidado dos filhos em relação a seus pais idosos, haverá um ato ilícito passível de ser indenizado.
Isso porque, assim como ocorre com crianças e adolescentes, a pessoa idosa também se encontra em fase peculiar da vida, carecedora de especial atenção, conforme pontua Oswaldo Peregrina Rodrigues:
A criança, o adolescente e o idoso são seres humanos que se encontram em etapas especiais da vida; aqueles porque estão em fase de desenvolvimento (crescimento), com uma gama de peculiaridades – físicas, psíquicas, emocionais etc. – inerentes ao transcurso desse interregno entre o nascimento e a chegada à fase adulta. Por seu turno, a pessoa idosa está na última etapa, mas igualmente com razoável gama de peculiaridades (físicas, psíquicas, emocionais), donde o envelhecimento há de ser garantido, com todos os predicados possíveis para uma vida digna (RODRIGUES, 2009, p. 442).
E, justamente em razão das peculiaridades inerentes à velhice é que o abandono por parte dos filhos será tão danoso a ponto de causar um dano moral indenizável. Nesse sentido leciona Maria Berenice Dias:
[...] a falta de afeto e estímulo só debilita ainda mais quem se tornou frágil e carente com o avanço dos anos. Flagrada esta realidade, há que se reconhecer a ocorrência de abandono afetivo, de nefastas consequências já admitidas pela justiça, quando a omissão diz com crianças e adolescentes (DIAS, 2016, p. 648).
Para que se possa falar em dever de indenizar, imprescindível a verificação dos três elementos da responsabilidade civil: dano, culpa e nexo causal.
O dano se verifica justamente no prejuízo à dignidade do idoso membro do grupo familiar. Sobre o tema explica Giselda Hironaka:
O dano causado pelo abandono afetivo é antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, sendo certo que esta personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar [...] (HIRONAKA, 2006).
O elemento culpa estará caracterizado sempre que, voluntariamente, os descendentes da pessoa com idade igual ou superior a 60 anos deixarem de prestar-lhe o dever de cuidado a eles imposto.
Sobre a culpa no abandono afetivo em sua modalidade paterno-filial, Giselda Hironaka expõe:
[...] na conduta omissiva do pai ou da mãe (não-guardião) estará
presente a infração aos deveres jurídicos de assistência imaterial e proteção que lhes são impostos como decorrência do poder familiar (HIRONAKA, 2006).
É o que ocorre na espécie aqui estudada. A culpa aparece mediante uma conduta comissivo-omissiva, ou seja, no ato de não fazer aquilo que a lei manda, que, aqui, nada mais é do que o dever de cuidar dos pais na velhice.
Por fim, o nexo de causalidade restará configurado quando ouver uma relação de causa e efeito entre a conduta omissiva do descendente e um dano sofrido pelo ascendente.
Sendo assim, presentes o descumprimento do dever de cuidado imposto aos filhos adultos em relação aos pais na velhice ou na doença, a violação à dignidade do idoso abandonado afetivamente e o nexo de causalidade entre conduta e dano, estará presente o dever de indenizar.
Assim como ocorreu em relação aos filhos menores, plenamente cabível, portanto, o pedido de indenização por abandono afetivo formulado pelo pai e/ou mãe idoso em relação ao seu filho adulto.
CONCLUSÃO
À família compete o zelo pela plena realização do ser humano. É ela responsável pelo auxílio mútuo entre seus membros visando atingir não somente o bem comum, como também o de cada um individualmente considerado.
Compete àqueles que compõem o núcleo familiar auxiliar – material e moralmente – uns aos outros. Devem eles se responsabilizar pelo apoio afetivo que necessitam, prezando para que todos se encontrem amparados em relação às suas necessidades.
Esse dever de amparo se torna ainda mais importante em relação àqueles que, por razões etárias ou de desenvolvimento, encontram-se em posição de maior fragilidade na família e na sociedade, como é o caso das pessoas idosas.
Em relação àqueles com idade igual ou superior a 60 anos o dever de ajudá-los e ampará-los está previsto expressamente na Constituição Federal como uma obrigação dos filhos adultos.
E, como todo dever legalmente imposto, o seu descumprimento poderá ensejar uma sanção.
No caso específico dos idosos, o inadimplemento configura o que se chama de abandono afetivo inverso. Nomeclatura utilizada justamente para deixar claro que o abandono é dos filhos em relação aos pais.
Caracterizado o abandono afetivo dos idosos e havendo um dano – normalmente moral (violação à dignidade da pessoa humana) – surgirá para o filho que tinha o dever de cuidado a obrigação de repará-lo.
Percebe-se, portanto, que, assim como ocorre com os pais que deixam de amparar seus filhos menores, os filhos adultos que abandonarem moralmente seus pais na velhice poderão vir a ser civilmente responsabilizados.
REFERÊNCIAS
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DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
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GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de Direito Civil, volume 6: Direito de Família – As famílias em perspectiva constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Das relações de parentesco. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Direito de família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Nçovaes. Pressuposto, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo. Disponível em: <www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9365-9364-1-PB.pdf>. Acesso em 13.07.2018.
IBDFAM. Abandono afetivo inverso pode gerar indenização. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/noticias/5086/+Abandono+afetivo+inverso+pode+gerar+indeniza%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em 14.06.2018.
IENCARELLI, Ana Maria. Quem cuida ama – sobre a importância do cuidado e do afeto no desenvolvimento e na saúde da criança. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. (Coord.). Cuidado e vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009.
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RODRIGUES, Oswaldo Peregrina. Direitos da pessoa idosa. São Paulo: Editora Verbatim, 2016.
_____________. Direitos do idoso. In: NUNES JUNIOR, Vidal Serrano (Org.). Manual de direitos difusos. São Paulo: Editora Verbatim, 2009.
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
[1] Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial 2009/0193701-9. Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. DJe 10/05/2012. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido.
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