Artigos
Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus
SUMÁRIO: 1. Das entidades familiares; 2. Da demarcação jurídico-constitucional do tema; 3. Das normas constitucionais de inclusão; 4. Do melhor interesse das pessoas humanas que integram as entidades familiares; 5. Do fundamento comum no princípio jurídico da afetividade; 6. Dos critérios de interpretação constitucional aplicáveis; 7. Da inadequação da Súmula nº 380-STF; 8. Da violação do princípio da dignidade humana, como conseqüência da exclusão; 9. Da inclusão de entidades familiares implícitas ou equiparadas, no STJ; 10. Da união homossexual como entidade familiar; Conclusão.
Hominum causa omne ius constitutum sit
Cícero
1. Das entidades familiares
O pluralismo das entidades familiares, uma das mais importantes inovações da Constituição brasileira, relativamente ao direito de família, encontra-se ainda cercada de perplexidades quanto a dois pontos centrais: a) há hierarquização axiológica entre elas?; b) constituem elas numerus clausus?.
Proponho-me a enfrentar preferencialmente a segunda questão, gizando-a ao plano da Constituição brasileira, ou seja, extraindo sentido das normas nela positivadas, utilizando critérios reconhecidos de interpretação constitucional. Várias áreas do conhecimento, que têm a família ou as relações familiares como objeto de estudo e investigação, identificam uma linha tendencial de expansão do que se considera entidade ou unidade familiar. Na perspectiva da sociologia, da psicologia, da psicanálise, da antropologia, dentre outros saberes, a família não se resumia à constituída pelo casamento, ainda antes da Constituição, porque não estavam delimitados pelo modelo legal, entendido como um entre outros.
No campo da demografia e da estatística, por exemplo, as unidades de vivência dos brasileiros são objeto de pesquisa anual e regular do IBGE, intitulada Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD). Os dados do PNAD têm revelado um perfil das relações familiares distanciado dos modelos legais, como procurei demonstrar em trabalho pioneiro, logo após o advento da Constituição de 1988 . São unidades de vivência encontradas na experiência brasileira atual, entre outras :
a) par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos;
b) par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos e filhos adotivos, ou somente com filhos adotivos, em que sobrelevam os laços de afetividade;
c) par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos (união estável);
d) par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (união estável);
e) pai ou mãe e filhos biológicos (comunidade monoparental);
f) pai ou mãe e filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (comunidade monoparental);
g) união de parentes e pessoas que convivem em interdependência afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de grupo de irmãos, após falecimento ou abandono dos pais;
h) pessoas sem laços de parentesco que passam a conviver em caráter permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade sexual ou econômica;
i) uniões homossexuais, de caráter afetivo e sexual;
j) uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar de um ou de ambos companheiros, com ou sem filhos;
l) comunidade afetiva formada com “filhos de criação”, segundo generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação natural ou adotiva regular.
Interessa saber se as hipóteses enunciadas nas alíneas “g”, “h”, “i”, “j” e “l” estão ou não tuteladas pela Constituição brasileira. É o que se pretende investigar, a seguir, sendo certo que as hipóteses “a” até “f” estão nela previstas, nos três tipos de entidades familiares que explicitou, a saber, o casamento, a união estável e a comunidade monoparental.
Em todos os tipos há características comuns, sem as quais não configuram entidades familiares, a saber:
a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico e escopo indiscutível de constituição de família;
b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida;
c) ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente.
O direito também atribui a certos grupos sociais a qualidade de entidades familiares para determinados fins legais, a exemplo da Lei n.º 8.009, de 29.03.90, sobre a impenhorabilidade do bem de família; da Lei n.º 8.425, de 18.10.91, sobre locação de imóveis urbanos, relativamente à proteção da família, que inclui todos os residentes que vivam na dependência econômica do locatário; dos artigos 183 e 191 da Constituição, sobre a usucapião especial, em benefício do grupo familiar que possua o imóvel urbano e rural como moradia.
A questão proposta encontra-se estreitamente correlacionada com aqueloutra enunciada acima, quanto à possível hierarquização axiológica das entidades familiares, tendo primazia a família constituída pelo casamento. Parcela ponderável da doutrina assim entendeu, não apenas por razões de tradição jurídica, mas em virtude das expressões contidas no § 3º do artigo 226 da Constituição quando tratou do reconhecimento da união estável.
2. Da demarcação jurídico-constitucional do tema
A interpretação dominante do art. 226 da Constituição, entre os civilistas, é no sentido de tutelar apenas os três tipos de entidades familiares, explicitamente previstos, configurando numerus clausus. Esse entendimento é encontrado tanto entre os “antigos” civilistas quanto entre os “novos” civilistas, ainda que estes deplorem a norma de clausura que teria deixado de fora os demais tipos reais , o que tem gerado soluções jurídicas inadequadas ou de total desconsideração deles.
Os que entendem que a Constituição não admite outros tipos além dos previstos controvertem acerca da hierarquização entre eles, resultando duas teses antagônicas:
I – Há primazia do casamento, concebido como o modelo de família, o que afasta a igualdade entre os tipos, devendo os demais (união estável e entidade monoparental) receberem tutela jurídica limitada;
II – Há igualdade entre os três tipos, não havendo primazia do casamento, pois a Constituição assegura liberdade de escolha das relações existenciais e afetivas que previu, com idêntica dignidade.
O principal argumento da tese I, da desigualdade, reside no enunciado final do § 3o do art. 226, relativo à união estável: “devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. A interpretação literal e estrita enxerga regra de primazia do casamento, pois seria inútil, se de igualdade se cuidasse. Todavia, o isolamento de expressões contidas em determinada norma constitucional, para extrair o significado, não é a operação hermenêutica mais indicada. Impõe-se a harmonização da regra com o conjunto de princípios e regras em que ela se insere.
Com efeito, a norma do § 3º do artigo 226 da Constituição não contém determinação de qualquer espécie. Não impõe requisito para que se considere existente união estável ou que subordine sua validade ou eficácia à conversão em casamento. Configura muito mais comando ao legislador infraconstitucional para que remova os obstáculos e dificuldades para os companheiros que desejem casar-se, se quiserem, a exemplo da dispensa da solenidade de celebração. Em face dos companheiros, apresenta-se como norma de indução. Contudo, para os que desejarem permanecer em união estável, a tutela constitucional é completa, segundo o princípio de igualdade que se conferiu a todas as entidades familiares. Não pode o legislador infraconstitucional estabelecer dificuldades ou requisitos onerosos para ser concebida a união estável, pois facilitar uma situação não significa dificultar outra.
A tese II, da igualdade dos tipos de entidades, consulta melhor o conjunto das disposições constitucionais. Além do princípio da igualdade das entidades, como decorrência natural do pluralismo reconhecido pela Constituição, há de se ter presente o princípio da liberdade de escolha, como concretização do macroprincípio da dignidade da pessoa humana. Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial. Não pode o legislador definir qual a melhor e mais adequada.
C. Massimo Bianca, tendo em conta o sistema jurídico italiano, ressalta o princípio da liberdade, pois a “necessidade da família como interesse essencial da pessoa se especifica na liberdade e na solidariedade do núcleo familiar”. A liberdade do núcleo familiar deve ser entendia como “liberdade do sujeito de constituir a família segundo a própria escolha e como liberdade de nela desenvolver a própria personalidade” .
A tese II, inobstante seu avanço em relação à tese I, ainda é insuficiente. A questão que se impõe diz respeito à inclusão ou exclusão dos demais tipos de entidades familiares. Já perfilhei a tese II. As meditações e as investigações ulteriores da dimensão e do alcance das normas e princípios contidas no art. 226 da Constituição, em face dos critérios de interpretação constitucional – notadamente do princípio da concretização constitucional, levaram-me ao convencimento da superação do numerus clausus, como demonstrarei.
A exclusão não está na Constituição, mas na interpretação.
3. Das normas constitucionais de inclusão
Estabelece a Constituição três preceitos, de cuja interpretação chega-se à inclusão das entidades familiares não referidas explicitamente. São eles, chamando-se atenção para os termos em destaque:
a) “Art. 226 A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. (caput)
b) “§ 4o Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
c) “§ 8o O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos.
O objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas humanas que a integram. Antes foi assim, pois a finalidade era reprimir ou inibir as famílias “ilícitas”, desse modo consideradas todas aquelas que não estivessem compreendidas no modelo único (casamento), em torno do qual o direito de família se organizou. “A regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição essencial” . O caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.
A regra do § 4o do art. 226 integra-se à cláusula geral de inclusão, sendo esse o sentido do termo “também” nela contido. “Também” tem o significado de igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros. Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto.
Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade.
4. Do melhor interesse das pessoas humanas que integram as entidades familiares
Os diversos preceitos do art. 227 referem-se à família, em geral, sem tipificá-la, ressaltando o interesse das pessoas que a integram, no mesmo sentido empregado pelo § 8o do art. 226. Para concretizar os interesses de cada pessoa humana, especialmente dos mais débeis (criança e idoso) é imputada à família o dever de assegurá-los (arts. 227, caput, e 230). Ao contrário da longa tradição ocidental e das constituições brasileiras anteriores, de proteção preferencial à família, como base do próprio Estado e da organização política, social, religiosa e econômica, a Constituição de 1988 mudou o foco para as pessoas humanas que a integram, razão porque comparece como sujeito de deveres mais que de direitos.
A proteção da família é proteção mediata, ou seja, no interesse da realização existencial e afetiva das pessoas. Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana.
5. Do fundamento comum no princípio jurídico da afetividade
O princípio da efetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas. A Constituição abriga princípios implícitos que decorrem naturalmente de seu sistema, incluindo-se no controle da constitucionalidade das leis. Encontram-se na Constituição Federal brasileira algumas referências, cuja interpretação sistemática conduz ao princípio da afetividade, constitutivo dessa aguda evolução social da família, especialmente:
a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º);
b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º);
c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, e a união estável têm a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, §§ 3º e 4º);
d) o casal é livre para extinguir o casamento ou a união estável, sempre que a afetividade desapareça (art. 226, §§ 3º e 6º);
e) o direito à convivência familiar é considerado prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227).
Se todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem, e têm assegurada a convivência familiar e solidária é porque a Constituição afastou qualquer interesse ou valor que não seja o da comunhão de amor ou do interesse afetivo como fundamento da relação entre pai e filho. A fortiori, se não há qualquer espécie de distinção entre filhos biológicos e filhos não biológicos, é porque a Constituição os concebe como filhos do amor, do afeto construído no dia a dia, seja os que a natureza deu seja os que foram livremente escolhidos. Se a Constituição abandonou o casamento como único tipo de família juridicamente tutelada, é porque abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão, passando a privilegiar o fundamento comum a todas a entidades, ou seja, a afetividade, necessário para realização pessoal de seus integrantes. O advento do divórcio direto (ou a livre dissolução na união estável) demonstrou que apenas a afetividade, e não a lei, mantém unidas essas entidades familiares.
A afetividade é construção cultural, que se dá na convivência, sem interesses materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Revela-se em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situação real.
A afetividade é necessariamente presumida nas relações entre pais e filhos, ainda que na realidade da vida seja malferida, porque esse tipo de parentesco jamais se extingue.
6. Dos critérios de interpretação constitucional aplicáveis
Além dos argumentos já referidos, que apontam para a configuração de cláusula de inclusão das entidades familiares implícitas, mediante interpretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais, outros critérios podem reforçar essa linha de entendimento, de acordo com a doutrina especializada. Antes, cumpre lembrar a advertência de Friedrich Müller , forte em H. G. Gadamer, sobre o peso da pré-compreensão – que precede e condiciona a interpretação – constituída pelos conteúdos, modos de comportamento, preconceitos, possibilidades de expressão e barreiras lingüísticas e a inserção do intérprete num contexto de tradição, o que, certamente, tem contribuído para o predomínio do entendimento da continuidade da cláusula de exclusão das demais entidades familiares.
Carlos Maximiliano aponta-nos três critérios hermenêuticos compatíveis à hipótese em exame, da interpretação ampla:
a) Cada disposição estende-se a todos os casos que, por paridade de motivos, se devem considerar enquadrados no conceito;
b) Quando a norma estatui sobre um assunto como princípio ou origem, suas disposições aplicam-se a tudo o que do mesmo assunto deriva lógica e necessariamente;
c) Interpretam-se amplamente as normas feitas para “abolir ou remediar males, dificuldades, injustiças, ônus, gravames”.
Aplicando esses critérios às normas constitucionais mencionadas sobre as entidades familiares, tem-se: a) as entidades explícitas e implícitas enquadram-se no conceito amplo de família, do caput do art. 226, por paridade de motivos; b) a referência à família tem sentido de princípio ou origem, devendo aplicar-se a todos os tipos que dela derivam lógica e necessariamente; c) o conceito de família, sem restrições, do art. 226, aboliu as discriminações e injustiças que as normas de exclusão continham nas anteriores Constituições brasileiras.
Gomes Canotilho refere o “princípio da máxima efetividade” ou “princípio da interpretação efetiva”, que pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. Ou seja, na dúvida deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia à norma constitucional. Aplicando ao tema: se dois forem os sentidos que possam ser extraídos dos preceitos do art. 226 da Constituição brasileira, deve ser preferido o que lhes atribui o alcance de inclusão de todas as entidades familiares, pois confere maior eficácia aos princípio de “especial proteção do Estado” (caput) e de realização da dignidade pessoal “de cada um dos que a integram” (§ 8º).
Konrad Hesse diz que a interpretação constitucional é concretização. Precisamente “o que não aparece de forma clara como conteúdo da Constituição é o que deve ser determinado mediante a incorporação da ‘realidade’ de cuja ordenação se trata”. Consequentemente, o intérprete encontra-se obrigado à inclusão em seu âmbito normativo dos elementos de concretização que permitam a solução do problema.
A discriminação é apenas admitida quando expressamente prevista na Constituição. Se ela não discrimina, o intérprete ou o legislador infraconstitucional não o podem fazer.
7. Da inadequação da Súmula nº 380-STF
Há forte tendência da jurisprudência dos tribunais brasileiros em buscar fundamento de decisão, que reputam justa, para solução de conflitos decorrentes de entidades familiares não explicitadas na Constituição, na Súmula nº 380 do STF, cujo conhecido enunciado estabelece:
“Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
Sabe-se que a Súmula 380 foi uma engenhosa formulação construída pela doutrina e pela jurisprudência, durante a vigência da Constituição de 1946, consolidada no início da década de sessenta, para tangenciar a vedação de tutela legal das famílias constituídas sem casamento, de modo a encontrar-se alguma proteção patrimonial a, freqüentemente, mulheres abandonadas por seus companheiros, após anos de convivência afetiva. Como não era possível encontrar fundamento no direito de família, em virtude da vedação constitucional, socorreu-se do direito obrigacional, segundo o modelo das sociedades mercantis ou civis de constituição incompleta, ou seja, das “sociedades de fato”. Essa construção é típica do que determinada escola jurídica italiana denominou “uso alternativo do direito”. Os efeitos da Súmula limitam-se exclusivamente ao plano econômico ou patrimonial.
Todavia, o que era um avanço, ante a regra de exclusão das entidades familiares, fora do casamento, converteu-se em atraso quando a Súmula continuou a ser utilizada após a Constituição de 1988. Note-se que até mesmo para uma das entidades familiares por ela explicitadas, a união estável, continuou sendo aplicada a Súmula, como se não fosse família e devesse ser considerada uma relação patrimonial, até o advento da Lei nº 8.971/94. Houve necessidade de a Lei n.º 9.278/96 dizer o óbvio, a saber, as questões relativas à união estável deveriam ser decididas nas varas de família, pois tratavam-se de relações de família.
O equívoco da aplicação da Súmula nº 380 à união estável expandiu-se às demais entidades familiares, em decisões consideradas ousadas e avançadas. Com efeito, o fundamento na orientação contida na Súmula, ainda quando ela não seja claramente indicada, contém um insuperável defeito de origem, pois considera as relações afetivas como relações exclusivamente patrimoniais, não regidas pelo direito de família. Afinal, que “sociedade de fato” mercantil ou civil é essa que se constitui e se mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?
Assim, a Súmula nº 380 perdeu sua função histórica de realização alternativa de justiça, pois o impedimento que visava a superar (exclusão das famílias fora do casamento) deixou de existir.
8. Da violação do princípio da dignidade humana, como conseqüência da exclusão
Por que buscar-se solução estranha ao direito de família, que degrada e amesquinha a dignidade humana? Lembre-se que, segundo conhecida e sempre lembrada lição de Immanuel Kant , dignidade é tudo aquilo que não tem um preço, seja pecuniário seja estimativo, a saber, o que é inestimável, indisponível, que não pode ser objeto de troca. Diz ele:
“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está cima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”.
Os conflitos decorrentes das entidades familiares explícitas ou implícitas devem ser resolvidos à luz do direito de família e não do direito das obrigações, tanto os direitos pessoais, quanto os direitos patrimoniais e quanto os direitos tutelares. Não há necessidade de degradar a natureza pessoal de família convertendo-a em fictícia sociedade de fato, como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento lucrativo, para a solução da partilha dos bens adquiridos durante a constância da união afetiva, pois o direito de família atual adota o modelo, vigorante nos tipos de casamento e união estável - que deve ser utilizado para os demais tipos - da igual divisão deles, exceto os recebidos por herança ou adoção ou os considerados particulares.
Em diversas passagens do capítulo dedicado à família, a Constituição demonstra sua atenção primordial com a dignidade das pessoas que a integram, implicitamente, como acima já destaquei, ou explicitamente (§ 7º do art. 226, art. 227, 230). Sujeitos dos deveres são o Estado, a família e a sociedade, que devem propiciar os meios de realização da dignidade pessoal, impondo-se-lhes o reconhecimento da natureza de família a todas as entidades com fins afetivos. A exclusão de qualquer delas, sob impulso de valores outros, viola o princípio da dignidade da pessoa humana.
Para a Constituição (art. 226, § 8º) a proteção à família dá-se “nas pessoas de cada um dos que a integram”, tendo estes direitos oponíveis a ela e a todos (erga omnes). Se as pessoas vivem em comunidades afetivas não explicitadas no art. 226, por livre escolha ou em virtude de circunstâncias existenciais, sua dignidade humana apenas estará garantida com o reconhecimento delas como entidades familiares, sem restrições ou discriminações.
9. Da inclusão de entidades familiares implícitas, no STJ
Na apreciação dos casos concretos, com a força dos conflitos humanos que não podem ser desmerecidos por convicções ou teses jurídicas inadequadas, o Superior Tribunal de Justiça tem sucessivamente afirmado o conceito ampliado e inclusivo de entidade familiar, notadamente no que concerne à aplicação de determinadas leis que tutelam interesses pessoais decorrentes de relações familiares. Na consideração do que se compreende como “entidade familiar” prevista na Lei nº 8.009/1990, sobre impenhorabilidade do bem de família, o Tribunal, para atender aos fins sociais da lei, chegou a incluir os celibatários (singles), até mesmo os solteiros, entre as entidades familiares . Nessas decisões tem prevalecido a tutela das pessoas, cuja moradia é imprescindível para realização da dignidade humana, sobre qualquer consideração restritiva de entidade familiar.
O Tribunal, na aplicação da lei, tem procurado conformá-la às normas constitucionais, como se observa no seguinte julgado (R. Especial 205.170-SP, DJ de 07.02.2000):
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL.LOCAÇÃO. BEMDE FAMÍLIA. MÓVEIS GUARNECEDORES DA RESIDÊNCIA. IMPENHORABILIDADE. LOCATÁRIA/EXECUTADA QUE MORA SOZINHA. ENTIDADE FAMILIAR. CARACTERIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. LEI 8.009/90, ART. 1º E CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 226, § 4º. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. O conceito de entidade familiar, deduzido dos arts. 1º da Lei 8.009/90 e 226, § 4º da CF/88, agasalha, segundo a aplicação da interpretação teleológica, a pessoa que, como na hipótese, é separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabilidade, dessarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua residência.
2. Recurso especial conhecido e provido.
Dir-se-á que a inclusão da pessoa solitária no conceito de entidade familiar é relativa, ou seja, para os fins da lei de impenhorabilidade do bem de família, no que concordo, na medida em que tenho o princípio da afetividade como fundamental para essa qualificação; afetividade somente pode ser concebida em relação com outro. A situação do que vive só é de entidade familiar equiparada, para os fins legais, o que não transforma sua natureza. O maior número de decisões do STJ volta-se à situação de solitários que são remanescentes de famílias, especialmente os viúvos, separados e divorciados. Seja como for (entidade familiar completa ou equiparada), interessa ressaltar o fundamento constitucional do julgado, ou seja, o § 4º do art. 226, que, ao tratar da comunidade monoparental, enuncia: “Entende-se, também, como entidade familiar ...”. Como acima demonstrado, o significado de também é inclusivo, e não exclusivo, sendo certa a fundamentação do Tribunal, ainda que para incluir entidade familiar equiparada.
Outro tipo de entidade familiar, apreciada pelo STJ, tutelada pelo art. 226 da Constituição, é a comunidade constituída por parentes, especialmente irmãos. Veja-se o seguinte julgado (R. Especial 159.851-SP, DJ de 22.06.98):
EXECUÇÃO. Embargos de terceiro. Lei nº 8.009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família.Irmãos solteiros.
Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles.
Sem embargo do fim proposto da impenhorabilidade, a decisão cuida de entidade familiar que se insere totalmente no conceito de família do art. 226, pois dotada dos requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade. Não há, nesse caso, “sociedade de fato” mercantil ou civil, e não se poderá considerar como tal a comunidade familiar de irmãos solteiros.
O STJ também enfrentou a controvertida situação da família decorrente de união concubinária, em caso de seguro de vida realizado em favor de concubina, por homem casado (R. Especial nº 100.888-BA, DJ de 12.03.2001). O caso está bem retratado nos seguintes trechos da ementa:
HOMEM CASADO. SITUAÇÃO PECULIAR, DE COEXISTÊNCIA DURADOURA DO DE CUJUS COM DUAS FAMÍLIAS E PROLE CONCOMITANTE ADVINDA DE AMBAS AS RELAÇÕES. INDICAÇÃO DA CONCUBINA COMO BENEFICIÁRIA DO BENEFÍCIO. (...)
II - Inobstante a regra protetora da família, consubstanciada nos arts. 1.474, 1177 e 248,IV, da lei substantiva civil, impedindo a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos, que demonstra espécie de “bigamia”, em que o extinto mantinha-se ligado à família legítima e concubinária, tendo prole concomitante com ambas, demanda solução isonômica, atendendo-se à melhor aplicação do direito.
III – Recurso conhecido e provido em parte, para determinar o fracionamento, por igual, da indenização securitária.
A decisão, por outros fundamentos, chega à conclusão que seria idêntica à que tivesse utilizado a interpretação constitucional sustentada nesta exposição, sem os equívocos que podem ser assim identificados: a) a decisão entende que se trata de entidades familiares simultâneas (refere a “duas famílias”), não podendo ter havido a fundamentação infraconstitucional referida (Código Civil), como “regra protetora da família”, o que supõe a exclusão de uma das duas; b) se são duas famílias, não pode uma ser legítima e outra “concubinária”, pois ambas estariam sob proteção constitucional, sobretudo pelo fato de haver afetividade, estabilidade (“coexistência duradoura”) e ostensibilidade (“prole”); c) as normas infraconstitucionais, que vedam o adultério - com tendência ao desaparecimento, conforme a evolução do direito - devem ser interpretadas em conformidade com as normas constitucionais, ou seja, não excluem essas uniões como entidades familiares e têm finalidade distinta, no plano civil (causa de separação judicial) e criminal (em forte desuso).
10. Da união homossexual como entidade familiar
As uniões homossexuais seriam entidades familiares constitucionalmente protegidas? Sim, quando preencherem os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade . A norma de inclusão do art. 226 da Constituição apenas poderia ser excepcionada se houvesse outra norma de exclusão explícita de tutela dessas uniões. Entre as entidades familiares explícitas há a comunidade monoparental, que dispensa a existência de par andrógino (homem e mulher).
A ausência de lei que regulamente essas uniões não é impedimento para sua existência, porque as normas do art. 226 são auto-aplicáveis, independentemente de regulamentação. Por outro lado, não vejo necessidade de equipará-las à união estável, que é entidade familiar completamente distinta, somente admissível quando constituída por homem e mulher (§ 3º do art. 226). Os argumentos que têm sido utilizados no sentido da equiparação são dispensáveis, uma vez que as uniões homossexuais são constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natureza própria.
O argumento da impossibilidade de filiação não se sustenta, pelas seguintes razões: a) a família sem filhos é família tutelada constitucionalmente; b) a procriação não é finalidade indeclinável da família constitucionalizada; c) a adoção permitida a qualquer pessoa, independentemente do estado civil (art. 42 do ECA), não impede que a criança se integre à família, ainda que o parentesco civil seja apenas com um dos parceiros.
Os tribunais brasileiros demonstram maior receptividade para atribuição de efeitos às uniões homossexuais, ainda que sob a indevida qualificação de “sociedade de fato”. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou caso decorrente da relação homossexual de dois homens, que viveram juntos durante trinta anos. Um deles, que adotou uma menina, deixou patrimônio que foi disputado entre a filha e o outro companheiro. O Tribunal reconheceu, com razão, a existência da entidade familiar, e segundo o modelo do direito de família, decidindo pela meação entre a filha e o companheiro sobrevivente. A justiça federal do Rio Grande do Sul tem decidido no sentido de determinar ao INSS a concessão aos parceiros homossexuais dos mesmos benefícios previdenciários devidos aos cônjuges e companheiros de união estável .
Além da invocação das normas da Constituição que tutelam especificamente as relações familiares, preferidas nesta exposição, a doutrina tem encontrado fundamento para as uniões homossexuais no âmbito dos direitos fundamentais, sediados no art. 5º, notadamente os que garantem a liberdade, a igualdade sem distinção de qualquer natureza, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Tais normas assegurariam “a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo inerente à pessoa humana” .
Conclusão
Os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituição brasileira não encerram numerus clausus. As entidades familiares, assim entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, estão constitucionalmente protegidas, como tipos próprios, tutelando-se os efeitos jurídicos pelo direito de família e jamais pelo direito das obrigações, cuja incidência degrada sua dignidade e das pessoas que as integram. A Constituição de 1988 suprimiu a cláusula de exclusão, que apenas admitia a família constituída pelo casamento, mantida nas Constituições anteriores, adotando um conceito aberto, abrangente e de inclusão.
Violam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana as interpretações que (a) excluem as demais entidades familiares da tutela constitucional ou (b) asseguram tutela dos efeitos jurídicos no âmbito do direito das obrigações, como se os integrantes dessas entidades fossem sócios de sociedade de fato mercantil ou civil.
Cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em virtude requisitos de constituição e efeitos específicos, não estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quando a legislação infraconstitucional não cuida de determinada entidade familiar, ela é regida pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras e princípios gerais do direito de família aplicáveis e pela contemplação de suas especificidades. Não pode haver, portanto, regras únicas, segundo modelos únicos ou preferenciais. O que as unifica é a função de locus de afetividade e da tutela da realização da personalidade das pessoas que as integram; em outras palavras, o lugar dos afetos, da formação social onde se pode nascer, ser, amadurecer e desenvolver os valores da pessoa.
Não se pode enxergar na Constituição o que ela expressamente repeliu, isto é, a proteção de tipo ou tipos exclusivos de família ou da família como valor em si, com desconsideração das pessoas que a integram. Não há, pois, na Constituição, modelo preferencial de entidade familiar, do mesmo modo que não há família de fato, pois contempla o direito à diferença. Quando ela trata de família está a referir-se a qualquer das entidades possíveis. Se há família, há tutela constitucional, com idêntica atribuição de dignidade.
(*) Doutor em Direito Civil (USP), professor da UFAL e da UFPE (Pós-graduação)
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM