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O litígio conjugal é uma tentativa de não perder nada
A tendência do ser humano é sempre colocar no outro a culpa de suas mazelas, de seus erros. É muito mais cômodo e fácil atribuir ao outro a culpa pelo fim de uma relação, pois assim não nos responsabilizamos pelos nossos atos.
O Direito por muito tempo endossou essa desresponsabilização do sujeito, permitindo que se discutisse quem era o culpado pelo fim do casamento. Foi somente com a Emenda Constitucional 66/2010, proposta pelo IBDFam via deputado Sérgio Barradas (BA), simplificando o divórcio no Brasil, que se pôde substituir o discurso da culpa, tão paralisante do sujeito, pelo da responsabilidade. E a compreensão desse importante e significativo avanço dos últimos tempos começa e termina por entender um pouco de nosso funcionamento psíquico. Ou seja, que o sujeito de direitos é um sujeito desejante.
A gênese de qualquer enamoramento, segundo Freud, é essencialmente narcísica. É que o amor consiste em supor o ideal de si mesmo no outro. Assim, criamos uma imagem ideal naquele a quem elegemos como objeto amoroso, que vem justamente completar o que falta em nós para chegarmos ao ideal sonhado. Por isso se diz, popularmente, que o que se ama no outro é a própria carência. No amor, prometo dar ao outro o que não tenho e, neste ato, me faço objeto de seu desejo.
O caminho natural do enamoramento é transformar-se em namoro, paixão e, quase sempre, em acasalamento. A conjugalidade costuma muitas vezes transformar esse ideal sonhado em pesadelo. No casamento, quando se depara com o cotidiano, e o véu da paixão já não encobre mais os defeitos do outro, é que se constata uma realidade completamente diferente daquela idealizada. Pensa-se que houve engano na escolha do cônjuge ou companheiro: “Fui engando”, “fui traído”, “meu casamento foi uma farsa” etc. Frases e lamentações dessa natureza são constantemente ouvidas pelos advogados que trabalham com Direito de Família. Instala-se então o litígio conjugal. As partes, não tendo capacidade para resolver seus próprios conflitos, transferem essa responsabilidade para um juiz. E o amor, quem diria, foi parar na Justiça!
O Judiciário é o lugar onde as partes depositam seus restos. O resto do amor e de uma conjugalidade que deixou a sensação de que alguém foi enganado, traído. Como a paixão arrefeceu e o amor obscureceu, o “meu bem” transforma-se em “meus bens”. É impressionante como as versões de um mesmo casamento apresentam-se completamente diferentes, segundo o ângulo de cada parte. Quem terá razão neste fim de casamento? Existe uma verdade para o litígio conjugal, ou são apenas versões que fazem aversões?
O ordenamento jurídico brasileiro por muito tempo insistiu em dizer que existe um culpado. Em geral essa culpa é atribuída àquele que teve uma relação extraconjugal. Muitas vezes esse culpado da separação foi, de alguma forma, “empurrado” a fazer isso, pela falta de afeto e carinho, e se o fez é porque a relação já havia acabado. É a velha história: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Em outras palavras, quem traiu primeiro: aquele que não deu carinho e afeto, propiciando um espaço e esvaziando a relação, ou quem foi buscar fora do casamento outra relação? Aquilo que o Direito considerava como causa de uma separação pode não ser a causa, mas a consequência.
Quando a conjugalidade chegou mesmo ao final, quando o amor e o desejo acabaram e não há mais interesses comuns para dar continuidade à relação, a separação, embora dolorosa, faz-se sem ódio e sem brigas. Mesmo assim, há sempre uma sensação de perda. E novamente o ser humano depara-se com seu inexorável vazio. Mas contra isso não há remédio. Somos mesmo seres de “falta”, e portanto algo em nós sempre faltará.
O litígio conjugal, além de ser um sintoma de que algo ainda está para ser resolvido entre o casal, é uma tentativa de não perder nada. Todos os clientes nos dizem: “Só quero os meus direitos!”. Mas estão sempre com a sensação de que estão perdendo algo e transferem e localizam essa perda para o valor da pensão alimentícia, na discussão de guarda de filho, no patrimônio etc. Instala-se então o litígio para que um saia vitorioso, como se houvesse um perdedor e um ganhador. Ambos querem ganhar o máximo possível, como se pudessem tamponar a inevitável perda da separação. Não é possível ter tudo. Perde-se aqui, ganha-se ali. Mas em brigas de casais não existe um vitorioso. A separação, quando inevitável, como ato de responsabilidade, e às vezes um compromisso com a saúde, deve funcionar como um remédio e também como um processo de libertação. Afinal, “se o anel que tu me deste era vidro e se quebrou...”.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
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