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Anotações ao provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça. Primeira parte
ANOTAÇÕES AO PROVIMENTO 63 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. PRIMEIRA PARTE[1]
Flávio Tartuce[2]
Um dos temas de Direito de Família que mais se transformou nos últimos anos em nosso País foi o parentesco, notadamente diante do impacto gerado pelo reconhecimento de duas novas modalidades de parentesco civil. A primeira delas é relacionada à técnica de reprodução assistida heteróloga, com material genético de terceiro. A segunda modalidade é a parentalidade socioafetiva, fundada na posse de estado de filhos. Os dois institutos situam-se na expressão "outra origem", mencionada pelo art. 1.593 do Código Civil, como geradoras de vínculo parental que não seja a consanguinidade.
Sobre esse reconhecimento, no âmbito doutrinário, merecem destaque os enunciados aprovados nas Jornadas de Direito Civil, eventos que têm o papel fundamental de evidenciar as grandes teses do Direito Privado Brasileiro e estabelecer saudáveis diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. Nos próximos dias 26 e 27 de abril de 2018, vale destacar, ocorrerá a oitava edição do evento, agora com a participação efetiva de Ministros do Superior Tribunal de Justiça em todas as comissões.
O Enunciado n. 103 da I Jornada de Direito Civil, realizada em 2002, estabelece que “o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho”. Da mesma Jornada, há o complementar Enunciado n. 108 CJF, segundo o qual “no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva”. Em continuidade, sem prejuízo de outros enunciados de eventos posteriores, na III Jornada de Direito Civil, do ano de 2004, aprovou-se o Enunciado n. 256, a fim de deixar bem claro o enquadramento da parentalidade socioafetiva como forma de parentesco civil, o que não pode ser negado: “a posse de estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.
Além do reconhecimento doutrinário – que tem origem nos trabalhos de João Baptista Villela e Luiz Edson Fachin –, essas novas modalidades de parentesco ganharam grande prestígio no âmbito jurisprudencial. Como ápice dessa importância, destaque-se decisão do Supremo Tribunal Federal do ano de 2016, em que se abordou repercussão geral sobre o tema da parentalidade socioafetiva. Conforme a tese firmada, “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo n. 840).
Não se pode negar que uma das grandes contribuições do aresto foi consolidar a posição jurídica de que a socioafetividade é forma de parentesco civil. Nesse sentido, destaque-se o seguinte trecho do voto do Ministro Relator Luiz Fux:
A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais; (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio) (Recurso Extraordinário 898.060/SC).
O julgado aponta que a parentalidade socioafetiva é fundada na posse de estado de filho, tendo como parâmetros os critérios desenvolvidos desde o Direito Romano: nome, tratamento e reputação, a tríade nominatio, tractatio e reputatio. Além do reconhecimento da parentalidade socioafetiva como forma de parentesco, outros três aspectos do decisum merecem destaque.
O primeiro deles é o reconhecimento expresso, o que foi feito por vários Ministros, de ser a afetividade um valor jurídico e um princípio inerente à ordem civil-constitucional brasileira. O segundo aspecto diz respeito ao fato de estar a parentalidade socioafetiva – cujo fundamento legal é o art. 1.593 do CC/2002, frise-se –, em situação de igualdade com a paternidade biológica. Em outras palavras, não há hierarquia entre uma ou outra modalidade de filiação, o que representa um razoável e desejável equilíbrio. O terceiro é último aspecto do acórdão superior é a vitória da multiparentalidade ou pluriparentalidade, que passou a ser admitida pelo Direito Brasileiro, mesmo que contra a vontade do pai biológico. Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios. Como tenho sustentado, emergem grandes desafios dessa afirmação, mas é tarefa da doutrina, da jurisprudência e dos aplicadores do Direito resolver os problemas que surgem, de acordo com os casos concretos colocados a julgamento pelo Poder Judiciário.
Pois bem, com a emergência dessa nova posição superior e em mais uma sadia tentativa de extrajudicialização, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, em 20 de novembro de 2017, o Provimento n. 63, visando à atuação dos Cartórios em tais searas. Nos "considerandos" da norma administrativa já há menção à decisão do STF aqui aludida. Os objetivos desse preceito são: a) instituir modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito a serem adotados pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais; b) dispor sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A”, no cartório do registro civil e c) tratar do registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Neste primeiro texto de uma série, vamos tratar do último assunto, qual seja a reprodução assistida, sendo certo que o Provimento n. 63 revoga e substitui o Provimento n. 52 do mesmo CNJ, de março de 2016.
Passando a essa análise, o art. 16 do Provimento n. 63 estabelece que o assento de nascimento de filho havido por técnicas de reprodução assistida será inscrito no Livro "A", independentemente de prévia autorização judicial e observada a legislação em vigor no que for pertinente, mediante o comparecimento de ambos os pais, munidos da documentação exigida pela própria norma. Nos termos do mesmo comando, se os pais forem casados ou conviverem em união estável, poderá somente um deles comparecer ao ato de registro. No caso de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referência a distinção quanto à ascendência paterna ou materna. Aqui, não houve qualquer alteração em face da norma administrativa anterior.
O art. 17 do novo provimento elenca a documentação básica exigida para os fins de registro e de emissão da certidão de nascimento. Assim, são indispensáveis para o ato: a) declaração de nascido vivo (DNV); b) declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários; c) certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal.
Neste comando houve um grande avanço, uma vez que o art. 2º, inc. II, do Provimento n. 52 quebrava o sigilo do doador do material genético, o que poderia gerar sérios problemas de comprometimento da técnica heteróloga, em especial diante da tese oriunda da recente decisão do STF. Esse problema já era apontado em obras de minha autoria, em especial no Volume 5 da coleção de Direito Civil e no Manual de Direito Civil. Volume Único; bem como de outros autores. Conjugando-se a quebra do sigilo constante da norma administrativa anterior com a tese final do julgamento do STF, seria possível supor que o filho poderia pedir o vínculo de filiação com o doador do material genético, o que inviabilizaria o uso da técnica, por receio dos doadores. Por bem, a Corregedoria-Geral de Justiça afastou a regra anterior.
Seguindo, o mesmo art. 17 do Provimento n. 63 preceitua que, na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora tempora?ria do u?tero (gestatrix), esclarecendo a questa?o da filiac?a?o (§ 1º). Esse esclarecimento diz respeito ao fato de que o vínculo de filiação deve ser estabelecido em relação à mulher que planejou a técnica de reprodução assistida (R.A.), muitas vezes a fornecedora do material genético (genetrix).
Novamente, aqui não há mais menção – como estava no § 1º do art. 2º do Provimento n. 52 – de identificação do doador dos gametas ou mesmo da exigência de aprovação prévia, por instrumento público, do cônjuge ou convivente do doador ou doadora, autorizando previamente a realização do procedimento de reprodução assistida. Não só essa identificação como também a autorização, repise-se, poderia comprometer a própria existência da reprodução assistida heteróloga, uma vez que, com a decisão do STF aplicada à espécie, seria possível supor, mesmo que por engano, que o filho poderia pretender a filiação com o doador do material genético, com quem tem vínculo biológico.
Sem qualquer modificação, o § 2º do art. 17 do Provimento n. 63 do CNJ estatui que, nas hipóteses de reprodução assistida post mortem, além dos documentos antes mencionados, conforme o caso, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular e com firma reconhecida. A norma visa atender a necessidade de autorização prévia do cônjuge ou companheiro para que incidam as presunções de vínculo de filiação previstas nos incisos III, IV e V do art. 1.597 do Código Civil. Ademais, houve uma reafirmação administrativa a respeito da reprodução assistida post mortem, como também reconhece o Conselho Federal de Medicina por meio de suas normas éticas.
Continua previsto, na nova norma administrativa, que o conhecimento da ascendência biológica não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador ou a doadora e o filho gerado por meio da reprodução assistida (art. 17, § 3º, do Provimento n. 63 do CNJ). Afasta-se, assim e expressamente, a aplicação da tese do julgamento do STF em repercussão geral para as técnicas de R.A. Essa previsão já constava na norma administrativa anterior (art. 2º, § 4º, do Provimento n. 52 do CNJ). Porém, as menções às quebras de sigilo do doador do material genético poderiam ensejar interpretações em sentido contrário ao seu conteúdo.
Continua sendo vedada aos oficiais registradores a recusa ao registro de nascimento e à emissão da respectiva certidão de filhos havidos por técnica de reprodução assistida. Essa eventual recusa deverá ser comunicada ao juiz corregedor competente nos termos da legislação local, para as providências disciplinares cabíveis. Todos os documentos antes mencionados deverão permanecer arquivados no ofício em que foi lavrado o registro civil. Tudo isso está previsto no art. 18 do Provimento n. 63, equivalendo ao art. 3º do Provimento n. 52, sem qualquer alteração.
Por fim, como deveria ocorrer e para que não pairem dúvidas, foi introduzida menção expressa à gratuidade dos atos de registro, conforme o art. 19 do Provimento n. 63 do CNJ.
Como se pode perceber, quanto à reprodução assistida, louvável foi o trabalho efetuado pela Corregedoria-Geral de Justiça, atualizando a normatização administrativa perante a recente decisão do STF sobre o tema da filiação socioafetiva, o que repercute para a reprodução assistida. No próximo texto, veremos quais foram as normas introduzidas diretamente a respeito da parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade, o que não constava do anterior Provimento n. 52 do próprio CNJ, ora atualizado.
[1] Coluna do Migalhas de abril de 2018.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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