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A sucessão na comunhão parcial de bens estimula o homicídio entre cônjuges
Não dá pra negar que o título causa certo desconforto e até mesmo impacto, principalmente aos casados sob o regime da comunhão parcial de bens, mas após tanto estudar sobre a sucessão neste regime de bens, entendo ser imprescindível esclarecer e trazer ao conhecimento de todos alguns aspectos sobre o tema, principalmente sobre a interferência da lei na autonomia da vontade manifestada pelo casal ao optar por este regime de bem no que se refere à sucessão, pois pode, inclusive, levar o cônjuge, especialmente os mais ambiciosos, a ceifar e vida do outro, o que seria mais “vantajoso”, ao invés de optar pelo divórcio.
Pois bem, o casamento produz efeitos pessoais e patrimoniais, sendo o aspecto patrimonial determinado pelo regime de bens adotado pelo casal, que livremente escolhe o que julguem mais adequado, com exceção das situações em que a lei determina que um determinado regime seja adotado, como por exemplo, o regime da separação de bens aos maiores de sessenta anos e demais situações previstas no artigo 1.641 do Código Civil.
Na vigência do Código Civil antigo, o regime de bens uma vez escolhido não era passível de modificação e, no silêncio das partes, o regime adotado era o da comunhão universal de bens, passando o regime da comunhão parcial ser o regime legal, com o advento da Lei do Divórcio (1977). Já no atual Código, conforme dispõe o artigo 1.639, o regime é escolhido livremente pelos nubentes, podendo, entretanto, posteriormente ser modificado mediante autorização judicial, conforme dispõe o § 2º do artigo supracitado. Não havendo disposição pelos nubentes ou sendo ela nula o regime que vigorará será o da comunhão parcial de bens.
Conforme determina o artigo 1.658 do Código Civil, no regime da comunhão parcial de bens comunicam-se os bens adquiridos pelo casal na constância do casamento, excluindo-se da comunhão os bens que os cônjuges possuem ao casar, e os que venham a adquirir por causa anterior ou alheia ao casamento, tais como doações a um só dos cônjuges ou por sucessão.
Assim, quando o casal elege o regime da comunhão parcial de bens possui plena ciência e manifesta expressamente a vontade de que os bens adquiridos antes do casamento, e mesmo a posteriori, por meio de doação, herança, etc., não se comuniquem com os bens do outro cônjuge, tanto em caso de divórcio como de morte, correto? Não! A resposta é negativa! A vontade dos cônjuges ao escolherem o regime da comunhão parcial de bens ao se casarem, quando um deles falece, não é mais respeitada pela lei.
O Código Civil de 2002, que revogou o Código Civil de 1916, inovou com a ordem da vocação hereditária elevando o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro necessário da pessoa falecida, assim como já eram os ascendentes e descendentes no código revogado. Significa que em algumas condições o cônjuge passou a concorrer diretamente com os descendentes, conforme dispõe o artigo 1.829, inciso I, do Código Civil de 2002.
A questão central está subordinada ao regime de bens do casamento. Pois segundo o artigo 1.829, inciso I, dependendo do regime adotado haverá ou não a concorrência entre cônjuge e descendentes, sendo este dispositivo certamente o grande “vilão”, ao prever que o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão parcial de bens, concorre com os descendentes na sucessão do falecido quanto aos bens particulares que este houver deixado.
Não há como deixar de considerar, repito, o direito de livre manifestação, o exercício da autonomia da vontade manifestado pelo casal que opta por determinado regime de bens, de forma que entendo que não poderia o legislador e nem mesmo o intérprete da lei pretender a alteração da vontade manifestada em vida, após a morte de um dos cônjuges.
Ao adotar o regime da comunhão parcial de bens os cônjuges fazem para si a reserva dos bens particulares, ou seja, os bens havidos anteriores ao casamento não se comunicarão com os adquiridos na constância deste e, consequentemente, não integrarão o acervo hereditário do cônjuge sobrevivo. Assim, aquilo que determinaram, escolheram e contrataram antes do casamento deveria prevalecer tanto em caso de divórcio como em razão da morte, pois emana da livre vontade dos nubentes.
Considerando o término do casamento pelo divórcio e tendo o casal adotado o regime da comunhão parcial de bens, os bens exclusivos (adquiridos antes do casamento) de cada cônjuge não são partilhados, não deveriam estes de igual forma ser partilhados por ocasião da morte de um deles, pois a vontade manifestada na escolha do regime de bens deveria prevalecer, mas não é o que acontece.
Exemplificando: Um casal elege o regime da comunhão parcial de bens quando se casam. Um dos cônjuges possui filhos de união anterior e um vasto patrimônio adquirido antes deste ultimo casamento, ainda que seja em virtude de herança ou doação. Se este cônjuge vier a falecer, o cônjuge sobrevivente, além de ter direito a metade dos bens adquiridos na constância do casamento, concorre com os filhos do morto aos bens particulares adquiridos antes do casamento, contrariando a vontade destes que optaram pelo regime da comunhão parcial.
Não se pode deixar de reconhecer que a norma preconizada pelo legislador, além de ser contrária à vontade das partes, simplesmente gera enriquecimento sem causa. Alguém vai ganhar bens sem que tenha colaborado na sua formação e sem que tenha havido manifestação de vontade nesse sentido, quer por meio de pacto antenupcial, quer por testamento.
Dessa forma, a preservação do patrimônio exclusivo do autor da herança, com destinação preferencialmente a seus descendentes diretos, a meu ver, melhor atenderia a finalidade do direito sucessório.
É cediço que a inclusão do cônjuge no rol dos herdeiros necessários era uma aspiração antiga da doutrina nacional, no sentido de estender a proteção da legítima também em favor do cônjuge sobrevivente, impedindo, por exemplo, que um testamento que dispusesse sobre a totalidade do acervo viesse a prejudicá-lo. Entretanto, o enquadramento do cônjuge no rol dos herdeiros necessários deveria ser rediscutido, pois em uma época em que o vínculo conjugal é cada vez mais facilmente dissolúvel, é contraditório que se fortaleça, sobremaneira, o papel do cônjuge no palco da sucessão. É como se o legislador só tivesse se preocupado em proteger o casamento depois dele estar dissolvido pela morte, o que não é nada razoável.
Neste prima, não podendo deixar de considerar que vivemos numa sociedade cada vez mais capitalista, onde os interesses particulares, principalmente quando envolvem “dinheiro” se sobrepõem aos valores primordiais da constituição familiar - inclusive onde a vida do ser humano frente a violência desenfreada e instalada em nosso país, cada vez tem menos valor -, não é demais e nem exacerbado pensar na seguinte situação: Um casal que elegeu a comunhão parcial como regime de bens, possuindo um dos cônjuges um vasto patrimônio anterior ao casamento, optando este pelo divórcio, o que seria mais “vantajoso” ao outro cônjuge, o divórcio ou a morte do cônjuge que possui o vasto patrimônio? Infelizmente a morte, pois assim o cônjuge sobrevivente teria direito, além da metade dos bens adquiridos na constância do casamento, a todos os bens particulares do morto, concorrendo inclusive com os descendentes deste.
Então, agora de forma bastante direta, questiona-se: Casados no regime da comunhão parcial de bens, o cônjuge que pretende “se ver livre” do outro, que por sua vez possui significativo patrimônio, especialmente consistente em bens particulares, o que seria mais “vantajoso financeiramente”, divorciar-se ou “matar” o seu cônjuge?
É obvio que o delito de homicídio do qual me refiro, sendo identificada a autoria do cônjuge sobrevivente, perderia este o direito de herdar, contudo, pelas estatísticas oficiais, em nosso país, é baixíssimo o índice de delitos de homicídio nessas circunstancias (assim como nas demais) que têm a autoria identificada, por motivos diversos. Assim, o cônjuge pode, além de praticar (direta ou indiretamente) o delito de homicídio contra o seu consorte, herdar, em concorrência com os herdeiros deste, todo o patrimônio particular do morto, o que não ocorre em caso de divorcio.
Este aspecto certamente não foi analisado pelo legislador ao alterar o Código Civil e incluir o cônjuge no rol de herdeiro necessário, razão pela qual entendo que a questão deva ser rediscutida, sob pena de pessoas terem suas vidas ceifadas por seu próprio cônjuge ou a seu mando, pelo simples fato do regime escolhido pelos nubentes quando do casamento, ter sua regra alterada em caso de sucessão.
Marcela B. Soukef Viégas, OAB/MT 9502, é advogada na área de direito de família, com especialização em direito penal.
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