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Trans-viver
Maria Berenice Dias
Vice Presidente Nacional do IBDFAM
Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB
Não há outro nome para definir a transformação que o STF acaba de provocar em significativa parcela de pessoas que só quer ter o direito de ser. Quando o espelho não reflete o seu eu, não é preciso mais se transformar para viver. Ninguém mais precisa certificar mudanças para viver à luz do dia, ser chamado do jeito como se identifica.
Transexuais e travestis levam muito, muito tempo para se descobrir, para se aceitar. Mais tempo ainda para conseguir dizer quem se é: diferentes mas iguais.
E o grande medo sempre foi de serem expulsos da família, da escola, da rua, da vida.
A busca pela própria identidade, até agora, sempre foi um calvário cheio de obstáculos.
Conforme resolução do Conselho Federal da Medicina, somente a partir dos 21 anos é possível ingressar em um programa para começar tratamento com hormônios. Mais dois anos para ser autorizado a se submeter às cirurgias de redesignação sexual. Daí, a fila, por anos, para que o SUS autorize sua realização.
E enquanto isso? Avanços importantes foram alcançados, mas não com a dimensão merecida: o uso do nome social, a alteração do nome, mediante ação judicial. Mas para a identificação do sexo no assento registral havia a necessidade da realização de mutação genital – nem sempre desejada, por muitos são os riscos e de resultados nem sempre satisfatórios. Além disso era necessária a prova de uma realidade que nem é preciso provar. Uma verdade sentida, ou melhor, sofrida.
Mais uma vez vem o Poder Judiciário deste país suprir injustificável omissão legislativa. Foram apreciados em conjunto: uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.275) proposta pela Procuradoria Geral da Justiça, para que a alteração do nome e sexo ocorra em sede administrativa, perante o registro civil, independente de procedimento cirúrgico e sem a necessidade da apresentação de laudos ou realização de avaliações ou perícias; e um Recurso Extraordinário (RE 670.422), contra a decisão da justiça gaúcha que, em face da ausência da alteração cirúrgica dos órgãos sexuais, determinou que na certidão de nascimento constasse “transexual.”
Reconhecida repercussão geral, a tese restou com abrangência maior, ao usar a expressão trasngênero, internacionalmente utilizada para albergar todas as identidades trans.
O julgamento acabou por retirar do segmento mais vulnerável da população LGBTI o estigma do medo, dando-lhe direito à dignidade, respeitando suas diferenças.
Como disse a Min. Cármen Lúcia, em seu voto: a diferença na aparência não pode servir de motivo para impedir a igualização de todos os direitos, principalmente ao direito fundamental à felicidade.
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