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Propostas para a desburocratização do direito de família e das sucessões brasileiro
PROPOSTAS PARA A DESBUROCRATIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES BRASILEIRO[1]
Flávio Tartuce[2]
Em série de textos anteriores, publicados neste mesmo canal, tive a oportunidade de escrever sobre a Extrajudicialização do Direito de Família e das Sucessões no Brasil, tendo como pano de fundo os enunciados doutrinários aprovados na I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em agosto de 2016, sob a coordenação-geral do Ministro Luis Felipe Salomão. Neste texto pretendo ampliar o tema, pois a redução de burocracias ou desburocratização do Direito Privado mantém íntima relação com essa tendência de se buscar soluções e resolução de disputas fora da jurisdição.
No âmbito do Direito de Família e das Sucessões tem-se ampliado muito essa tendência, podendo ser citadas duas decisões de regulamentação administrativa importantes para casos pontuais, emergentes nos últimos meses no âmbito do Poder Judiciário.
A primeira delas é o Provimento n. 63 do Conselho Nacional de Justiça, de 14 de novembro de 2017, que, entre outros temas, trata do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva diretamente no Cartório de Registro Civil. Entre os seus considerandos, a norma administrativa, orientadora da atuação dos Cartórios de Registro Civil, confirma a possibilidade de o parentesco resultar de “outra origem” que não a consanguinidade, nos termos do que consta do art. 1.593 do Código Civil, incluindo-se na previsão a posse de estado de filhos geradora do vínculo socioafetivo. Reconhece-se, ainda, o fato de que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal em 2016 quando do julgamento da repercussão geral sobre o tema (decisão publicada no Informativo n. 840 da Corte).
Mais à frente, tratando especificadamente dessa forma de parentesco civil, prevê o art. 10 do Provimento n. 63/2017 do CNJ que o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade será autorizado perante os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais, sendo ato irrevogável, somente afastado por declaração judicial que reconheça a presença de vício da vontade (v. g. erro e dolo), fraude ou simulação. A mesma norma enuncia que poderão requerer o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva os maiores de dezoito anos de idade, independentemente do seu estado civil. Seguiu-se, assim, o exemplo de outros Estados, caso do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que já admitia esse registro por norma da sua Corregedoria Geral de Justiça (Provimento n. 9/2013).
Em complemento, após debates, chegou-se a certo consenso de que o art. 14 do Provimento n. 63 do CNJ autoriza o reconhecimento extrajudicial da multiparentalidade, limitado ao número de dois pais e de duas mães, no máximo. Conjugando-se essa previsão com a decisão do Supremo Tribunal Federal antes citada, tal reconhecimento é para todos os fins civis, inclusive alimentares e sucessórios. A propósito da discussão inicial que surgiu sobre essa previsão, em dezembro de 2017 a Associação Nacional dos Registradores Civis (Arpen) divulgou nota de esclarecimento segundo a qual para “as pessoas que já possuam pai e mãe registral, para terem o reconhecimento de um pai e uma mãe socioafetivo, formando a multiparentalidade, deverá o registrador civil realizar dois atos, um para o pai socioafetivo e outro para a mãe socioafetiva. Neste sentido, a Arpen-Brasil orienta os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais a realizarem os reconhecimentos de paternidade e ou maternidade socioafetiva, mesmo que já existam pai e mãe registral, respeitando sempre o limite instituído no provimento de no máximo constar dois pais e também duas mães no termo”. Tal entendimento tem aplicação, por exemplo, a padrastos e madrastas que tenham estabelecido a posse de estado de filhos com seus enteados ou enteadas, podendo ser incluídos no registro civil ao lado dos pais biológicos e sem a exclusão destes, para todos os fins civis.
Além dessa normatização, outro marco decisório que merece destaque, na busca de redução de burocracias no âmbito do Direito de Família, é a decisão proferida pela Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo em 1º de dezembro de 2017, passando a admitir que o pacto antenupcial de pessoa maior de setenta anos de idade afaste a aplicação da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal, tornando o regime em questão uma verdadeira separação absoluta, em que nada se comunica.
Isso porque, com tal previsão decorrente da autonomia privada, não haverá a comunicação dos bens adquiridos durante o casamento, conforme consta da sumular. Conforme consta do decisum, como citação que muito me honra, “por se tratar de norma de exceção, a vedação imposta pelo art. 1.641 comporta, ademais, interpretação restritiva. O cerceamento do poder de pactuar deve ser o mínimo necessário para que o objetivo da norma seja alcançado. Não se há de impedir, portanto, a contratação de regime que amplie o cunho protetivo almejado pela norma”.
Como já havia defendido, o afastamento da Súmula n. 377 do STF representa importante ferramenta de planejamento familiar e sucessório, reduzindo-se igualmente burocracias que possam surgir de intermináveis disputas judiciais no futuro. Pontue-se que também quanto a esse assunto e nessa linha de não aplicação da posição consolidada pela jurisprudência superior, por afastamento prévio dos cônjuges, já havia norma da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco (Provimento n. 8/2016), pioneiro nas questões relativas à extrajudicialização.
Pois bem, além dessas importantes conclusões administrativas, gostaria de destacar o recente projeto de lei de desburocratização, originário de comissão mista formada no Congresso Nacional, por deputados e senadores, que teve a presidência do Deputado Júlio Lopes e a relatoria do Senador Antonio Anastasia. Além da comissão representativa de várias entidades – como o Sebrae, a Anoreg, o Colégio Notarial do Brasil e a própria Arpen – que auxiliou na elaboração das proposições, fiz algumas sugestões que foram acatadas pela assessoria jurídica do Senado Federal, em interlocuções com o seu assessor Carlos Eduardo Elias de Oliveira. Trata-se de um projeto de lei amplo e audacioso, alterando dispositivos não só do Código Civil, como também do Código de Processo Civil e da Lei de Registros Públicos, com repercussões também para o Direito Empresarial, na constituição de empresas.
Entre as sugestões que fiz para o Direito Civil, com vistas à redução de burocracias, destaco a possibilidade de a notificação extrajudicial do devedor pelo credor interromper a prescrição, ampliando-se o art. 202, inc. V, do Código Civil; bem como a introdução de previsão segundo a qual cláusula resolutiva tácita depende de interpelação judicial ou extrajudicial. Atualmente, o art. 474 da codificação privada, em sua segunda parte, menciona apenas a via judicial para que tal previsão atinja os seus fins de extinguir os contratos: “a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial”.
No âmbito do Direito de Família e das Sucessões, gostaria de destacar três propostas de desburocratização. A primeira delas visa a possibilitar a alteração do regime de bens do casamento por escritura pública, diretamente no Tabelionato de Notas, com registro posterior no âmbito competente. Afasta-se, assim, a necessidade de uma ação judicial para tanto, como se retira dos vigentes arts. 1.639, § 2º, do Código Civil e 734 do Código de Processo Civil. Ora, se o casamento é celebrado em um Cartório, se o regime de bens é escolhido em um Cartório e se cabe o divórcio no Cartório, desde a Lei n. 11.441/2007, por que a alteração do regime de bens deve ser judicial? A dúvida demonstra que a previsão atual, de judicialização dessa medida, não tem sentido técnico-jurídico.
Assim, pela proposta, o § 2º do art. 1.639 do Código Civil passaria a ter a seguinte redação: “é admissível alteração do regime de bens mediante escritura pública firmada por ambos os cônjuges a ser averbada no Registro Civil das Pessoas Naturais, no Registro de Imóveis e, se for o caso, no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins”. Em complemento, como há tempos tenho sustentado, assim como outros doutrinadores, introduz-se um § 3º no mesmo preceito, prevendo que a alteração do regime de bens não terá eficácia retroativa e será ineficaz em relação a terceiros de boa-fé. Essa, aliás, é a posição atual do Superior Tribunal de Justiça, cabendo transcrever, por todos: “controvérsia em torno do termo inicial dos efeitos da alteração do regime de bens do casamento (ex nunc ou ex tunc) e do valor dos alimentos. Reconhecimento da eficácia ex nunc da alteração do regime de bens, tendo por termo inicial a data do trânsito em julgado da decisão judicial que o modificou. Interpretação do art. 1639, § 2º, do CC/2002” (STJ, REsp 1.300.036/MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 13.5.2014, DJe 20.5.2014).
Com essa previsão, afasta-se a necessidade de maiores formalidades para a modificação do regime de bens, comprovadas hoje judicialmente, como a demonstração de ausência de demandas em face dos cônjuges. A proteção expressa aos terceiros de boa-fé resolve essa questão, dispensando toda essa construção probatória, que torna o processo de alteração do regim de bens extremamente burocrático e moroso. Além disso, retira-se a menção a um justo motivo para a modificação do regime de bens, o que é tido há tempos como superado, revogando-se expressamente o tratamento constante do art. 734 do Código de Processo Civil de 2015, que nasceu desatualizado.
A respeito da união estável, em tom similar, há proposta de introdução de um parágrafo único no art. 1.725 do Código Civil, preceituando que a alteração do regime de bens poderá ser feita por meio de contrato escrito, produzindo-se efeitos a partir da data de sua averbação e, igualmente, sendo ineficaz a modificação a terceiros de boa-fé.
Ainda no que concerne à união estável, outra modificação que propus é pela desnecessidade de uma ação judicial para a sua conversão em casamento, como está hoje previsto no art. 1.726 do Código Civil (“a união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil”). Como é notório, o art. 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988 ordena que a lei facilite a conversão da união estável em casamento, o que foi desobedecido pela codificação material de 2002, ao exigir a ação judicial. Por isso, muitas normas de Corregedorias dos Tribunais de Justiça dispensam essa demanda, possibilitando a conversão da união estável em casamento diretamente no Cartório de Registro Civil. Pode-se até dizer que tais normas administrativas são ilegais, por contrariarem a dicção atual do art. 1.726 do Código Civil. Entretanto, estão elas de acordo com a Constituição Federal, ou seja, são “constitucionais”.
Para resolver esse problema, de verdadeira crise das fontes legislativas, o art. 1.726 do Código Civil passaria a prever que “a união estável poderá converter-se em casamento mediante pedido dos companheiros ao Registro Civil, submissão ao procedimento de habilitação de casamento e assento no Registro Civil”. Em seus parágrafos, a projeção estabelece que é facultado aos companheiros requererem a inserção da data de início da união estável, desde que apresentem declaração, com firma reconhecida, de todos os seus descendentes, unilaterais ou comuns, consentindo com a data informada ou, se for o caso, declaração de inexistência de descendentes. Propõe-se, ainda, que a data de início da união estável poderá ser impugnada por terceiros interessados a qualquer tempo, ainda que de forma incidente em processos judiciais. Tenho dúvidas quanto à necessidade de assinatura com firma reconhecida, uma vez que o que se busca com o projeto é a redução de burocracias.
Como última proposta que pretendo comentar nesse texto, almeja-se alterar o art. 610 do Código de Processo Civil de 2015, na menção de que em havendo testamento ou interessados incapazes não é possível o inventário extrajudicial. Muitas normas de Corregedorias Gerais de Tribunais de Justiça têm amenizado essa regra, nos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo. Seguem o teor do Enunciado n. 600 da VII Jornada de Direito Civil, repetido na I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios (Enunciado n. 77) e na I Jornada de Direito Processual Civil (Enunciado n. 51). Por tais enunciados doutrinários, em havendo registro judicial ou autorização expressa do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura, registro e cumprimento de testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública.
A proposta do projeto em estudo é bem mais audaciosa, pois o art. 610, caput, do Novo Código de Processo Civil passaria a prever, pura e simplesmente que, inexistindo acordo entre os herdeiros e os legatários do falecido, proceder-se-á ao inventário judicial. Se houver acordo, sem qualquer outra ressalva, a via extrajudicial, por escritura pública a ser lavrada no Tabelionato de Notas, passa a ser plenamente possível. Conforme o seu § 1º, também com tom bem abrangente, a incluir até o pedido de adjudicação de bens, “se todos os herdeiros e os legatários forem concordes ou se só houver um herdeiro, o inventário e a partilha ou, se for o caso, a adjudicação poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras”.
Insere-se, ainda, previsão de que, mesmo havendo herdeiro incapaz, a via extrajudicial é possível, desde que haja a atuação do Ministério Público perante o Tabelionato de Notas, sendo necessária a homologação do inventário por esse órgão em um procedimento administrativo perante o Cartório (proposta de § 3º para o art. 610 do CPC/2015). Eventualmente, se o Ministério Público desaprovar a escritura, o Tabelião de Notas, por requerimento do interessado, submeterá a escritura ao juiz, que poderá suprir a homologação do MP por meio de sentença, em sede de demanda que segue o procedimento de jurisdição voluntária (eventual § 4º do art. 610 do CPC/2015).
Sem dúvidas, são propostas que alteram as estruturas de procedimentos consolidados, mas que ficam para o debate e para a reflexão pela comunidade jurídica. Entendo que as sugestões legislativas facilitam e agilizam o tráfego jurídico, além de terem a grande vantagem de desafogarem o Judiciário e reduzirem a burocracia, atribuindo aos Cartórios funções que eles podem desempenhar muito bem, cumprindo a sua verdadeira função social.
[1] Coluna do Migalhas de janeiro de 2018.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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