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O ensino de no Brasil
SUMÁRIO: 1. Repensando o ensino do direito de família; 2. A Constituição de 1988: o canto do cisne da família patriarcal; 3. Quebra do patriarcalismo. Em busca do novo paradigma familiar; 4. Conteúdo Programático Tradicional do Direito de Família; 5. A permanente discussão: público ou privado?; 6. O processo de descodificação do direito de família; 7. Direito das mulheres e (direito a) diferença entre os gêneros; 8. Os novos princípios do direito de família; 9. Repercussão das novas diretrizes curriculares no ensino do direito de família; 10. Aplicação das novas diretrizes ao direito de família; 11. Uma listagem de temas básicos.
1. Repensando o ensino do direito de família
Diversos fatores têm provocado a necessidade de se repensar o ensino de direito de família, que se pratica nos cursos jurídicos brasileiros. Não se trata de promover simples atualização, que se dá pela incorporação do novo ao conhecimento regularmente transmitido.
As relações familiares e de parentesco, a partir da década de sessenta deste Século, passaram por transformações profundas, logo percebidas pela psicologia, pela psicanálise, pela sociologia, pela antropologia, pela demografia, e até mesmo pela ciência política e pela engenharia genética. Pode-se dizer que houve uma radical mudança de paradigmas. Todavia, o direito de família no Brasil, enquanto doutrina e ensino escolar, manteve relativo distanciamento das mudanças, perseverando no paradigma familiar de onde partiu nossa legislação civil, a saber, a família patriarcal.
A formação legalista e pouco científica de muitos docentes que ministram a disciplina privilegiou um ensino acrítico, de exegese do Código, quando não de reação às mudanças lentamente absorvidas pelo legislador.
Na sociedade brasileira, dois fenômenos podem ser identificados como principais motores da transformação radical do paradigma familiar, nas últimas décadas: a concentração urbana e a emancipação feminina.
Os dados do IBGE demonstram uma linha ascendente de concentração populacional nas cidades, esvaziando os campos. No final do Século XX, vivem nas cidades mais de três quartos da população brasileira.
A concentração urbana contribuiu fortemente para o fenômeno que impulsionou a mais devastadora implosão do modelo patriarcal da família, a emancipação feminina. Foram determinantes, o acesso progressivo das mulheres à educação e ao mercado de trabalho.
2. A Constituição de 1988: o canto do cisne da família patriarcal
A Constituição de 1988 foi o epílogo da lenta evolução legal das relações familiares e de parentesco, no Brasil. Antes dela, devem ser destacados os diplomas legais que, neste Século, reduziram as desigualdades de direitos entre filhos legítimos e ilegítimos, o Estatuto da Mulher Casada e a lei do Divórcio. Até 1988, tem-se a história do contínuo desmonte da família patriarcal, deslegalizando-se e deslegitimizando-se as desigualdades jurídicas.
A falta de um estatuto legal completo das relações familiares, após quase dez anos de vigência da Constituição de 1988, levou o ensino a um estágio de perplexidade e grande confusão, com evidentes prejuízos à formação profissional. Não surpreende, pois, que se continue a ensinar o direito de família legislado no Código, como se inexistissem as normas e princípios contidos nos artigos 226 a 230 da Constituição. O frágil ensino exegético não consegue trabalhar as categorias próprias da hermenêutica constitucional. Assim, entre o princípio auto-executável da igualdade entre os cônjuges, prefere-se continuar interpretando os artigos do Código Civil, que cuidavam dos interditos à mulher, sem equivalentes ao homem.
De um modo geral, a doutrina passou a entender que os princípios constitucionais são auto-executáveis. Todavia, as lições contidas nos manuais e cursos de direito civil permanecem reproduzindo as noções relativas a artigos que restaram com eles incompatibilizados.
Após algumas vacilações iniciais, prevaleceu no Supremo Tribunal Federal a tese, a meu ver acertada, da revogação das normas infraconstitucionais anteriores que sejam incompatíveis com as normas e princípios da Constituição, quando ela entrou em vigor .
Os preceitos da Constituição que impõem a igualdade entre homem e mulher e entre os cônjuges são auto-executáveis e bastantes em si. Todas normas que instituíram direitos e deveres diferenciados entre os cônjuges restaram revogados integralmente. Apenas deste modo, o intérprete não invade o campo próprio do legislador, evitando expandir direitos antes atribuídos apenas ao marido ou à mulher.
Em face do princípio da igualdade entre os cônjuges, que não admite qualquer limitação legal, é inadequada a interpretação conforme à Constituição, porque este princípio de hermenêutica constitucional deriva da presunção de constitucionalidade da lei. Ante a orientação que prevaleceu no STF, não se trata de juízo de constitucionalidade mas de revogação das normas infraconstitucionais anteriores, o que afasta a sobrevivência ou aproveitamento de qualquer de seus efeitos.
3. Quebra do patriarcalismo. Em busca do novo paradigma familiar
Em face da quebra do paradigma patriarcal, consumada pela Constituição de 1988, é tarefa quase impossível o aproveitamento do regime legal contido no Livro I da Parte Especial do Código Civil. São modelos que partem de pressupostos distintos, condicionando os regimes legais decorrentes.
O Código regulava a família patriarcal, que se caracterizava pela hegemonia de poder do pai, pela hierarquização das funções de seus membros, pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres, pela desigualdade de direitos entre filhos de origens diversas (biológicas ou por adoção), pela desconsideração de entidades familiares distintas do casamento, pela ausência de liberdade para dissolução, pelo prevalecimento da linha masculina, pelo predomínio dos interesses de caráter patrimonializante sobre os de caráter afetivo.
Qual seria, então, o paradigma familiar que emergiu dessas transformações? A família é uma instituição social, infensa a ser conformada integralmente a modelos legais. Cumpre ao direito, e aos docentes jurídicos, captarem suas múltiplas dimensões, em constante mutação. Por isso, a importância fundamental da compreensão interdisciplinar.
Penso que a característica fundante da família atual é a afetividade. As Constituições liberais sempre atribuíram à família o papel de célula básica do Estado. As declarações de direito, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em sinal dos tempos, preferiram vinculá-la à sociedade (Art. 16.3: "A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade ..."; na Constituição brasileira, art. 226: "A família, base da sociedade, ..."), como reconhecimento da perda histórica de sua função política. A função política despontava na família patriarcal, cujos fortes traços marcaram a cena histórica brasileira, da Colônia às primeiras décadas deste Século. Em obras clássicas, vários pensadores assinalaram este instigante traço da formação do homem brasileiro, ao demonstrar que a religião e o patrimônio doméstico se colocaram como irremovíveis obstáculos ao sentimento coletivo de res publica. Por trás da família, estavam a religião e o patrimônio, em hostilidade permanente ao Estado, apenas tolerado como instrumento de interesses particulares. Em suma, o público era (e ainda é, infelizmente) pensado como projeção do espaço privado-familiar.
A família atual brasileira desmente essa tradição centenária. Relativizou-se sua função procracional. Desapareceram suas funções política, econômica e religiosa, para as quais era necessária a origem biológica. Hoje, a família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. Sendo assim, é exigente de tutela jurídica mínima, que respeite a liberdade de constituição, convivência e dissolução; a auto-responsabilidade; a igualdade irrestrita de direitos, embora com reconhecimento das diferenças naturais e culturais entre os gêneros; a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, como pessoas em formação; o forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. Em trabalho que dediquei ao assunto, denominei esse fenômeno de repersonalização das relações familiares . É o salto, à frente, da pessoa humana no âmbito familiar.
Embora a família tenha perdido sua função de unidade religiosa (deus doméstico, dos romanos; capela da casa grande, dos senhores rurais brasileiros), os temas de direito de família continuam mesclados de interferências religiosas. Casamento, divórcio, planejamento familiar, filiação, são recorrentes em posições, às vezes extremadas, de grupos religiosos que procuram influir nas opções legislativas e nas políticas públicas.
4. Conteúdo Programático Tradicional do Direito de Família
Tradicionalmente, o direito de família é ensinado acompanhando a divisão temática comum na doutrina, e no próprio Código Civil, em três grandes áreas :
a) direito matrimonial
b) direito parental
c) direito protetivo ou assistencial
A discussão interdisciplinar em torno da família é raramente enfrentada em nossos cursos. Os temas que não se enquadram na tríade ou na seqüência do Código, são tratados como situações excepcionais, a exemplo do concubinato e união estável, da infância e adolescência, do bem de família, de manipulações genéticas, sempre que introduzidos no direito positivo.
O direito matrimonial cuida da realização do casamento, da capacidade para casar, dos impedimentos (no Brasil, em conjunto com as espécies de proibição), dos efeitos do casamento em relação ao marido e a mulher (diversidade de poderes e desigualdade de direitos), e da dissolução pela separação e divórcio.
O direito parental volta-se nomeadamente para a filiação biológica (sua ratio era disciplinar a diversidade de direitos entre filhos legítimos e ilegítimos, de conteúdo patrimonial predominante), para a adoção, e para as relações de parentesco e seus efeitos.
No direito protetivo ou assistencial incluem-se o pátrio poder (expressão ultrapassada, pelas funções diferenciadas que passou a exercer), a tutela, a curatela e os alimentos. Nas codificações liberais, o interesse protegido é o patrimonial mais que o da pessoa do assistido.
A tríade continua válida, mas não consegue abranger outras dimensões autônomas que assumiram grau de importância igual ou superior, como melhor se exporá adiante.
5. A permanente discussão: público ou privado?
As transformações sofridas pelo direito de família não foram suficientes para afastar a discussão persistente, no meio acadêmico, sobre sua natureza e localização na velha dicotomia: direito privado ou direito público. Apesar de constantemente ser denunciada sua irrelevância ou o desaparecimento de sua importância para a teoria do direito, resiste teimosamente, à falta de classificação mais convincente.
No plano didático, a dicotomia continua útil. Os arautos de seu desaparecimento têm em mente o grau de intervenção do Estado (legislador ou juiz) em certas relações, para considerá-las publicizadas. No Estado social (welfare state) todos os temas sociais juridicamente relevantes foram constitucionalizados. O Estado social caracteriza-se exatamente por controlar e intervir em setores da vida privada, antes interditados à ação pública pelas constituições liberais. No Estado social, portanto, não é o grau de intervenção legislativa, ou de controle do espaço privado, que gera a natureza de direito público. O mais privado dos direitos, o direito civil, está inserido essencialmente na Constituição de 1988 (atividade negocial, família, sucessões, propriedade). Se fosse esse o critério, então inexistiria direito privado.
Independentemente do grau de intervenção estatal, se o exercício do direito se dá por particular em face de outro particular, ou quando o Estado se relaciona paritariamente com o particular sem se valer de seu império, então o direito é privado.
Se é verdade que entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta, a Constituição de 1988 foi a que mais interviu nas relações familiares e a que mais as libertou. Consumou-se a redução ou mesmo eliminação, ao menos no plano jurídico, do elemento despótico existente no seio da família, no Brasil.
6. O processo de descodificação do direito de família
As grandes codificações de direito privado perderam sua função ou sua raison d'être histórica. Concebidas como constituição do homem comum burguês, sua racionalidade escrita simbolizou a ruptura com o ancien régime. Os Códigos cristalizaram a igualdade formal de direitos subjetivos, rompendo a estrutura estamental fundada no jus privilegium, nos locais reservados às pessoas em razão de suas origens. A revolução industrial, os movimentos sociais, as ideologias em confronto, a massificação social, a revolução tecnológica, constituíram-se em arenas de exigências de liberdade e igualdades materiais e de emersão de novos direitos, para o que a codificação se apresentou inadequada, nomeadamente nas últimas décadas de tantas e rápidas transformações. O direito de família, como parte da codificação civil, sofreu essas vicissitudes, em grau mais agudo. A mulher foi a grande ausente na codificação. As liberdades e igualdades formais a ela não chegaram, permanecendo a codificação, no direito de família, em fase pré-iluminista.
Nas grandes codificações do século passado (e a concepção de nosso Código Civil é oitocentista), o filho é protegido sobretudo na medida de seus interesses patrimoniais e o matrimônio revela muito mais uma união de bens que de pessoas .
Proliferaram na década de setenta deste Século, e daí em diante, as legislações sobre as relações familiares, emancipando as mulheres e os filhos, subtraindo parcelas inteiras dos códigos civis. Essas legislações têm por característica a multidisciplinaridade, rompendo a peculiar concentração legal de matérias comuns e de mesma natureza dos códigos. Nelas, ocorre o oposto: a conjunção de vários ramos do direito, no mesmo diploma legal, para disciplinar matéria específica, não se podendo integrar a determinado código monotemático. Veja-se o exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, cujos interesses são objeto de disciplina interligada de direito civil, direito penal, direito processual civil, direito processual penal, direito administrativo e, ainda, de direito promocional que absorve os avanços das ciências médicas, psicológicas e sociais.
Refletem-se no direito de família, as grandes dimensões porque passam os direitos fundamentais ou os direitos humanos. Os estudiosos consideram que os direitos humanos, desde a revolução liberal, já despontaram em quatro gerações sucessivas e interdependentes: a primeira, a dos direitos das liberdades (bill of rigths); a segunda, a dos direitos sociais; a terceira, a dos direitos transindividuais, onde os interesses tutelados são indissoluvelmente comunitários; a quarta, o dos direitos à integridade genética ou da bioética.
As grandes questões da bioética repercutem intensamente na evolução do direito de família e provocam perplexidades. A reprodução, a concepção, a modificação do código genético, com a mediação decisiva do conhecimento científico e tecnológico, estão revolucionando os valores traduzidos nos códigos e leis de família. A natureza biológica da família recebe inesperado reforço, entrando em conflito com a tendência de consolidar-se como entidade afetiva, onde o amor joga um papel mais decisivo que o sangue.
Enquanto o motor da história gira tão rapidamente, e os temas da bioética saem do ambiente científico para os debates populares, o direito de família assiste ainda a luta pela materialização dos direitos humanos de primeira geração para os protagonistas que a família patriarcal considerava secundários ou alieni iuris: a mulher e o menor.
7. Direito das mulheres e (direito a) diferença entre os gêneros
Não é surpreendente que, duzentos anos após a revolução liberal, haja necessidade de um direito das mulheres, notadamente em países onde se supunha resolvido o problema. Não se trata de expressão de feminismo radical, mas de séria investigação das condições reais do ordenamento jurídico em assegurar-lhes a plenitude como sujeitos de direitos, em total paridade com os homens. A matéria é necessariamente interdisciplinar, não podendo ficar contida no campo tradicional do direito de família. Em interessante estudo dedicado à matéria, a jurista norueguesa Tove Stang Dahl faz aplicação desse direito no campo da teoria geral do direito, em situações específicas, dentre outras: a) ao direito das mulheres ao dinheiro, b) ao direito das donas de casa, c) à discriminação na situação de desemprego.
O tema assume importância relevante quando se discute o gênero neutro, que vê homens e mulheres como iguais em direito, afastando propositadamente as diferenças. Enquanto se avançava na busca da igualdade jurídica integral entre homens e mulheres — no Brasil, só alcançável com a Constituição de 1988 — que vencesse a desigualdade, justificada em preconceitos e discriminações em razão do sexo, as diferenças foram obscurecidas porque não contribuíam para se alcançar o penoso objetivo.
Vencida a etapa da igualdade jurídica, o contributo de outras ciências, como a psicanálise, trazem à tona a rica dimensão psicossocial das diferenças entre os gêneros, que a dogmática do direito de família não pode mais descurar . O imenso desafio é a compatibilidade das diferenças com o princípio da igualdade jurídica, para que não se retroceda à discriminação em razão do sexo, que a Constituição veda.
Porque será que o juiz brasileiro, na quase totalidade dos casos de separação de casais, prefere a mãe ao pai, para guardião dos filhos? O senso comum atribui à mulher o papel de dona de casa (espaço privado) e ao homem o de provedor (espaço público). Essa diferença é negativamente discriminatória, ou seja, é juízo de valor negativo do papel da mulher. A escolha pode estar fundamentada em dado de ciência que demonstre, no geral, estar a mulher mais apta biológica ou psicologicamente para exercer esse papel, quando os pais estejam separados, salvo se em situação concreta tal não ocorrer. Essa diferença decorre de juízo de valor positivo, e atende melhor ao estágio atual do direito que determina seja observado o benefício do menor. A tendência, no entanto, parece apontar para a guarda compartilhada, onde o interesse dos pais é subordinado ao interesse dos filhos, ampliando-se as possibilidades de convivência entre eles .
8. Os novos princípios do direito de família
O desenvolvimento do direito de família deita raízes nos seguintes princípios interdependentes:
a) princípio da dignidade da pessoa humana;
b) princípio da liberdade;
c) princípio da igualdade;
d) princípio do pluralismo das entidades familiares;
e) princípio da eliminação do elemento despótico.
As peculiaridades desses princípios, no direito de família, faz emergir a convivência harmônica com seus opostos, exceto quanto ao princípio da dignidade humana que apenas admite os limites impostos pela ordem pública. O princípio da liberdade delimita-se com o princípio da responsabilidade, entre cônjuges ou companheiros, e com o princípio da autoridade que persiste nas relações entre pais e filhos (por sua vez delimitado pelo princípio de respeito aos direitos específicos da criança e do adolescente). O princípio da igualdade de direitos é delimitado pelo respeito às diferenças naturais e culturais entre os sexos. O princípio do pluralismo de entidades, especificando o da liberdade, é delimitado pelo modelo preferencial da família constituída pelo casamento, que deixou de ser exclusivo para ser exemplar ou promocional (artigo 226, § 3º, da Constituição, que se dirige ao legislador para promover ou facilitar a conversão da união estável em casamento). O princípio da redução do quantum despótico, que indica a suavização do poder de mando no seio familiar, é delimitado pela adequado e necessário exercício da autoridade parental e do aumento proporcional da auto-responsabilidade.
O princípio da dignidade humana pode ser concebido como estruturante e conformador dos demais, nas relações familiares. A Constituição, no artigo 1º, o tem como um dos fundamentos da organização social e política do país, e da própria família (artigo 226, § 7º). Na família patriarcal, a cidadania plena concentrava-as na pessoa do chefe, dotado de direitos que eram negados aos demais membros, a mulher e os filhos, cuja dignidade humana não podia ser a mesma. O espaço privado familiar estava vedado à intervenção pública, tolerando-se a subjugação e os abusos contra os mais fracos. No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público é matrizado exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade familiar, ainda tão duramente violada na realidade social, máxime com relação às crianças. Concretizar esse princípio é um desafio imenso, ante a cultura secular e resistente. No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa viragem, configurando seu específico bill of rigths, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. É uma espetacular mudança de paradigmas.
O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeito suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.
O princípio da igualdade, formal e material, relaciona-se à paridade de direitos entre os cônjuges ou companheiros e entre os filhos. Não há cogitar de igualdade entre pais e filhos, porque cuida de igualar os iguais. A conseqüência mais evidente é o desaparecimento de hierarquia entre os que o direito passou a considerar pares, tornando perempta a concepção patriarcal de chefia. A igualdade não apaga as diferenças entre os gêneros, que não pode ser ignorada pelo direito. Ultrapassada a fase da conquista da igualdade formal, no plano do direito, as demais ciências demonstraram que as diferenças não poderiam ser afastadas. A mulher é diferente do homem, mas enquanto pessoa humana deve exercer os mesmos direitos. A história ensina que a diferença serviu de justificativa a preconceitos de supremacia masculina, vedando à mulher o exercício pleno de sua cidadania ou a realização como sujeito de direito.
O princípio do pluralismo das entidades familiares rompe com a tradição centenária do direito brasileiro de apenas considerar como instituto jurídico o casamento, desde as Ordenações do Reino. Todas as Constituições brasileiras (imperial e republicanas) estabeleceram que apenas a família constituída pelo casamento seria protegida pelo Estado. Apenas a Constituição de 1988 retirou do limbo ou da clandestinidade as demais entidades familiares, nomeadamente a união estável e a entidade unipaternal (pai ou mãe e filhos). Os integrantes dessas famílias — relegadas a meros fatos sociais, não jurídicos - eram destituídos de direitos familiares idênticos. Contudo, a Constituição de 1988 ainda deixou de fora certas entidades que têm natureza familiar, porque se constituem como unidades afetivas e não patrimoniais, tais como: o concubinato entre impedidos de casar (o princípio da monogamia é mais forte que os fatos), as uniões homossexuais e as uniões duradouras de pessoas, sem finalidade sexual, que buscam convivência afetiva (de mesmo sexo ou de sexo diferente).
O princípio da eliminação do elemento despótico somente é possível pensar-se na família anti-patriarcal. Significa a eliminação gradativa do poder no seio da família. No que respeita aos filhos, permite investigar a trajetória do poder absoluto do paterfamilias romano, que incluía o de vida e morte, até o conceito atual de autoridade parental , que é mais dever que poder.
9. Repercussão das novas diretrizes curriculares no ensino do direito de família
A partir do ano letivo de 1997 tornaram-se obrigatórias, para todos os cursos jurídicos do país, as novas diretrizes curriculares fixadas pela Portaria MEC nº 1.884 de 30 de dezembro de 1994. Não se trata de simples elenco de matérias para composição de grade curricular. Sua concepção é abrangente das várias dimensões de um projeto pedagógico. Para as finalidades do ensino do direito de família, podem ser destacados os seguintes pontos:
a) interligação obrigatória do ensino com a pesquisa e a extensão;
b) necessidade de formação fundamental, sócio-política, técnico-jurídica e prática do bacharel em direito;
c) destinação de cinco a dez por cento da carga horária geral do curso para atividades complementares, de livre escolha do aluno;
d) exigência de interdisciplinaridade;
e) absorção de novos direitos.
As novas diretrizes impõem redirecionamento completo das práticas pedagógicas e dos conteúdos que se tornaram comuns, nos cursos jurídicos. O exemplo infelizmente caricato do professor de direito é o do comentador superficial de textos legais, sem contribuir para a produção criativa ou ao raciocínio crítico, reproduzindo-se tal modelo nas avaliações que aplica. Esse tipo de professor não está preparado para implementar o novo ensino jurídico.
O ensino do direito em geral, e do direito de família em especial, não pode mais conter-se na transmissão do conhecimento já consagrado. Há de estar integrado com a produção do conhecimento novo, que só a pesquisa é capaz de propiciar. Além disso deve interagir com a comunidade, valendo-se dos vários processos de extensão.
10. Aplicação das novas diretrizes ao direito de família
O primeiro passo é o abandono do modelo exegético, centrado no Código Civil. Como se procurou destacar acima, o direito de família mudou radicalmente, mas o Código permaneceu centrado em um paradigma que já desapareceu. A abordagem deve ser necessariamente crítica, para que se revele o descompasso da lei com a realidade social. Deve-se optar por extrair da Constituição os elementos fundamentais compatíveis com as relações pessoais e familiares que tutela. Em verdade, o Código restou como normas supletivas, no que não contrarie a Constituição e a legislação especial, que desenham um estatuto legal dúctil da família. Mas o ensino da matéria ainda estará incompleto se o seu conteúdo programático não incluir a contribuição de ciências não jurídicas, como a história, a psicologia (ou a psicanálise), a sociologia, a demografia (imprescindíveis são as pesquisas por amostragem de domicílio, que anualmente o IBGE promove) e a bioética.
Para o direito de família, ante sua densa interdisciplinaridade e imersão na realidade social, é mais adequada a pesquisa social empírica, cuja metodologia está largamente assentada. Nesse campo, as linhas de pesquisa podem dirigir-se a: a) conhecimento das circunstâncias reais da vida familiar e social, que indicam as condições de viabilidade ou necessidade de ordenação de condutas e interesses; b) conhecimento das fontes reais de direito, assim entendidas e praticadas pela comunidade; c) a efetividade do direito positivo; 4) a adequação do direito à realidade social, seus valores e interesses; 5) as práticas administrativas, que realizam o direito, no Estado Social, mais que a jurisprudência dos tribunais, particularmente no campo da ação social, da assistência e da seguridade, no interesse das famílias. São comuns a pesquisa por amostragem, a aplicação de questionários, a pesquisa documental, a pesquisa de jurisprudência dos tribunais, a pesquisa de legislação nacional e estrangeira e de projetos de leis, e dos grupos de pressão e ideológicos que os influenciaram. No plano da produção do conhecimento, é interessante a apropriação de dados de outras ciências que possam agregar-se à reflexão crítica de causas e tendências das relações familiares, sob a perspectiva do direito.
O incentivo à pesquisa é explícito na Portaria MEC nº 1.886/94, em três momentos: a) quando estabelece a interligação obrigatória do ensino com a pesquisa; b) quando impõe a monografia final, com defesa perante banca, para conclusão do curso, que não pode prescindir do desenvolvimento de um projeto mínimo de pesquisa, que deve sempre ser estimulado; c) quando inclui a pesquisa na computação da carga horária das atividades complementares do aluno, permitindo a difusão da iniciação científica, que não era uma prática habitual nos cursos jurídicos.
Há muito chão a se percorrer, para que a pesquisa se torne uma atitude permanente de aprendizagem nos cursos jurídicos, propiciando-se a formação de grupos emergentes. As matérias coenvolvidas no direito de família são propícias a esse desenvolvimento.
A extensão nos cursos jurídicos sempre se resumiu à assistência judicial. A assistência não é apenas judicial, mas jurídica, em sentido amplo, incluindo consultoria, assessoria, conciliação, mediação. Para o direito de família, é importante ressaltar que, no Estado de Alagoas, cerca de 90% das demandas de assistência jurídica gratuita são relacionadas às questões da família, o que levou o Tribunal de Justiça e o Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Alagoas a instalar no campus da universidade uma vara de família, para atender os necessitados de justiça. Todavia, além desse importante aspecto, a extensão significa intervir positivamente nas comunidades, interagindo e compartilhando da solução de seus problemas, mediante o saber qualificado que foi produzido e transmitido nos cursos, enriquecendo-se com o saber popular com que se deparam. Significa, também, atividades de formação continuada e promoção de eventos que beneficie a comunidade geral e jurídica, para conhecimento de seus direitos. No campo de direito de família, é impressionante o desconhecimento das pessoas acerca de seus direitos mais simples, talvez porque o "direito no papel" (law in books) tenha avançado muito mais que o "direito na realidade" (law in action).
O ensino, a pesquisa e a extensão nos cursos jurídicos devem atender à necessidade de formação sócio-política, técnico-jurídica e prática do bacharel em direito. No que toca à formação sócio-política, espera-se que as matérias fundamentais (jurídicas ou não jurídicas ) capacitem o futuro profissional à produção criativa do direito, à reflexão crítica, a atuar nos processos de mudança social e de transformações do direito. A inafastável interdisciplinaridade do direito de família não pode prescindir de sólida formação sócio-política. A formação técnico-jurídica, mesclada de formação sócio-política, é exigente do ensino-aprendizagem competente das matérias profissionalizantes (ou jurídico-dogmáticas, se quiserem), dentre as quais se inclui o direito de família. A prática do direito de família inclui-se no estágio de prática jurídica, que as novas diretrizes curriculares tornou obrigatório durante os últimos dois anos do curso, mediante processos simulados, processos reais, assessorias, convênios com órgãos jurídicos, assistência jurídica. Os conflitos de família são campo privilegiado para duas formas crescentes de atuação extrajudicial, inclusive para os profissionais do direito, ou seja, a mediação e a conciliação. A mediação previne o conflito e se converte no modo mais eficiente de assegurar o convívio de pais separados com seus filhos.
As atividades complementares são livremente escolhidas pelos alunos, equivalentes a 5 a 10% do total da caga horária de cada curso jurídico, e não previstas na grade curricular. Para enriquecer o conhecimento do direito de família, o aluno deve ser estimulado a participar de projetos de pesquisa, de iniciação científica e de extensão na área, além de congressos e outros eventos. Pode cursar também disciplinas ofertadas por outras áreas de conhecimento, na própria ou em outra instituição. Uma experiência que deve ser estimulada é a dos módulos temáticos, trazendo à discussão temas aos quais professores e especialistas estejam dedicando seus estudos.
Como vimos sublinhado, a interdisciplinaridade é capilar no direito de família. O ensino centrado nos comentários à legislação existente não cumpre seu papel; ensina mal e é deformante. A interdisciplinaridade no direito de família apresenta duas dimensões: uma interna, que se dá com as demais disciplinas curriculares, refletindo sobre o que nelas pode ser útil para ampliação de seu estudo, e uma externa, relacionando-se com outras áreas que também tenham as relações familiares como objeto de conhecimento, a exemplo das ciências biológicas, da psicologia, da psicanálise, da sociologia, da bioética, da estatística.
Os conteúdos programáticos da disciplina direito de família devem ser definidos com suficiente flexibilidade, de modo a absorver os novos direitos que com ela se relacionem, assim entendidos todos aqueles que se incorporaram, de modo pluralístico, aos sujeitos. Podem ser assim considerados os direitos da criança e do adolescente, o direito das mulheres, o direito à integridade genética (também considerado direito fundamental), direitos próprios da comunidade familiar, o direito irrestrito à perfilhação e à paternidade ou maternidade.
11. Uma listagem de temas básicos
Atento ao conjunto de enfoques acima delineado que o ensino do direito de família exige, na atualidade, penso que o conteúdo programático da disciplina deve incluir, ao menos, os seguintes temas básicos:
FAMÍLIA:
a) Origens, evolução e funções da família;
b) Influência das demais ciências no desenvolvimento do direito de família;
c) Princípios das relações familiares; a Constituição e o direito de família;
ENTIDADES FAMILIARES:
d) Tipos de entidades familiares;
e) Outras comunidades afetivas ou parafamiliares;
f) Famílias conjugais: constituição, diretos e deveres, dissolução do casamento e da união estável;
DIREITOS DOS SUJEITOS:
g) Direitos de personalidade, na família;
h) Direito das Mulheres;
i) Paternidade e Maternidade;
j) Filiação biológica natural ou por manipulação genética e adotiva;
j) Direito a alimentos;
REGIME PROTETIVO:
l) Autoridade parental;
l) Proteção da criança e do adolescente;
n) Proteção do adulto incapaz ou juridicamente débil.
o) Bem de família.
A seqüência e a eleição dos temas seguem uma ordem tendencialmente repersonalizante, em que a pessoa ou o sujeito, nas relações familiares, é o foco principal do conhecimento e do ensino. O patrimônio deve ser visto como efeito da tutela dos sujeitos e não como causa do regime jurídico familiar. Somente assim, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana será alcançado no direito de família.
(*) Doutor em Direito Civil (USP), professor da UFAL e da UFPE (Pós-graduação)
1. Repensando o ensino do direito de família
Diversos fatores têm provocado a necessidade de se repensar o ensino de direito de família, que se pratica nos cursos jurídicos brasileiros. Não se trata de promover simples atualização, que se dá pela incorporação do novo ao conhecimento regularmente transmitido.
As relações familiares e de parentesco, a partir da década de sessenta deste Século, passaram por transformações profundas, logo percebidas pela psicologia, pela psicanálise, pela sociologia, pela antropologia, pela demografia, e até mesmo pela ciência política e pela engenharia genética. Pode-se dizer que houve uma radical mudança de paradigmas. Todavia, o direito de família no Brasil, enquanto doutrina e ensino escolar, manteve relativo distanciamento das mudanças, perseverando no paradigma familiar de onde partiu nossa legislação civil, a saber, a família patriarcal.
A formação legalista e pouco científica de muitos docentes que ministram a disciplina privilegiou um ensino acrítico, de exegese do Código, quando não de reação às mudanças lentamente absorvidas pelo legislador.
Na sociedade brasileira, dois fenômenos podem ser identificados como principais motores da transformação radical do paradigma familiar, nas últimas décadas: a concentração urbana e a emancipação feminina.
Os dados do IBGE demonstram uma linha ascendente de concentração populacional nas cidades, esvaziando os campos. No final do Século XX, vivem nas cidades mais de três quartos da população brasileira.
A concentração urbana contribuiu fortemente para o fenômeno que impulsionou a mais devastadora implosão do modelo patriarcal da família, a emancipação feminina. Foram determinantes, o acesso progressivo das mulheres à educação e ao mercado de trabalho.
2. A Constituição de 1988: o canto do cisne da família patriarcal
A Constituição de 1988 foi o epílogo da lenta evolução legal das relações familiares e de parentesco, no Brasil. Antes dela, devem ser destacados os diplomas legais que, neste Século, reduziram as desigualdades de direitos entre filhos legítimos e ilegítimos, o Estatuto da Mulher Casada e a lei do Divórcio. Até 1988, tem-se a história do contínuo desmonte da família patriarcal, deslegalizando-se e deslegitimizando-se as desigualdades jurídicas.
A falta de um estatuto legal completo das relações familiares, após quase dez anos de vigência da Constituição de 1988, levou o ensino a um estágio de perplexidade e grande confusão, com evidentes prejuízos à formação profissional. Não surpreende, pois, que se continue a ensinar o direito de família legislado no Código, como se inexistissem as normas e princípios contidos nos artigos 226 a 230 da Constituição. O frágil ensino exegético não consegue trabalhar as categorias próprias da hermenêutica constitucional. Assim, entre o princípio auto-executável da igualdade entre os cônjuges, prefere-se continuar interpretando os artigos do Código Civil, que cuidavam dos interditos à mulher, sem equivalentes ao homem.
De um modo geral, a doutrina passou a entender que os princípios constitucionais são auto-executáveis. Todavia, as lições contidas nos manuais e cursos de direito civil permanecem reproduzindo as noções relativas a artigos que restaram com eles incompatibilizados.
Após algumas vacilações iniciais, prevaleceu no Supremo Tribunal Federal a tese, a meu ver acertada, da revogação das normas infraconstitucionais anteriores que sejam incompatíveis com as normas e princípios da Constituição, quando ela entrou em vigor .
Os preceitos da Constituição que impõem a igualdade entre homem e mulher e entre os cônjuges são auto-executáveis e bastantes em si. Todas normas que instituíram direitos e deveres diferenciados entre os cônjuges restaram revogados integralmente. Apenas deste modo, o intérprete não invade o campo próprio do legislador, evitando expandir direitos antes atribuídos apenas ao marido ou à mulher.
Em face do princípio da igualdade entre os cônjuges, que não admite qualquer limitação legal, é inadequada a interpretação conforme à Constituição, porque este princípio de hermenêutica constitucional deriva da presunção de constitucionalidade da lei. Ante a orientação que prevaleceu no STF, não se trata de juízo de constitucionalidade mas de revogação das normas infraconstitucionais anteriores, o que afasta a sobrevivência ou aproveitamento de qualquer de seus efeitos.
3. Quebra do patriarcalismo. Em busca do novo paradigma familiar
Em face da quebra do paradigma patriarcal, consumada pela Constituição de 1988, é tarefa quase impossível o aproveitamento do regime legal contido no Livro I da Parte Especial do Código Civil. São modelos que partem de pressupostos distintos, condicionando os regimes legais decorrentes.
O Código regulava a família patriarcal, que se caracterizava pela hegemonia de poder do pai, pela hierarquização das funções de seus membros, pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres, pela desigualdade de direitos entre filhos de origens diversas (biológicas ou por adoção), pela desconsideração de entidades familiares distintas do casamento, pela ausência de liberdade para dissolução, pelo prevalecimento da linha masculina, pelo predomínio dos interesses de caráter patrimonializante sobre os de caráter afetivo.
Qual seria, então, o paradigma familiar que emergiu dessas transformações? A família é uma instituição social, infensa a ser conformada integralmente a modelos legais. Cumpre ao direito, e aos docentes jurídicos, captarem suas múltiplas dimensões, em constante mutação. Por isso, a importância fundamental da compreensão interdisciplinar.
Penso que a característica fundante da família atual é a afetividade. As Constituições liberais sempre atribuíram à família o papel de célula básica do Estado. As declarações de direito, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em sinal dos tempos, preferiram vinculá-la à sociedade (Art. 16.3: "A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade ..."; na Constituição brasileira, art. 226: "A família, base da sociedade, ..."), como reconhecimento da perda histórica de sua função política. A função política despontava na família patriarcal, cujos fortes traços marcaram a cena histórica brasileira, da Colônia às primeiras décadas deste Século. Em obras clássicas, vários pensadores assinalaram este instigante traço da formação do homem brasileiro, ao demonstrar que a religião e o patrimônio doméstico se colocaram como irremovíveis obstáculos ao sentimento coletivo de res publica. Por trás da família, estavam a religião e o patrimônio, em hostilidade permanente ao Estado, apenas tolerado como instrumento de interesses particulares. Em suma, o público era (e ainda é, infelizmente) pensado como projeção do espaço privado-familiar.
A família atual brasileira desmente essa tradição centenária. Relativizou-se sua função procracional. Desapareceram suas funções política, econômica e religiosa, para as quais era necessária a origem biológica. Hoje, a família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. Sendo assim, é exigente de tutela jurídica mínima, que respeite a liberdade de constituição, convivência e dissolução; a auto-responsabilidade; a igualdade irrestrita de direitos, embora com reconhecimento das diferenças naturais e culturais entre os gêneros; a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, como pessoas em formação; o forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. Em trabalho que dediquei ao assunto, denominei esse fenômeno de repersonalização das relações familiares . É o salto, à frente, da pessoa humana no âmbito familiar.
Embora a família tenha perdido sua função de unidade religiosa (deus doméstico, dos romanos; capela da casa grande, dos senhores rurais brasileiros), os temas de direito de família continuam mesclados de interferências religiosas. Casamento, divórcio, planejamento familiar, filiação, são recorrentes em posições, às vezes extremadas, de grupos religiosos que procuram influir nas opções legislativas e nas políticas públicas.
4. Conteúdo Programático Tradicional do Direito de Família
Tradicionalmente, o direito de família é ensinado acompanhando a divisão temática comum na doutrina, e no próprio Código Civil, em três grandes áreas :
a) direito matrimonial
b) direito parental
c) direito protetivo ou assistencial
A discussão interdisciplinar em torno da família é raramente enfrentada em nossos cursos. Os temas que não se enquadram na tríade ou na seqüência do Código, são tratados como situações excepcionais, a exemplo do concubinato e união estável, da infância e adolescência, do bem de família, de manipulações genéticas, sempre que introduzidos no direito positivo.
O direito matrimonial cuida da realização do casamento, da capacidade para casar, dos impedimentos (no Brasil, em conjunto com as espécies de proibição), dos efeitos do casamento em relação ao marido e a mulher (diversidade de poderes e desigualdade de direitos), e da dissolução pela separação e divórcio.
O direito parental volta-se nomeadamente para a filiação biológica (sua ratio era disciplinar a diversidade de direitos entre filhos legítimos e ilegítimos, de conteúdo patrimonial predominante), para a adoção, e para as relações de parentesco e seus efeitos.
No direito protetivo ou assistencial incluem-se o pátrio poder (expressão ultrapassada, pelas funções diferenciadas que passou a exercer), a tutela, a curatela e os alimentos. Nas codificações liberais, o interesse protegido é o patrimonial mais que o da pessoa do assistido.
A tríade continua válida, mas não consegue abranger outras dimensões autônomas que assumiram grau de importância igual ou superior, como melhor se exporá adiante.
5. A permanente discussão: público ou privado?
As transformações sofridas pelo direito de família não foram suficientes para afastar a discussão persistente, no meio acadêmico, sobre sua natureza e localização na velha dicotomia: direito privado ou direito público. Apesar de constantemente ser denunciada sua irrelevância ou o desaparecimento de sua importância para a teoria do direito, resiste teimosamente, à falta de classificação mais convincente.
No plano didático, a dicotomia continua útil. Os arautos de seu desaparecimento têm em mente o grau de intervenção do Estado (legislador ou juiz) em certas relações, para considerá-las publicizadas. No Estado social (welfare state) todos os temas sociais juridicamente relevantes foram constitucionalizados. O Estado social caracteriza-se exatamente por controlar e intervir em setores da vida privada, antes interditados à ação pública pelas constituições liberais. No Estado social, portanto, não é o grau de intervenção legislativa, ou de controle do espaço privado, que gera a natureza de direito público. O mais privado dos direitos, o direito civil, está inserido essencialmente na Constituição de 1988 (atividade negocial, família, sucessões, propriedade). Se fosse esse o critério, então inexistiria direito privado.
Independentemente do grau de intervenção estatal, se o exercício do direito se dá por particular em face de outro particular, ou quando o Estado se relaciona paritariamente com o particular sem se valer de seu império, então o direito é privado.
Se é verdade que entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta, a Constituição de 1988 foi a que mais interviu nas relações familiares e a que mais as libertou. Consumou-se a redução ou mesmo eliminação, ao menos no plano jurídico, do elemento despótico existente no seio da família, no Brasil.
6. O processo de descodificação do direito de família
As grandes codificações de direito privado perderam sua função ou sua raison d'être histórica. Concebidas como constituição do homem comum burguês, sua racionalidade escrita simbolizou a ruptura com o ancien régime. Os Códigos cristalizaram a igualdade formal de direitos subjetivos, rompendo a estrutura estamental fundada no jus privilegium, nos locais reservados às pessoas em razão de suas origens. A revolução industrial, os movimentos sociais, as ideologias em confronto, a massificação social, a revolução tecnológica, constituíram-se em arenas de exigências de liberdade e igualdades materiais e de emersão de novos direitos, para o que a codificação se apresentou inadequada, nomeadamente nas últimas décadas de tantas e rápidas transformações. O direito de família, como parte da codificação civil, sofreu essas vicissitudes, em grau mais agudo. A mulher foi a grande ausente na codificação. As liberdades e igualdades formais a ela não chegaram, permanecendo a codificação, no direito de família, em fase pré-iluminista.
Nas grandes codificações do século passado (e a concepção de nosso Código Civil é oitocentista), o filho é protegido sobretudo na medida de seus interesses patrimoniais e o matrimônio revela muito mais uma união de bens que de pessoas .
Proliferaram na década de setenta deste Século, e daí em diante, as legislações sobre as relações familiares, emancipando as mulheres e os filhos, subtraindo parcelas inteiras dos códigos civis. Essas legislações têm por característica a multidisciplinaridade, rompendo a peculiar concentração legal de matérias comuns e de mesma natureza dos códigos. Nelas, ocorre o oposto: a conjunção de vários ramos do direito, no mesmo diploma legal, para disciplinar matéria específica, não se podendo integrar a determinado código monotemático. Veja-se o exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, cujos interesses são objeto de disciplina interligada de direito civil, direito penal, direito processual civil, direito processual penal, direito administrativo e, ainda, de direito promocional que absorve os avanços das ciências médicas, psicológicas e sociais.
Refletem-se no direito de família, as grandes dimensões porque passam os direitos fundamentais ou os direitos humanos. Os estudiosos consideram que os direitos humanos, desde a revolução liberal, já despontaram em quatro gerações sucessivas e interdependentes: a primeira, a dos direitos das liberdades (bill of rigths); a segunda, a dos direitos sociais; a terceira, a dos direitos transindividuais, onde os interesses tutelados são indissoluvelmente comunitários; a quarta, o dos direitos à integridade genética ou da bioética.
As grandes questões da bioética repercutem intensamente na evolução do direito de família e provocam perplexidades. A reprodução, a concepção, a modificação do código genético, com a mediação decisiva do conhecimento científico e tecnológico, estão revolucionando os valores traduzidos nos códigos e leis de família. A natureza biológica da família recebe inesperado reforço, entrando em conflito com a tendência de consolidar-se como entidade afetiva, onde o amor joga um papel mais decisivo que o sangue.
Enquanto o motor da história gira tão rapidamente, e os temas da bioética saem do ambiente científico para os debates populares, o direito de família assiste ainda a luta pela materialização dos direitos humanos de primeira geração para os protagonistas que a família patriarcal considerava secundários ou alieni iuris: a mulher e o menor.
7. Direito das mulheres e (direito a) diferença entre os gêneros
Não é surpreendente que, duzentos anos após a revolução liberal, haja necessidade de um direito das mulheres, notadamente em países onde se supunha resolvido o problema. Não se trata de expressão de feminismo radical, mas de séria investigação das condições reais do ordenamento jurídico em assegurar-lhes a plenitude como sujeitos de direitos, em total paridade com os homens. A matéria é necessariamente interdisciplinar, não podendo ficar contida no campo tradicional do direito de família. Em interessante estudo dedicado à matéria, a jurista norueguesa Tove Stang Dahl faz aplicação desse direito no campo da teoria geral do direito, em situações específicas, dentre outras: a) ao direito das mulheres ao dinheiro, b) ao direito das donas de casa, c) à discriminação na situação de desemprego.
O tema assume importância relevante quando se discute o gênero neutro, que vê homens e mulheres como iguais em direito, afastando propositadamente as diferenças. Enquanto se avançava na busca da igualdade jurídica integral entre homens e mulheres — no Brasil, só alcançável com a Constituição de 1988 — que vencesse a desigualdade, justificada em preconceitos e discriminações em razão do sexo, as diferenças foram obscurecidas porque não contribuíam para se alcançar o penoso objetivo.
Vencida a etapa da igualdade jurídica, o contributo de outras ciências, como a psicanálise, trazem à tona a rica dimensão psicossocial das diferenças entre os gêneros, que a dogmática do direito de família não pode mais descurar . O imenso desafio é a compatibilidade das diferenças com o princípio da igualdade jurídica, para que não se retroceda à discriminação em razão do sexo, que a Constituição veda.
Porque será que o juiz brasileiro, na quase totalidade dos casos de separação de casais, prefere a mãe ao pai, para guardião dos filhos? O senso comum atribui à mulher o papel de dona de casa (espaço privado) e ao homem o de provedor (espaço público). Essa diferença é negativamente discriminatória, ou seja, é juízo de valor negativo do papel da mulher. A escolha pode estar fundamentada em dado de ciência que demonstre, no geral, estar a mulher mais apta biológica ou psicologicamente para exercer esse papel, quando os pais estejam separados, salvo se em situação concreta tal não ocorrer. Essa diferença decorre de juízo de valor positivo, e atende melhor ao estágio atual do direito que determina seja observado o benefício do menor. A tendência, no entanto, parece apontar para a guarda compartilhada, onde o interesse dos pais é subordinado ao interesse dos filhos, ampliando-se as possibilidades de convivência entre eles .
8. Os novos princípios do direito de família
O desenvolvimento do direito de família deita raízes nos seguintes princípios interdependentes:
a) princípio da dignidade da pessoa humana;
b) princípio da liberdade;
c) princípio da igualdade;
d) princípio do pluralismo das entidades familiares;
e) princípio da eliminação do elemento despótico.
As peculiaridades desses princípios, no direito de família, faz emergir a convivência harmônica com seus opostos, exceto quanto ao princípio da dignidade humana que apenas admite os limites impostos pela ordem pública. O princípio da liberdade delimita-se com o princípio da responsabilidade, entre cônjuges ou companheiros, e com o princípio da autoridade que persiste nas relações entre pais e filhos (por sua vez delimitado pelo princípio de respeito aos direitos específicos da criança e do adolescente). O princípio da igualdade de direitos é delimitado pelo respeito às diferenças naturais e culturais entre os sexos. O princípio do pluralismo de entidades, especificando o da liberdade, é delimitado pelo modelo preferencial da família constituída pelo casamento, que deixou de ser exclusivo para ser exemplar ou promocional (artigo 226, § 3º, da Constituição, que se dirige ao legislador para promover ou facilitar a conversão da união estável em casamento). O princípio da redução do quantum despótico, que indica a suavização do poder de mando no seio familiar, é delimitado pela adequado e necessário exercício da autoridade parental e do aumento proporcional da auto-responsabilidade.
O princípio da dignidade humana pode ser concebido como estruturante e conformador dos demais, nas relações familiares. A Constituição, no artigo 1º, o tem como um dos fundamentos da organização social e política do país, e da própria família (artigo 226, § 7º). Na família patriarcal, a cidadania plena concentrava-as na pessoa do chefe, dotado de direitos que eram negados aos demais membros, a mulher e os filhos, cuja dignidade humana não podia ser a mesma. O espaço privado familiar estava vedado à intervenção pública, tolerando-se a subjugação e os abusos contra os mais fracos. No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público é matrizado exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade familiar, ainda tão duramente violada na realidade social, máxime com relação às crianças. Concretizar esse princípio é um desafio imenso, ante a cultura secular e resistente. No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa viragem, configurando seu específico bill of rigths, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. É uma espetacular mudança de paradigmas.
O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeito suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.
O princípio da igualdade, formal e material, relaciona-se à paridade de direitos entre os cônjuges ou companheiros e entre os filhos. Não há cogitar de igualdade entre pais e filhos, porque cuida de igualar os iguais. A conseqüência mais evidente é o desaparecimento de hierarquia entre os que o direito passou a considerar pares, tornando perempta a concepção patriarcal de chefia. A igualdade não apaga as diferenças entre os gêneros, que não pode ser ignorada pelo direito. Ultrapassada a fase da conquista da igualdade formal, no plano do direito, as demais ciências demonstraram que as diferenças não poderiam ser afastadas. A mulher é diferente do homem, mas enquanto pessoa humana deve exercer os mesmos direitos. A história ensina que a diferença serviu de justificativa a preconceitos de supremacia masculina, vedando à mulher o exercício pleno de sua cidadania ou a realização como sujeito de direito.
O princípio do pluralismo das entidades familiares rompe com a tradição centenária do direito brasileiro de apenas considerar como instituto jurídico o casamento, desde as Ordenações do Reino. Todas as Constituições brasileiras (imperial e republicanas) estabeleceram que apenas a família constituída pelo casamento seria protegida pelo Estado. Apenas a Constituição de 1988 retirou do limbo ou da clandestinidade as demais entidades familiares, nomeadamente a união estável e a entidade unipaternal (pai ou mãe e filhos). Os integrantes dessas famílias — relegadas a meros fatos sociais, não jurídicos - eram destituídos de direitos familiares idênticos. Contudo, a Constituição de 1988 ainda deixou de fora certas entidades que têm natureza familiar, porque se constituem como unidades afetivas e não patrimoniais, tais como: o concubinato entre impedidos de casar (o princípio da monogamia é mais forte que os fatos), as uniões homossexuais e as uniões duradouras de pessoas, sem finalidade sexual, que buscam convivência afetiva (de mesmo sexo ou de sexo diferente).
O princípio da eliminação do elemento despótico somente é possível pensar-se na família anti-patriarcal. Significa a eliminação gradativa do poder no seio da família. No que respeita aos filhos, permite investigar a trajetória do poder absoluto do paterfamilias romano, que incluía o de vida e morte, até o conceito atual de autoridade parental , que é mais dever que poder.
9. Repercussão das novas diretrizes curriculares no ensino do direito de família
A partir do ano letivo de 1997 tornaram-se obrigatórias, para todos os cursos jurídicos do país, as novas diretrizes curriculares fixadas pela Portaria MEC nº 1.884 de 30 de dezembro de 1994. Não se trata de simples elenco de matérias para composição de grade curricular. Sua concepção é abrangente das várias dimensões de um projeto pedagógico. Para as finalidades do ensino do direito de família, podem ser destacados os seguintes pontos:
a) interligação obrigatória do ensino com a pesquisa e a extensão;
b) necessidade de formação fundamental, sócio-política, técnico-jurídica e prática do bacharel em direito;
c) destinação de cinco a dez por cento da carga horária geral do curso para atividades complementares, de livre escolha do aluno;
d) exigência de interdisciplinaridade;
e) absorção de novos direitos.
As novas diretrizes impõem redirecionamento completo das práticas pedagógicas e dos conteúdos que se tornaram comuns, nos cursos jurídicos. O exemplo infelizmente caricato do professor de direito é o do comentador superficial de textos legais, sem contribuir para a produção criativa ou ao raciocínio crítico, reproduzindo-se tal modelo nas avaliações que aplica. Esse tipo de professor não está preparado para implementar o novo ensino jurídico.
O ensino do direito em geral, e do direito de família em especial, não pode mais conter-se na transmissão do conhecimento já consagrado. Há de estar integrado com a produção do conhecimento novo, que só a pesquisa é capaz de propiciar. Além disso deve interagir com a comunidade, valendo-se dos vários processos de extensão.
10. Aplicação das novas diretrizes ao direito de família
O primeiro passo é o abandono do modelo exegético, centrado no Código Civil. Como se procurou destacar acima, o direito de família mudou radicalmente, mas o Código permaneceu centrado em um paradigma que já desapareceu. A abordagem deve ser necessariamente crítica, para que se revele o descompasso da lei com a realidade social. Deve-se optar por extrair da Constituição os elementos fundamentais compatíveis com as relações pessoais e familiares que tutela. Em verdade, o Código restou como normas supletivas, no que não contrarie a Constituição e a legislação especial, que desenham um estatuto legal dúctil da família. Mas o ensino da matéria ainda estará incompleto se o seu conteúdo programático não incluir a contribuição de ciências não jurídicas, como a história, a psicologia (ou a psicanálise), a sociologia, a demografia (imprescindíveis são as pesquisas por amostragem de domicílio, que anualmente o IBGE promove) e a bioética.
Para o direito de família, ante sua densa interdisciplinaridade e imersão na realidade social, é mais adequada a pesquisa social empírica, cuja metodologia está largamente assentada. Nesse campo, as linhas de pesquisa podem dirigir-se a: a) conhecimento das circunstâncias reais da vida familiar e social, que indicam as condições de viabilidade ou necessidade de ordenação de condutas e interesses; b) conhecimento das fontes reais de direito, assim entendidas e praticadas pela comunidade; c) a efetividade do direito positivo; 4) a adequação do direito à realidade social, seus valores e interesses; 5) as práticas administrativas, que realizam o direito, no Estado Social, mais que a jurisprudência dos tribunais, particularmente no campo da ação social, da assistência e da seguridade, no interesse das famílias. São comuns a pesquisa por amostragem, a aplicação de questionários, a pesquisa documental, a pesquisa de jurisprudência dos tribunais, a pesquisa de legislação nacional e estrangeira e de projetos de leis, e dos grupos de pressão e ideológicos que os influenciaram. No plano da produção do conhecimento, é interessante a apropriação de dados de outras ciências que possam agregar-se à reflexão crítica de causas e tendências das relações familiares, sob a perspectiva do direito.
O incentivo à pesquisa é explícito na Portaria MEC nº 1.886/94, em três momentos: a) quando estabelece a interligação obrigatória do ensino com a pesquisa; b) quando impõe a monografia final, com defesa perante banca, para conclusão do curso, que não pode prescindir do desenvolvimento de um projeto mínimo de pesquisa, que deve sempre ser estimulado; c) quando inclui a pesquisa na computação da carga horária das atividades complementares do aluno, permitindo a difusão da iniciação científica, que não era uma prática habitual nos cursos jurídicos.
Há muito chão a se percorrer, para que a pesquisa se torne uma atitude permanente de aprendizagem nos cursos jurídicos, propiciando-se a formação de grupos emergentes. As matérias coenvolvidas no direito de família são propícias a esse desenvolvimento.
A extensão nos cursos jurídicos sempre se resumiu à assistência judicial. A assistência não é apenas judicial, mas jurídica, em sentido amplo, incluindo consultoria, assessoria, conciliação, mediação. Para o direito de família, é importante ressaltar que, no Estado de Alagoas, cerca de 90% das demandas de assistência jurídica gratuita são relacionadas às questões da família, o que levou o Tribunal de Justiça e o Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Alagoas a instalar no campus da universidade uma vara de família, para atender os necessitados de justiça. Todavia, além desse importante aspecto, a extensão significa intervir positivamente nas comunidades, interagindo e compartilhando da solução de seus problemas, mediante o saber qualificado que foi produzido e transmitido nos cursos, enriquecendo-se com o saber popular com que se deparam. Significa, também, atividades de formação continuada e promoção de eventos que beneficie a comunidade geral e jurídica, para conhecimento de seus direitos. No campo de direito de família, é impressionante o desconhecimento das pessoas acerca de seus direitos mais simples, talvez porque o "direito no papel" (law in books) tenha avançado muito mais que o "direito na realidade" (law in action).
O ensino, a pesquisa e a extensão nos cursos jurídicos devem atender à necessidade de formação sócio-política, técnico-jurídica e prática do bacharel em direito. No que toca à formação sócio-política, espera-se que as matérias fundamentais (jurídicas ou não jurídicas ) capacitem o futuro profissional à produção criativa do direito, à reflexão crítica, a atuar nos processos de mudança social e de transformações do direito. A inafastável interdisciplinaridade do direito de família não pode prescindir de sólida formação sócio-política. A formação técnico-jurídica, mesclada de formação sócio-política, é exigente do ensino-aprendizagem competente das matérias profissionalizantes (ou jurídico-dogmáticas, se quiserem), dentre as quais se inclui o direito de família. A prática do direito de família inclui-se no estágio de prática jurídica, que as novas diretrizes curriculares tornou obrigatório durante os últimos dois anos do curso, mediante processos simulados, processos reais, assessorias, convênios com órgãos jurídicos, assistência jurídica. Os conflitos de família são campo privilegiado para duas formas crescentes de atuação extrajudicial, inclusive para os profissionais do direito, ou seja, a mediação e a conciliação. A mediação previne o conflito e se converte no modo mais eficiente de assegurar o convívio de pais separados com seus filhos.
As atividades complementares são livremente escolhidas pelos alunos, equivalentes a 5 a 10% do total da caga horária de cada curso jurídico, e não previstas na grade curricular. Para enriquecer o conhecimento do direito de família, o aluno deve ser estimulado a participar de projetos de pesquisa, de iniciação científica e de extensão na área, além de congressos e outros eventos. Pode cursar também disciplinas ofertadas por outras áreas de conhecimento, na própria ou em outra instituição. Uma experiência que deve ser estimulada é a dos módulos temáticos, trazendo à discussão temas aos quais professores e especialistas estejam dedicando seus estudos.
Como vimos sublinhado, a interdisciplinaridade é capilar no direito de família. O ensino centrado nos comentários à legislação existente não cumpre seu papel; ensina mal e é deformante. A interdisciplinaridade no direito de família apresenta duas dimensões: uma interna, que se dá com as demais disciplinas curriculares, refletindo sobre o que nelas pode ser útil para ampliação de seu estudo, e uma externa, relacionando-se com outras áreas que também tenham as relações familiares como objeto de conhecimento, a exemplo das ciências biológicas, da psicologia, da psicanálise, da sociologia, da bioética, da estatística.
Os conteúdos programáticos da disciplina direito de família devem ser definidos com suficiente flexibilidade, de modo a absorver os novos direitos que com ela se relacionem, assim entendidos todos aqueles que se incorporaram, de modo pluralístico, aos sujeitos. Podem ser assim considerados os direitos da criança e do adolescente, o direito das mulheres, o direito à integridade genética (também considerado direito fundamental), direitos próprios da comunidade familiar, o direito irrestrito à perfilhação e à paternidade ou maternidade.
11. Uma listagem de temas básicos
Atento ao conjunto de enfoques acima delineado que o ensino do direito de família exige, na atualidade, penso que o conteúdo programático da disciplina deve incluir, ao menos, os seguintes temas básicos:
FAMÍLIA:
a) Origens, evolução e funções da família;
b) Influência das demais ciências no desenvolvimento do direito de família;
c) Princípios das relações familiares; a Constituição e o direito de família;
ENTIDADES FAMILIARES:
d) Tipos de entidades familiares;
e) Outras comunidades afetivas ou parafamiliares;
f) Famílias conjugais: constituição, diretos e deveres, dissolução do casamento e da união estável;
DIREITOS DOS SUJEITOS:
g) Direitos de personalidade, na família;
h) Direito das Mulheres;
i) Paternidade e Maternidade;
j) Filiação biológica natural ou por manipulação genética e adotiva;
j) Direito a alimentos;
REGIME PROTETIVO:
l) Autoridade parental;
l) Proteção da criança e do adolescente;
n) Proteção do adulto incapaz ou juridicamente débil.
o) Bem de família.
A seqüência e a eleição dos temas seguem uma ordem tendencialmente repersonalizante, em que a pessoa ou o sujeito, nas relações familiares, é o foco principal do conhecimento e do ensino. O patrimônio deve ser visto como efeito da tutela dos sujeitos e não como causa do regime jurídico familiar. Somente assim, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana será alcançado no direito de família.
(*) Doutor em Direito Civil (USP), professor da UFAL e da UFPE (Pós-graduação)
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