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O afeto está em festa!
Vivianne Saraiva
No dia 14.11.2017, o Ministro João Otávio de Noronha, Corregedor Nacional do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, instituiu o Provimento nº 63, que dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetivas.
Notadamente uma conquista do vanguardista IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, o qual vem há tempos defendendo o direito à filiação socioafetiva, sendo o afeto elevado a princípio jurídico constitucional e regedor de todas as relações no âmbito familiar.
No STF, no julgado do Recurso Extraordinário nº 898.060-SC, que teve como amicus curie o IBDFAM, fora reconhecida a tese do instituto, no que tange à igualdade entre a filiação biológica e socioafetiva, de modo que o Provimento em comento, ratifica não haver diferenças, agora sendo admitido o reconhecimento dessa filiação diretamente em cartórios de registro civil e sem a necessidade de demanda judicial, igualmente como ocorre com o reconhecimento da filiação biológica.
Desse modo, com base na ampla aceitação jurisprudencial e doutrinária da filiação socioafetiva, contemplando os princípios constitucionais da afetividade, da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, bem como a busca da felicidade, o Provimento nº 63 nos dá muitos motivos para comemoração.
Tendo em vista a grande demanda social que envolve o tema, em que padrastos/madrastas e enteados, afilhados, filhos de criação, filhos de coração ou qualquer outra denominação que desejem, têm, agora, o direito de registrar voluntariamente e diretamente em qualquer Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais o reconhecimento da filiação socioafetiva. Inclusive, não é obrigatório que a averbação com a nova filiação seja realizada no mesmo cartório onde fora efetivado o registro de nascimento. É preciso que a declaração do reconhecente seja sincera e se baseie na existência de posse de estado de pai/mãe e filho.
Na tendência de desafogar o judiciário, a autonomia privada e o princípio da mínima intervenção do Estado no planejamento familiar (art. 226, § 7º da CF) estão em destaque no espírito do aludido Provimento, o qual diz que os maiores de 18 (dezoito) anos de idade, independentemente do estado civil, poderão requerer o reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva para com pessoas de qualquer idade; ou seja, crianças, adolescentes e adultos podem ter seus direitos e deveres assegurados extrajudicialmente como consequência de sua filiação.
Não se pode deixar de lembrar que alguns estados, como São Paulo, Amazonas e o pioneiro Pernambuco (com o Provimento 9/2013), já vêm permitindo o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva extrajudicialmente, com absoluto apoio do IBDFAM. Entretanto, o aludido Provimento nº 63 unifica a questão em nível nacional.
Outrossim, algumas exigências são feitas para o registro da filiação pelo afeto, dentre elas, a de que o pai ou mãe requerentes sejam 16 (dezesseis) anos mais velhos que o filho a ser reconhecido, não podendo promover tal reconhecimento os irmãos entre si nem os ascendentes; os documentos exigidos são simples, tais como documento de identificação oficial com foto e certidão de nascimento. Todavia, se o filho a ser reconhecido for maior de 12 (doze) anos o reconhecimento da filiação exigirá seu consentimento. Imita-se aqui o que é exigido para os casos de colocação em família substituta: guarda, tutela e adoção.
Destaca-se que, é vedado o reconhecimento voluntário em cartório para os requerentes que já tenham processos judiciais de reconhecimento de paternidade ou de procedimento de adoção.
Um ápice do Provimento nº 63 é o art. 14, o qual trata a respeito da multiparentalidade, ao ditar que o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva não implicará o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento.
Porém, o mesmo artigo que traz o céu, desce ao fundo do mar, ao dizer que “a filiação poderá ser realizada de forma unilateral” (grifei), causando, assim, uma das maiores angústias do Provimento, posto que causa a incerteza da possibilidade de requerimento de filiação por pai e mãe afetivos ao mesmo tempo, podendo gerar a exigência de requerimento individualizado e não simultâneo, e se essa interpretação prevalecer poderá significar um retrocesso.
Na visão dos críticos, levanta-se o prejuízo e até mesmo a fraude ao instituto da adoção com ênfase ao CNA – Cadastro Nacional de Adoção. Entretanto, antevendo a ressalva, o Provimento, no art. 12, estabelece que suspeitando de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida sobre a configuração do estado de posse de filho, o registrador fundamentará a recusa, não praticará o ato e encaminhará o pedido ao juiz competente nos termos da legislação local. Desse modo, a operacionalização do cartorário, a fé pública e o evidente zelo no exercício da profissão do registrador, resguardará a legitimidade do ato que estará sendo praticado. É o que todos esperam.
Ademais, acrescenta-se que após a devida efetivação do registro da filiação socioafetiva no assento de nascimento, torna-se irrevogável, impondo-se todos os direitos e deveres entre pai/mãe e filho(a), inclusive os sucessórios, sem nenhuma distinção com os demais tipos de filiação (biológica, adotiva e registral). Trata-se do princípio constitucional da igualdade entre os filhos.
Assim, o Provimento nº 63 deve ser festejado, pois proporciona a regularização, com rapidez e custos consideravelmente menores, de diversas famílias afetivas existentes, que ainda não tinham seus direitos e garantias efetivamente resguardados. A doutrina civilística deverá esclarecer alguns pontos quanto à interpretação e aplicação do mencionado Provimento, que chegou em boa hora.
A autora é Advogada, Diretora Estadual do IBDFAM e Mestra em Direito Civil.
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