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A curatela como a terceira margem do rio
Em junho passado palestrei no IBDCivil em Curitiba. Em sua 5ª edição, trata-se de um evento indispensável para a compreensão dos mais relevantes temas do Direito Civil da atualidade. O questionamento que me foi proposto pela organização do Congresso foi o seguinte: “A curatela implica em mitigação da capacidade legal plena derivada do artigo 12 da Convenção de Direitos da Pessoa com Deficiência? “. A CDPD é a primeira convenção internacional de direitos humanos internalizada no Brasil com quórum qualificado (pelo Decreto 6.949/09), o quê lhe concede posição primária na ordem normativa brasileira, com equivalência às Emendas Constitucionais (§ 3º, art. 5º, CF). A indagação acima referida fere especificamente o art. 12.4 da CDPD, disciplinando que “Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa”.
Pois bem, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/15) necessariamente guarda deferência à CDPD, inclusive com acato às suas salvaguardas, de modo que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal protejam e promovam a autonomia das pessoas com deficiência. Mas será que isso efetivamente acontece? O título do post é uma homenagem ao mais famoso conto de Guimarães Rosa, publicado na obra “Primeiras Estórias”. Aqui, a terceira margem do rio serve como metáfora aplicada ao caminho percorrido pela Lei Brasileira de Inclusão, que não aderiu a outras duas vias possíveis, sendo que a escolha entre as três alternativas oscilará conforme o peso que se queira conceder entre o necessário cuidado (proteção) da pessoa com deficiência e a promoção de sua autonomia.
Nesse balanceamento, a “primeira margem do rio” consiste em reproduzir o caminho trilhado pela legislação reformista de países como Alemanha (‘Betreuung’) e Grécia, substituindo-se qualquer forma de restrição de capacidade civil e curatela por modelos jurídicos hábeis a prover o acesso de pessoas com deficiência ao suporte que necessitarem no exercício de sua capacidade legal. Já a “segunda margem do rio”, seria um giro de 180 graus, de forma a enfatizar o cuidado em detrimento da autonomia, preservando-se a incapacidade absoluta para aqueles casos em que a pessoa não possua resquícios de autodeterminação. Contudo, a existência de uma norma que abstratamente preveja uma espécie de incapacidade generalizada viola a dignidade da pessoa humana e a essência da CDPD, pois despersonaliza ‘a priori’ seres humanos em razão de exclusiva avaliação de sua integridade psíquica. Esse aspecto é bastante evidenciado no novo desenho do instituto do “guardianship of adults”, na Europa Continental. Outrossim, trata-se de um desserviço à regra da proporcionalidade em um duplo viés: seja pelo fato da curatela ilimitada reduzir a pessoa a uma doença e se olvidar de uma avaliação holística na qual se leve em consideração os seus afetos, crenças, potencialidades e direitos fundamentais; seja ainda pela tentativa de subversão axiológica das bases do direito civil contemporâneo, ao se pretender funcionalizar as situações existenciais às patrimoniais (e não o contrário!), com o objetivo de acautelar o princípio da segurança jurídica, equivocadamente compreendido como o resguardo da higidez de institutos clássicos como a prescrição e a teoria das nulidades. Em verdade, “segurança jurídica” no Estado Democrático de Direito significa acesso a direitos fundamentais, o que implica a indispensável tarefa de pontual adaptação dos institutos patrimoniais tradicionais às exigências de promoção de direitos das pessoas com deficiência. Jamais o oposto!
A terceira margem do rio é o Estatuto da Pessoa com Deficiência. A Lei n. 13.146/15 aceita a premissa da deficiência como um fato jurídico, ou seja, uma condição humana orgânica, completamente dissociada da incapacidade. Ao se conceituar a deficiência como uma vulnerabilidade, o legislador não tolera que um impedimento de longo prazo seja automaticamente sancionado como fato ilícito com a eficácia punitiva do cerceamento da capacidade jurídica da pessoa com deficiência. Doravante, a deficiência dever ser conceituada como a interação de uma condição médica com fatores ambientais que agregam à loteria natural (John Rawls) e potencializam os seus efeitos negativos. Algo que na “common law” é palpável pela distinção entre os termos “impairment” (debilitação) e “disability” (deficiência). Assim, o fato de uma pessoa ser incapaz de mover as pernas não importa em deficiência, isso só ocorrerá quando a debilitação lhe impeça de, por exemplo, entrar em uma biblioteca. Assim, a deficiência pode ser evitada se o contexto social aponte para a superação de barreiras pela via de adaptações razoáveis na arquitetura das cidades.
Contudo, a Lei Brasileira de inclusão segue um modelo semelhante ao do direito italiano, admitindo a convivência entre as medidas de suporte à autonomia (através da regulamentação da Tomada de Decisão Apoiada no CC) e a curatela. Com efeito, o fato jurídico da deficiência será aferido em uma tripla gradação: a) regra geral da deficiência como vulnerabilidade e preservação da capacidade plena; b) a eventualidade da deficiência qualificada pela Tomada da Decisão Apoiada quando houver limitação da aptidão decisória; c) a excepcionalidade da deficiência qualificada pela curatela (art. 84, § 1o), nos casos em que um laudo biopsicossocial possa objetivamente aferir uma absoluta impossibilidade de interação social. Porém, a curatela será associada a uma incapacidade relativa, na qual preponderará um projeto terapêutico individualizado, na qual o decisivo será a abordagem da pessoa em sua singularidade, de forma que a extensão da curatela possa oscilar de uma pequena restrição à capacidade (com a preservação quase integral da autonomia e assistência do curador em situações devidamente delimitadas) a uma drástica limitação da capacidade em casos graves, que recomendem uma curatela de ampla extensão, tendo basicamente o curador um acentuado poder de representação sobre os interesses da pessoa curatelada. O foco na concretude do caso e uma análise multidisciplinar dos espaços residuais de autogoverno do curatelando são as garantias de que a regra da proporcionalidade será preservada.
A permuta do vocábulo “interdição” por “curatela” não se resume ao politicamente correto. O câmbio de uma legislação punitiva e excludente do indivíduo incapaz para uma ordem comprometida com a inserção social da pessoa com deficiência é aferido por uma proporcionalização da curatela em dois níveis: a) personalização da curatela; b) funcionalização da curatela. Para além da intervenção qualitativamente diversa pela via do projeto terapêutico individual, a personalização da curatela se materializa na restrição da atuação do curador ao exercício de direitos de natureza patrimonial, pois uma transferência de poderes decisórios sobre atos existenciais se traduziria em uma delegação coercitiva da titularidade de direitos fundamentais. Por conseguinte, recai forte ônus persuasivo sobre o autor da demanda, para provar a necessidade de substituição da vontade do curatelado em aspectos concernentes à sua intimidade e ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 749, CPC/15). Por fim, a funcionalização da curatela é patente ao se priorizar a promoção da autonomia do curatelado como norte de qualquer restrição temporária sobre a capacidade civil (art. 758, CPC/15). O antigo curador de bens se converte em um cuidador da saúde em um processo colaborativo de reconquista da autodeterminação, ostentando deveres fiduciários perante o curatelado, devendo agir com base em seus melhores interesses (art. 755, CPC/15). A funcionalização requer que a pessoa do curador não se identifique necessariamente com um familiar e que, por vezes, seja pluralizado, pela via de uma curatela compartilhada ou fracionada (art. 1.775-A, CC).
Retornamos à indagação que justifica esse escrito: “A curatela implica em mitigação da capacidade legal plena derivada do artigo 12 da Convenção de Direitos da Pessoa com Deficiência? Com base nos parágrafos precedentes respondemos: Sim. A curatela mitiga o exercício da capacidade legal da pessoa com deficiência. Todavia, a subsistência desse modelo jurídico em nosso ordenamento jurídico não ofende a CDPD. A LBI e o CPC/15 inseriram salvaguardas apropriadas e efetivas que personificam e funcionalizam a curatela, proporcionalizando a sua excepcional incidência, conforme planejamento terapêutico individualizado, de modo compatível com a proteção e promoção internacional dos direitos humanos.
Nelson Rosenvald
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