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Um outro olhar
Fonte: Boletim do IBDFAM nº 24
Assunto em pauta, já de longa data, a reforma do Judiciário.
Saliento alguns pontos que emergem em mudanças nas relações sociais que afetam atualmente o assunto: a consideração da subjetividade das relações; a necessidade de levar em conta pautas relacionais baseadas na cooperação e menos na competição; modificação no exercício da autoridade em que não se mantém os modelos hierarquizados, dados a priori, mas uma autoridade que encontra sustentação no exercício das funções, baseado na consideração e no respeito às diferenças e, finalmente, a dignidade humana como princípio norteador das relações - princípio este que toca a essência do que é humano ao mesmo tempo que impõe a consideração do que é único em cada um.
Ao lado destas mudanças sociais, com evidentes reflexos na abordagem dos conflitos, há uma especial atenção à ética, ocorrendo diversas polêmicas em relação ao próprio Judiciário e à atuação dos operadores do Direito, em especial os advogados; e, ainda, a função do juiz que emerge menos como um burocrata da Lei e mais como um intérprete que necessariamente utilizará para tal sua bagagem pessoal. A subjetividade é valor que passa a ser considerado no Novo Código Civil como também na operabilidade mesma do Direito.
Via de duas mãos, a consideração da dignidade da pessoa humana encontra condições a partir do exercício digno das profissões e funções que têm nas reformas oportunidade em fortalecer e, até certo ponto, recobrar a auto-estima, que é fundamental para o exercício da consideração.
Consideração - olhar junto: palavra-chave quando falamos em mudança. Impõe-se assim um exame conjunto, que leve em conta os mais diversos aspectos da prestação jurisdicional. Uma reforma que possa ser efetiva necessita do olhar dos vários segmentos da sociedade e das várias disciplinas - um enfoque multidisciplinar que possa ampliar, também por esta via (mas não só, como abordarei a seguir) o conhecimento dos pontos que são críticos e que demandam mudanças.
O movimento de reforma, para que possa atender sua finalidade e para que seja efetivamente democrática, como aspira ser a organização social, necessita de um movimento de baixo para cima e para os lados, e não de cima para baixo, necessita da cooperação, e não da competição entre saberes do que se acredita ser o melhor, muitas vezes postura prenhe de moralismo e ideologia. Fazendo uma pequena digressão, as profissões são uma especialização de funções que encontram-se presentes em todos nós. Assim, a função psicanalítica não é prerrogativa dos psicanalistas, da mesma forma que o direito não é prerrogativa profissional. Estas são qualidades que encontram um maior desenvolvimento com as especializações socialmente reconhecidas, que devem ter, por seu turno, uma função social.
Há ainda outra palavra, além de consideração, que se pode colher da mesma esteira das discussões a respeito da reforma do Judiciário - a interdisciplina. Fundamental que esta seja utilizada de forma a não ser confundida com a multidisciplina - a utilização paralela do conhecimento de várias disciplinas. A interdisciplina implica na construção de um conhecimento que leve em conta os vários ângulos da realidade, de modo a atender a uma finalidade que está além daquela específica de cada disciplina.
Ao invocar-se o atendimento da dignidade da pessoa humana na prestação jurisdicional, faz-se mister o conhecimento interdisciplinar. Inclusive este percurso propicia que também seja pensada a função do Judiciário à luz destas novas pautas relacionais e princípios norteadores que emergem, sob a ótica interdisciplinar, a um primeiro plano. A interdisciplina permite o olhar de dentro para fora e de fora para dentro, exercendo a função de agente externo, como um controle de qualidade, por assim dizer.
Além disto, a interdisciplina tem como fruto não só a ampliação do conhecimento dos níveis da realidade, como também o fortalecimento de cada disciplina e função profissional que, a partir da consideração das semelhanças e diferenças, passa a ter mais clara e fortalecida sua identidade, as possibilidades e limites de sua atuação.
Neste sentido, a consideração da subjetividade das relações não implica absolutamente que o Judiciário deva se aprofundar em demasia nestas questões. Cabe estar alerta à sua existência - o que por si só exige grande esforço, respeitando a subjetividade e a intimidade, remetendo o aprofundamento de tais questões, quando for o caso, ao devido foro.
O respeito à subjetividade implica inclusive em não incrementar indevidamente as emoções e o sofrimento, daqueles que buscam um remédio legal, para parte de suas angústias que não poderão ser resolvidas amplamente no Judiciário. Assim como é verdade que o Judiciário tem sido bode expiatório para várias questões que afligem a sociedade e os indivíduos, corre-se o risco, com a abordagem indevida da subjetividade, de alimentar ilusoriamente as expectativas. O polimorfismo das relações leva a uma confusão perigosa e indevida de funções.
Voltemo-nos à família para fazer um paralelo com o exercício profissional. A família - base da sociedade - é estrutura que é estruturante do indivíduo justamente pela diferença de funções que aí existe e que necessita existir para que cumpra sua função. O mesmo vale para o exercício profissional. (Para discussão mais aprofundada do tema ver Cohen, Cláudio e Gobbet, Giselle, "Ética profissional - Herdeira das relações familiares" in Direito de Família e Psicanálise - rumo a uma nova epistemologia, org. Giselle Câmara Groeninga e Rodrigo da Cunha Pereira. Imago Editora, Rio de Janeiro, 2002.)
As mudanças, como sabemos, são inerentes à vida. No entanto, paradoxalmente, muitas vezes aparentemente mudamos para não mudar. Freud deu a este mecanismo o nome de Compulsão à Repetição, em que por motivações que nos são inconscientes, nos apegamos por inércia ao conhecido, repetindo sem o saber, os mesmo comportamentos, com molduras diferentes, mas que nos levam aos mesmos lugares. Um paralelo disto é quando "baixamos um decreto" de modificação em nossas vidas e quando nos damos conta, estamos repetindo exatamente as mesmas coisas que procurávamos evitar. Impõe-se assim também a consideração dos conflitos que se tem em relação às próprias mudanças.
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