Artigos
“Cura gay” é charlatanismo, e o Direito não pode compactuar com isso
Não é a primeira vez que o Brasil se depara com a questão da pseudo “cura gay”. Tramita na Câmara dos Deputados, em caráter conclusivo o PL 4.931/2016 de autoria do Deputado Ezequiel Teixeira (PTN-RJ), que “dispõe sobre o direito à modificação da orientação sexual em atenção a Dignidade Humana”. A absurda proposta encontra-se atualmente na Comissão de Seguridade Social e Família, pois encerrado o prazo para apresentação de emendas, em 06/09/2017. Este assunto voltou à discussão quando, em 15/09/2017, na Ação Popular proposta pela Psicóloga Rozangela Alves Justino e outros, juiz do Distrito Federal concedeu liminar suspendendo a Resolução n.º 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia – CFP que proíbe psicólogos de submeter seus pacientes à psicoterapia com objetivo de “reverter” a homossexualidade.
Pelo sim ou pelo não, a decisão tem o mérito de trazer de volta esta inquietante questão. Impressionante como este assunto tem o poder de mobilização geral. É que ele diz respeito a todas as pessoas. Todos somos sujeitos sexuais. E todos estão sempre à procura de uma “normalidade”. Algo que se encaixe na norma. E o Direito, como um instrumento ideológico de inclusão e exclusão de pessoas no laço social, sempre tentou regular a sexualidade, embora isto seja impossível. É assim que o casamento foi, por muitos e muitos séculos, o legitimador das relações sexuais. Mas esse discurso moralizante era rompido sempre, principalmente pelos homens, que até ficavam enaltecidos em sua masculinidade. Mas como todo discurso moralista, ele trazia consigo a sua própria contradição: se somente os homens podiam ter relações sexuais antes, ou fora do casamento, com quem iriam ter relações sexuais, se às mulheres era proibido? Só podia ser com prostitutas ou outros homens, ambos condenados pela ordem jurídica e social.
A sexualidade interessa ao Direito das Famílias como elemento intrínseco, vitalizador – ou desvitalizador – da conjugalidade. E das famílias conjugais decorrem direitos. No Direito contemporâneo a conjugalidade, seja no casamento ou união estável, já não é mais monopólio da heteroafetividade. Mesmo assim as relações homossexuais continuam sendo um assunto que ainda envolve muito preconceito. Denominá-las de relações homoafetivas muda o significante e ajuda a diminuir esta carga de preconceito. Ver a homossexualidade como doença é uma boa forma de patologizar no outro o que é estranho em si mesmo.
Em 17/05/1990 a OMS – Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade do rol das doenças mentais. Apesar disto, ainda há quem veja a preferência homossexual como doença. O mais incrível é que ainda há quem se diz psicólogo e também assim pensa. Em razão deste preconceito, é que ainda há no mundo, nove países que tem pena de morte para os homossexuais. Certamente são pessoas que não leram Freud, o qual disse, no inicio do século passado, em sua teoria das pulsões que todas as pessoas trazem consigo uma predisposição à bissexualidade. A sexualidade humana, portanto, não é algo natural, é “perverso-polimorfa”. A sexualidade é plástica. Em outras palavras, mesmo os que se dizem “normais” trazem consigo, latente ou sublimado, a bissexualidade. Querer atribuir à heterossexualidade o estatuto da normalidade, em oposição à homossexualidade, é animalizar demais a sexualidade humana ao colocá-la apenas como instintiva e geneticamente predeterminada. Significa reduzir a humanidade que há em cada um de nós. Em linguagem constitucional é reduzir a dignidade humana.
Entender a homossexualidade como doença, a ponto de querer revertê-la à heteronormalidade é apenas uma maneira de repudiar a pulsão sexual do outro e em si próprio. Isto é impossível. A pulsão sexual está em nós, irremediavelmente. A homofobia é a homossexualidade não reconhecida em si é que traz consigo o desejo de combatê-la no outro. Os fiscais da sexualidade alheia, os guardiões da moralidade, certamente têm questões da própria sexualidade mal resolvida. Quem está em paz com a própria sexualidade não se incomoda com a dos outros.
As experiências com esse tipo de tratamento constituem uma violação à dignidade e é uma tortura, objetificação do sujeito ao tentar adestrá-lo para a heteronormatividade. O relato da fotógrafa equatoriana, Paola Paredes, é chocante. Ela fez uma importante denúncia, com registros fotográficos da violência que é o tal tratamento. No Equador, embora seja proibido a “cura gay”, existem dezenas de clínicas, travestidas de tratamento de alcoolismo e drogas. A fotógrafa fez uma profunda investigação, inclusive visitando mulheres que passaram por essas clínicas. O que se viu ali é o retrato da violência psíquica com o nome de “tratamento”. Para que as mulheres se feminizassem eram submetidas a um corretivo. Tomavam “vitaminas” que provocavam perda de memória e insônia, tinham que escutar por horas músicas religiosas e eram obrigadas a andar de saltos altos, usar maquiagem e saias curtas e estupradas para aprenderem a gostar de homens (www.paolaparedes.com). Esta realidade de um país latino americano nos leva a crer que existam clínicas clandestinas como essas no Brasil.
A hetero e a homossexualidade são apenas variantes da sexualidade humana, e o pluralismo sexual é atributo da personalidade, e como tal não pode qualificar ou desqualificar pessoas e expropriar cidadanias. Assim como a cor da pele, o gênero, a opção religiosa, a preferência sexual não pode ser um obstáculo ao exercício do gozo de todos os direitos. Só se pode entender que a homossexualidade tem cura se a heterossexualidade também tem. A sexualidade humana é diversidade e alteridade que está em cada um de nós. Somos todos sujeitos de desejo, e sujeitos de pulsão. Portanto prometer ou anunciar psicoterapia de reversão, ou seja, “cura gay”, é moralismo perverso, propaganda enganosa e ignorância. E o Direito não pode permitir ou compactuar com tal charlatanismo.
Rodrigo da Cunha Pereira
Advogado, Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM, Doutor (UFPR) e Mestre (UFMG) em Direito Civil e autor de vários artigos e livros em Direito de Família e Psicanálise.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM