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Será que mudou alguma coisa com a decisão do STF sobre filiação?
Será que mudou alguma coisa com a decisão do STF sobre filiação?
Rui Portanova[1]
Tese firmada no Tema 622
O STF decidiu: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".
Tomem-se em consideração os termos da tese e se terá, pelo menos, os seguintes elementos:
1º - a paternidade socioafetiva é um fato jurígeno.
2º - a possibilidade de se reconhecer multiparentalidade.
3º - a existência de “efeitos jurídicos próprios” da paternidade socioafetiva e de “efeitos jurídicos próprios” da paternidade biológica.
Com efeito, o STF deu tamanha efetividade ao afeto em sede de filiação que hoje é lícito dizer que a paternidade/maternidade socioafetiva está definitivamente reconhecida como um fato que está dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
Ou seja, se no mundo dos fatos há o reconhecimento da paternidade socioafetiva, no mundo do Direito este fato tem que surtir efeito. Ao revés, se no mundo dos fatos não existe paternidade socioafetiva, o mundo do Direito não deve repercutir “efeitos jurídicos próprios” da paternidade socioafetiva em tema de filiação.
Se é assim, penso que deve mudar bastante a orientação que, até aqui, tem o STJ sobre filiações.
Tomei em consideração a paternidade socioafetiva em três tipos de ações de filiação[2]. Constatei que, no STJ, a paternidade socioafetiva não é protagonista em três casos: investigatória abusiva, negatória clássica e anulatória de falso registro de paternidade.
Vejamos:
Investigatória abusiva
Na investigatória abusiva, a parte investigante renuncia a uma paternidade socioafetiva e registral e vai em busca do reconhecimento da paternidade biológica com todos os seus efeitos, registrais e patrimoniais.
Até agora, o STJ tem desconsiderado a paternidade socioafetiva e julgado procedentes as investigatórias. Não vingam os efeitos jurídicos próprios da paternidade socioafetiva, pois “Permitir a desconstituição de reconhecimento de paternidade/maternidade amparado em relação de afeto teria o condão de extirpar da criança (ainda que já se encontre na fase adulta) preponderante fator de construção de sua identidade e de definição de sua personalidade”.[3]
Com a decisão do STF, não se pode mais considerar a paternidade socioafetiva um nada jurídico. A paternidade socioafetiva é um fato jurígeno e seus efeitos próprios devem ser considerados na decisão judicial. Por igual, a paternidade biológica tem seus efeitos jurídicos próprios, que também devem ser considerados, quando do julgamento.
Provada que seja, tanto a paternidade socioafetiva como a paternidade biológica, é de rigor que o julgamento dê os adequados efeitos registrais e patrimoniais, próprios da jurisdicidade de cada uma das paternidades. Viável decidir, pelo menos, pela existência de multiparentalidade.
Nessas investigatórias ressalta de importância o elemento da Tese 622, que aparece na expressão “com os efeitos jurídicos próprios”. Mais do que nunca, serão as peculiaridades de caso concreto levado a julgamento que ditarão quais são os “efeitos jurídicos próprios” da paternidade socioafetiva e quais são os “efeitos jurídicos próprios” da paternidade biológica.
E aqui, vale lembrar a lição de Rodrigo da Cunha Pereira no seu Dicionário de Direito de Família e Sucessões[4] : “o pai não é, necessariamente, sinônimo de genitor. Os laços de sangue não são suficientes para garantir a paternidade” (p. 501). “Com a ampliação dos conceitos de paternidade e maternidade como funções exercidas, que vão além da biologia, o conceito de genitor deixou de ser, necessariamente, sinônimo de pai e mãe (página 352). Assim, “nem sempre genitor é o pai, já que a paternidade não é necessariamente um vínculo natural, mas cultural” (pág. 517). Enfim, “no Direito de Família e Sucessões contemporâneo, o pai não é, necessariamente, sinônimo de genitor. Os laços de sangue não são suficientes para garantir a paternidade. Pai é quem cria, quem ama, cuida, impõe limites... Pai é quem exerce a função de pai: pode ser o genitor, ou o adotivo (socioafetivo) (p.500).
Guardada adequada atenção às distinções entre “pai” e “genitor” e mantendo-se boa atenção às peculiaridades de cada caso concreto, não há temer que a parte abuse do direito de investigar. Não se vá respaldar o exercício da ganância e a propensão a realizar o interesse comercial, o lucro e vantagens financeiras abusivas. A filiação não é mercadoria. A conjugação adequada dos “efeitos jurídicos próprios” do reconhecimento da paternidade socioafetiva com os “efeitos jurídicos próprios” da busca da ancestralidade, prevista na Tese 622, evita a mercantilização do afeto e da filiação.
Ação negatória clássica[5]
A decisão do STF vai influenciar, também, o que vem sendo decidido pelo STJ nos julgamentos daquelas ações previstas no artigo 1601 do Código Civil.
Nessas ações, muitas vezes a efetiva e concreta existência da paternidade socioafetiva entre o marido da mãe e o filho registrado está plenamente reconhecida pelos Tribunais estaduais. Mesmo assim, nesses casos, não se encontra decisões no Tribunal da Cidadania que reconheçam algum efeito jurídico próprio da paternidade socioafetiva, efetiva e concretamente existente entre o marido traído e a criança. E o registro é anulado sob o argumento de que “Não pode prevalecer a verdade fictícia” (lícito ler-se “verdade socioafetiva”) quando maculada pela verdade real e incontestável, calcada em prova de robusta certeza, como o é o exame genético pelo método DNA”. [6]
Não havendo paternidade socioafetiva entre o marido traído e a criança, talvez não se deva colocar reparo às decisões desconstitutivas da filiação, pois o marido registrou na presunção “pater is est” de que ele era o pai biológico. Contudo, havendo paternidade socioafetiva, a decisão judicial haverá de contemplar a orientação que vem do STF no sentido de atender aos efeitos jurídicos próprios da paternidade socioafetiva. E mais um detalhe: indispensável que se dê adequado sentido ao princípio constitucional do melhor interesse da criança.
Nesses casos, o desafio para o jurista é grande. Estão em jogo indesejáveis motivações ideológicas (para não dizer inconscientes), com induvidoso assento religioso, em razão do adultério da mãe. No ponto, o Judiciário está desafiado a uma decisão que não afronte a indispensabilidade de atendimento da decisão vinculativa do Supremo em favor dos “efeitos próprios da paternidade socioafetiva” e a necessidade do atendimento do princípio constitucional de atender ao melhor interesse da criança[7].
Ações anulatórias de falso registro
Por fim, a pesquisa em decisões do STJ mostra que, também nas ações anulatórias de falso registro, a paternidade socioafetiva cede passo.
Falo daquelas ações em que o registro de nascimento é feito mesmo se sabendo que aquele que vai aparecer como pai não é o pai biológico.
Passado algum tempo, com a separação da mãe biológica com aquele que aparece no registro como pai, surge a ação do pai registral para anular o registro de nascimento. No dizer da Ministra Nancy Andrighi: “São ações que florescem como um subproduto indesejável da fragilidade e fluidez dos relacionamentos entre adultos”.[8]
Todos (pai, mãe, filho e julgador) sabem que aquele registro é falso. Mas as decisões do STJ, mesmo sabendo da falsidade do registro e reconhecendo a inexistência da paternidade socioafetiva, de regra julgam improcedente a ação, mantendo o falso registro.
No julgamento do Recurso Especial nº 1.352.529/SP[9], é possível ver a força do falso registro superar, inclusive, a falta de paternidade socioafetiva provada em perícia. A saber: “É certo também que, dos relatos colhidos em primeiro grau, sobretudo na investigação psicossocial, fica claro ser pouco provável que haja o restabelecimento da relação entre pai e filho registrais, o que torna a presente demanda praticamente inoperante a tal mister”.
Quando, independente do falso registro, existe uma efetiva e concreta paternidade socioafetiva entre a criança registrada e o pai registral, a manutenção do registro é de rigor. Essa já tem sido a orientação do STJ: “A 'adoção à brasileira', ainda que fundamentada na 'piedade' e muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado, não consubstancia negócio jurídico sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva, consistente no término do relacionamento com a genitora” .[10]
Contudo, a manutenção do falso registro sem qualquer base na paternidade socioafetiva, projeta descompasso lógico. Com efeito há um antagonismo, em prejuízo do reconhecimento dos efeitos jurídicos próprios da paternidade socioafetiva, quando se confronta a manutenção desse registro falso, primeiro, com as decisões nas investigatórias abusivas e, depois, negatórias clássicas.
Ao primeiro, enquanto na anulatória se mantém um falso registro sem paternidade socioafetiva, na investigatória abusiva, se anula um registro mesmo tendo havido uma induvidosa – e muitas vezes longeva – paternidade socioafetiva. E a investigatória abusiva vai valorizar a paternidade biológica, muitas vezes sem qualquer possibilidade de se tornar paternidade socioafetiva (quando, por exemplo, o pai biológico está morto).
Ou seja, a paternidade socioafetiva perde espaço para a paternidade biológica na investigatória abusiva. Na anulatória, a paternidade socioafetiva perde espaço para a paternidade registral. Lá (na investigatória abusiva) se anula o registro com paternidade socioafetiva. Aqui (na anulatória) se mantém o registro mesmo sem paternidade socioafetiva e sem paternidade biológica.
Além disso; esse registro tão valorizado na ação anulatória, a ponto de subsistir mesmo sem paternidade socioafetiva e sem paternidade biológica, pode ser simplesmente desconsiderado se a pessoa registrada, mais tarde, intentar ação de investigação de paternidade abusiva contra o pai biológico.
Ao segundo, o mesmo registro que aqui (na anulatória) se mantém sem paternidade socioafetiva e sem verdade biológica, tem outro tratamento na negatória clássica. Como visto, lá (na negatória clássica) mesmo havendo paternidade socioafetiva entre o marido traído e a criança, as decisões anulam os registros.
CONCLUSÃO
Enfim, até aqui a paternidade socioafetiva não tem visto seus efeitos jurídicos próprios reconhecidos nas investigatórias abusivas, negatórias clássicas e declaratórias de falso registro.
Uma hora, a paternidade socioafetiva perde importância para a paternidade biológica, nas ações investigatórias abusivas e nas ações negatórias clássicas. Outra hora, a paternidade socioafetiva – no caso a inexistência dela – por igual não tem sido base para anular um registro que também não corresponde com a verdade biológica.
Penso que a decisão do STF tem potencialidade de mudar bastante a orientação do STJ nas ações estudadas.
Vale a pena acompanhar o que vem nas decisões do STJ.
Desde a decisão do STF que deu origem à Tese 622 (22/ setembro/2016) até agora, só foi encontrada uma decisão no STJ que se reporta à decisão Suprema.
Trata-se de Recurso Especial oriundo do Rio Grande do Sul nos seguintes termos: “Caso concreto em que reconhecida a vinculação socioafetiva entre o demandante e seu pai registral, que perdurou por anos, exercendo, o autor, os direitos decorrentes dessa filiação, com o recebimento da herança deixada pelo “de cujus”. Pertinente, apenas, o reconhecimento da origem genética, que restou irrefutável diante da conclusão da prova técnica - exame de DNA - sem reconhecer os direitos patrimoniais e, tampouco, alterar o registro civil do demandante, sob pena de se desfigurar os princípios basilares do Direito de Família. Sentença confirmada. - APELO DESPROVIDO".
Tanto quanto parece, a decisão do Tribunal gaúcho estava afinada com a tese firmada com o enunciado 622 do STF.
Contudo, a decisão gaúcha foi reformada, dando lugar à seguinte decisão do STJ:” ... 2. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos. 3. A existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis. 4. O reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros. 5. Diversas responsabilidades, de ordem moral ou patrimonial, são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação. 6. Recurso especial provido[11].
Enfim, é hora de mudar a pergunta que foi feita no título deste texto: será que a decisão do Supremo Tribunal Federal, ao editar a Tese 622, vai mudar a orientação do Superior Tribunal de Justiça?
[1] Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
[2] PORTANOVA, Rui. Ações de Filiação e Paternidade Socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016
[3]Resp.1.274.240/SC. Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI, julgado em 08/10/2013.
[4] Editora Saraiva, 2015.
[5] Chamo “Negatória Clássica” porque, não são raros nos julgados aparece a expressão “negatória de paternidade”, mas não se trata da ação do artigo 1601 do Código Civil, e sim de ação anulatória de falso registro.
[6] Resp. 878.954/RS. Relatora: Ministra Nancy Andrighi julgado em 07/05/2007
[7]PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentai Norteadores do Direito de Família - 3ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2016. Como averiguar o conteúdo do princípio do melhor interesse da criança? “... a definição de mérito só pode ser feita no caso concreto, ou seja, naquela situação real, com determinados contornos predefinidos, o que é o melhor para o menor” pág. 153.
[8] Resp. 1.003.628 – DF, julgado em 14/10/2008.
[9] Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, julgado: 24/02/2015
[10] REsp nº 1.333.360/SP, Eminente Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 18/10/2016.
[11] Resp. 1.618.230 – RS. Relator : Ministro Ricardo Villas Bôas CuevaA. Julgado: 28 de março de 2017.
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